No final dos anos 1950, quando começou a estudar medicina e imaginava tornar-se um grande cirurgião, Leopoldo de Meis atendeu, involuntariamente, a um chamado da ciência que moldou sua trajetória acadêmica. O hematologista Walter Oswaldo Cruz, filho do lendário Oswaldo Cruz, abriu um processo seletivo para escolher estagiários no laboratório do famoso instituto que leva o nome de seu pai. De Meis tinha pouco interesse pela disciplina, mas precisava muito de dinheiro e o salário oferecido, o equivalente a US$ 200 mensais, era muito atraente. A primeira fase da seleção, feita na casa de Walter, deixou o segundanista De Meis intrigado. Consistia em olhar para uma série de cartuns publicados na revista norte-americana New Yorker e explicar ao mestre onde estava a graça da piada. Chamado para a segunda fase, agora no laboratório do Instituto Oswaldo Cruz, o jovem candidato deparou-se com um desafio concreto: deveria dizer para que serviam equipamentos usados no laboratório. Sem nenhuma familiaridade com eles, De Meis foi sincero e avisou que não sabia. Walter Oswaldo Cruz não pareceu surpreso e disse: “Bem, então adivinhe”. O jovem de 19 anos arriscou-se, e foi um dos quatro selecionados, provavelmente por reunir duas qualidades que o professor via necessárias em seus discípulos: ter humor e curiosidade.
Pode-se dizer que tais qualidades jamais faltaram a Leopoldo de Meis, de 70 anos. Médico formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desistiria ainda nos primeiros anos de curso do projeto de ser cirurgião (a repetição dos procedimentos lhe dava sono), substituindo-o transitoriamente pela medicina clínica – também abandonada após o encontro com Walter Oswaldo Cruz, com quem trabalharia até 1964. “Um fato penoso de admitir é que foi a ganância do estipêndio, e não o despertar da faceta intelectual da minha personalidade, que me levou ao seu laboratório”, diz Leopoldo de Meis. Vocacionado para o trabalho de bancada, De Meis, hoje professor emérito do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ, tornou-se um pesquisador dos mais respeitados em sua área, publicando nas mais importantes revistas científicas internacionais da disciplina.
Suas linhas de pesquisa são os mecanismos de transdução de energia em sistemas biológicos, transporte ativo de íons e síntese e hidrólise de ATP (adenosina trifosfato), nucleotídeo responsável pelo armazenamento de energia em suas ligações químicas. Oitenta por cento de seu tempo é consumido, ainda hoje, pelo laboratório, mas a multiplicidade de seus interesses tornou-o uma referência também em áreas como a sociologia da ciência – fez estudos pioneiros sobre o trabalho dos pesquisadores no Brasil – e sobretudo a educação científica, arregimentando adolescentes de áreas carentes para cursos que tratam a ciência de uma forma agradável ou produzindo materiais didáticos, como livros ilustrados e DVDs.
À curiosidade, que o levou a trilhar esses caminhos, soma-se o bom humor exigido pelo filho de Oswaldo Cruz. De Meis é um carioca de gestos largos e fala coloquial que pouco tem a ver com a imagem sisuda que muitos leigos fazem dos cientistas. Nascido no Egito e criado em Nápoles, na Itália, o pesquisador mudou-se para o Rio de Janeiro quando tinha 9 anos, em decorrência da busca de seu pai, um violoncelista napolitano, por melhores condições de vida no pós-guerra. Aos 18 anos, teve de escolher uma nacionalidade, e optou pela brasileira à italiana e à egípcia.
Assim que encerrou o curso de medicina, aos 24 anos, passou 18 meses nos Estados Unidos, ao obter uma bolsa nos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH), na cidade de Bethesda. Trabalhou no laboratório de Herbert e Celia Tabor, que já atuavam na época na linha de pesquisa que os projetou internacionalmente, o metabolismo das poliaminas, moléculas reguladoras do desenvolvimento presentes em plantas, animais e microrganismos. A princípio, De Meis sentiu-se intimidado com aquele ambiente fervilhante e considerou seu rendimento aquém das expectativas que fizera. “Apesar disso, foi no laboratório dos Tabor que realmente aprendi o que era bioquímica e foi na cafeteria do NIH que descobri os vastos horizontes das ciências biomédicas”, recorda-se ele. Mais tarde, o pesquisador determinaria o papel de duas poliaminas (espermina e espermidina) no relaxamento muscular. No estudo dessas substâncias, surgiram questionamentos sobre o transporte de cálcio dessas células que serviram de mote para uma sequência de estudos.
A deposição do presidente João Goulart e o início do regime militar em 1964 provocaram ondas de choque no ambiente acadêmico em que De Meis trabalhava. Um mês após seu retorno dos Estados Unidos, foi chamado para um interrogatório na Marinha e indagado se sabia de reuniões comunistas mantidas no departamento de Walter Oswaldo Cruz às quartas-feiras. Chocado, De Meis informou que as reuniões de quarta eram para a discussão de trabalhos científicos. O oficial sugeriu que lesse um relatório feito pelo novo diretor do instituto, repleto de acusações infundadas contra cientistas, em especial Walter Oswaldo Cruz.
A progressiva deterioração do ambiente no instituto, que levaria a um grande expurgo de pesquisadores um ano mais tarde, levou De Meis a trocar de emprego. Ele se transferiu para o Instituto de Biofísica da UFRJ, dirigido na época por Carlos Chagas Filho, cujo renome e habilidade diplomática protegeram o ambiente acadêmico da ingerência militar. Foi nessa época que De Meis conheceu a geóloga Regina, com quem se casaria e teria quatro filhos, “minhas melhores contribuições à biologia”, como ele gosta de dizer.
Em agosto de 1969 De Meis foi procurado pelo então presidente da Academia Brasileira de Ciências, Aristides Pacheco Leão. Ele sugeriu que De Meis deixasse o país, pois soubera que ele e a mulher estavam na mira dos militares. De Meis e Regina começaram a enviar currículos para instituições dos Estados Unidos e da Europa e, diante de várias respostas positivas, optaram por passar uma temporada em Heidelberg, na Alemanha. Lá havia espaço para Regina integrar-se a um grupo de geomorfologia na universidade local e De Meis a uma unidade do Instituto Max Planck. Ele foi trabalhar com Wilhelm Hasselbach, chefe do instituto, que havia descoberto a bomba de cálcio do musculoesquelético em colaboração com Madoka Makinose. Depois de um ano e meio na Alemanha, De Meis soube por amigos que já era seguro voltar. E retornou ao Rio de Janeiro.
Foi depois da estada na Alemanha que o pesquisador produziu uma de suas mais destacadas contribuições à bioquímica, no âmbito da síntese do ATP (adenosina trifosfato): a descoberta da formação da fosfoenzima de baixa energia. Em 1971, Hasselbach e Makinose haviam publicado trabalhos mostrando que, quando se formava um gradiente (fonte de energia) de íons de cálcio (Ca2+), a enzima ATPase inserida no retículo sarcoplasmático do músculo podia usar a energia derivada do gradiente para sintetizar a adenosina trifosfato a partir de ADP (adenosina difosfato) e fosfato.
De Meis e seu aluno de mestrado Hatisaburo Masuda decidiram reproduzir uma experiência feita por Madoka Makinose, a fosforilação de uma enzima por fósforo inorgânico (Pi), que utilizava a mesma energia derivada do gradiente. A experiência era simples de fazer com vesículas carregadas de íons de cálcio. Mas em seguida, como controle, a dupla decidiu utilizar vesículas permeabilizadas com éter etílico. Como não havia nenhuma fonte de energia disponível, não se esperava que as vesículas fossem fosforiladas, mas isso aconteceu. “Surpreendentemente, encontramos um pequeno mas significante nível de fosforilação, aproximadamente um décimo do que podia ser medido com as vesículas carregadas de íons de cálcio”, disse De Meis. O trabalho dos dois brasileiros, De Meis e Masuda, foi publicado em 1973, mesmo ano em que Paul Boyer obteve resultados parecidos, mas com a enzima da mitocôndria F1-Fo, que corroboravam a descoberta. Depois de ler o trabalho, De Meis escreveu a Boyer, que ganharia o Prêmio Nobel de Química de 1997. Disse que não havia citado o trabalho porque seu artigo já tinha passado pelas provas tipográficas. Da correspondência brotou uma profícua colaboração, com visitas de Boyer ao Rio.
Em 1978 Leopoldo de Meis prestou concurso para professor titular da UFRJ, que à época significava chefiar o Departamento de Bioquímica, e venceu um colega mais velho. A experiência de médico lhe foi valiosa: uma das provas consistia em colher sangue de um voluntário e fazer uma eletroforese e o adversário, sem experiência médica, teve enorme dificuldade de cumprir a tarefa. Renovou os quadros do departamento e permaneceu como chefe por seis anos, repassando as tarefas burocráticas aos colegas e voltando a dedicar-se ao trabalho de bancada.
Em 1987, livre dos trabalhos administrativos, começou a se envolver com novas atividades. Uma delas foi a cienciometria, disciplina que busca gerar informações para estimular a superação dos desafios da ciência, tornando-se um dos primeiros pesquisadores a medir o impacto da produção científica nacional. Em 1996, ele e Jacqueline Leta, professora da UFRJ, publicaram o livro O perfil da ciência brasileira, análise da produção científica do país que discute seu impacto, qualidade e distribuição regional.
léo ramosO pesquisador desenvolveu também um interesse perene pelo ensino de ciências nas escolas. O início do processo foi um curso experimental para jovens estudantes que De Meis organizou nas férias de verão, em 1987. Durante uma semana, um pequeno grupo de estudantes planejou experiências envolvendo temas como a fotossíntese ou a contração muscular, cujos resultados foram apresentados no final, para discussão. Os resultados foram tão animadores que o curso foi ampliado para vários grupos de alunos, selecionados preferencialmente em escolas públicas. Atualmente são organizados pelos alunos de doutorado do Instituto de Bioquímica. Os alunos que se destacam no curso, assim como alguns de seus professores de escolas públicas, são convidados para estagiar no laboratório, ajudando estudantes de pós-graduação e ganhando familiaridade com o ambiente acadêmico. Mais de 2,5 mil alunos e 800 professores já participaram dos cursos. Dos alunos selecionados para trabalhar no laboratório, cerca de 20 já chegaram à universidade. “Alguns de meus melhores alunos de doutorado começaram nesses cursos”, orgulha-se De Meis.
A atividade com os estudantes mostrou-lhe a necessidade de produzir material didático atraente para o ensino de ciências. Em parceria com o cartunista Diucênio Rangel, já preparou dois livros ilustrados: O método científico e A respiração e a primeira lei da termodinâmica. O método científico tornou-se peça de teatro, na qual o próprio De Meis atuou. Seu trabalho mais recente são filmes de animação.
Aposentado em 2008, De Meis tornou-se professor emérito da UFRJ e continua a trabalhar normalmente em seu laboratório. Não pensa em parar e continua se envolvendo em pesquisas científicas. Uma delas é a gordura marrom, tecido especializado que, quando estimulado, dissipa muita energia na forma de calor. Leva esse nome porque é repleto de mitocôndrias, as usinas energéticas das células, que são marrons.
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