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Espaço

Brasil começa a criar rede nacional de telescópios para monitorar lixo espacial

Objetivo é monitorar os milhões de detritos em órbita da Terra que colocam em risco satélites, foguetes e a segurança no planeta

Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

O Brasil deu início à estruturação de uma rede nacional de informações sobre lixo espacial. Os principais objetivos da iniciativa são estabelecer o monitoramento dos detritos e gerenciar o risco de colisão com satélites brasileiros, ampliar a segurança de lançamentos realizados no Centro Espacial de Alcântara, no Maranhão, e reduzir riscos de acidentes na reentrada de artefatos em rota de colisão com o território nacional. A estrutura também irá colaborar com as redes internacionais de vigilância de detritos espaciais. Estima-se a existência de mais de 130 milhões de objetos – a maioria deles milimétricos – orbitando o planeta Terra.

A primeira fase será estabelecida com a conclusão da aquisição pela Divisão de Engenharia Aeronáutica e Aeroespacial do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos, de um sistema de gerenciamento de riscos e de três telescópios. O investimento, de R$ 12 milhões, será da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

Com espelhos em torno de 40 centímetros (cm) de diâmetro, os três telescópios estão em processo de aquisição. A compra deverá ser iniciada ainda em 2024, caso os recursos sejam desembolsados no prazo previsto. Segundo o engenheiro mecânico Willer Gomes dos Santos, responsável pelo Laboratório de Monitoramento de Objetos Espaciais (LMOE) do ITA, está programada uma expansão futura do sistema por meio da incorporação de um telescópio maior com abertura de cerca de 1 metro (m) de diâmetro.

“Os telescópios de maior abertura são capazes de detectar artefatos de menor brilho. Também são usados para identificar e caracterizar objetos ainda não catalogados”, explica o engenheiro aeroespacial Carlos Amaral, membro do LMOE-ITA e capitão da Força Aérea Brasileira (FAB). “Telescópios de abertura menor, quando empregados com equipamentos maiores, são utilizados principalmente para determinação preliminar da órbita de artefatos. Seus dados são empregados na correlação com outros objetos já catalogados”, complementa.

Os três telescópios terão como foco principal a observação de objetos que se deslocam por órbitas médias, entre 2 mil quilômetros (km) da Terra e 35.786 km, e altas, acima de 35.786 km. Esta última altura define a chamada órbita geossíncrona, na qual um satélite se desloca no espaço com a velocidade de rotação da Terra, de forma que ele fica parado sobre um ponto na superfície do planeta. Opera nessa órbita, por exemplo, o Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas (SGDC) (ver Pesquisa FAPESP nº 256). “Embora não seja o escopo de utilização pretendido, os telescópios também serão capazes de observar objetos em órbita baixa”, detalha o capitão.

Após a aquisição dos telescópios, o prazo previsto de instalação é de um ano. Um dos aparelhos deverá ser integrado ao Observatório Pico dos Dias, do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), no município mineiro de Brazópolis. Estuda-se instalar os outros dois em São Paulo e Goiás.

O sistema de gerenciamento de risco já foi adquirido e encontra-se em operação desde janeiro deste ano. Denominado GSTT Orbit Guard, é um software desenvolvido pela empresa italiana GMSPAZIO, que utiliza informações coletadas por telescópios e outros tipos de sensores, como radares, para prever e prevenir riscos de colisões.

No Brasil, o sistema atua de forma duplicada, com uma plataforma de informações em operação no Centro de Operações Espaciais da FAB, em Brasília, órgão responsável pela supervisão, controle e operação dos satélites militares brasileiros. A outra plataforma está instalada no LMOE-ITA, com enfoque voltado para o desenvolvimento de pesquisas e a capacitação de mão de obra para o setor de Defesa e a indústria aeroespacial brasileira.

“Hoje já processamos dados fornecidos por outros sensores, como o telescópio automatizado ROBO40, instalado no LNA, com espelho de 40 cm de diâmetro”, informa Amaral. O equipamento serve principalmente às observações astronômicas – o rastreamento de lixo espacial é uma atividade secundária.

Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

Meta de 15 telescópios
O projeto do ITA prevê também o monitoramento de órbitas baixas, até 2 mil km de altitude. Opera nesse patamar a maioria dos 30 satélites brasileiros ativos, entre eles os Satélites Sino-Brasileiros de Recursos Terrestres (CBERS), o governamental Amazonia 1 (ver Pesquisa FAPESP n° 300), que usa sensoriamento remoto para monitorar o desmatamento e a atividade agrícola na Amazônia, e o nanossatélite de observação da Terra e coleta de dados VCUB1, da Visiona, joint venture entre a Embraer Defesa & Segurança e a Telebras.

“Uma boa configuração para uma rede nacional de monitoramento de detritos espaciais deveria ser composta de pelo menos 15 equipamentos dedicados a essa tarefa, com diferentes diâmetros, instalados em localidades distintas”, avalia o astrofísico Wagner Corradi, diretor do LNA. “O território brasileiro é muito extenso. Precisamos de informações coletadas em diferentes locais para uma boa triangulação de dados, o que permite estabelecer adequadamente a trajetória e a velocidade dos objetos”, justifica. O pesquisador explica que a informação sobre o percurso do lixo espacial permite manobrar de forma precisa os satélites e evitar possíveis colisões.

A maioria dos telescópios dedicados ao rastreamento de lixo espacial está no hemisfério Norte e há muitas lacunas na observação abaixo da linha do Equador. No Brasil, o único equipamento dedicado a essa tarefa é o Panoramic Electro Optical System (PanEOS), que pertence à Agência Espacial Federal Russa (Roscosmos). Está instalado desde 2017 no Observatório Pico dos Dias, após acordo com a Agência Espacial Brasileira (AEB), e sua gestão é partilhada com a Fundação de Pesquisa e Assessoramento à Indústria, com sede em Itajubá (MG).

O instrumento, formado por um conjunto de câmeras, é composto de um telescópio principal com lente de 75 cm de diâmetro, complementado por dois de 25 cm e dois de 13,5 cm. Como informa Corradi, o foco de observação do PanEOS é determinado pela Roscosmos, que também é a destinatária dos dados coletados. “Temos acesso total aos dados gerados pelo PanEOS. Eles estão armazenados e à disposição de quem quiser usar. Mas não temos, a priori, a prerrogativa de escolher os alvos do telescópio. A rede nacional vem justamente para termos liberdade de escolher esses alvos”, diz o diretor do LNA.

A oportunidade de uso do PanEOS proporcionou ao físico colombiano William Humberto Úsuga Giraldo desenvolver a primeira máscara brasileira para detecção de fragmentos espaciais em imagens de telescópio. Foi objeto de seu mestrado em Engenharia e Ciências Aerospaciais na Escola de Ciências e Tecnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em 2022.

A máscara é composta por um procedimento computacional capaz de filtrar e diferenciar na imagem capturada pelo telescópio o que é lixo espacial e o que é estrela no fundo do céu. Elas são de uso exclusivo dos telescópios para os quais foram criadas. O PanEOS, contudo, já tem máscaras russas. Para o astrofísico José Dias do Nascimento Júnior, orientador de Giraldo no mestrado, o projeto abre caminho para pesquisas brasileiras com o PanEOS e proporciona capacitação para desenvolvimento no Brasil de novas máscaras para leitura de dados sobre detritos espaciais.

Está prevista para 2025 a entrada em operação de um telescópio de observação de detritos no Observatório Astronômico e do Geoespaço da Paraíba, no Sítio Unha de Gato, nas proximidades de Juazeirinho (PB). O projeto é resultado de um acordo entre a Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e o Observatório Astronômico de Xangai, na China. O equipamento FocusGeo é composto por três telescópios de 18 cm de diâmetro.

“Estamos na fase de elaboração do memorando de operação do telescópio”, diz o físico Lourivaldo Mota Lima, do Departamento de Física da UEPB e coordenador do projeto. Ele adianta, porém, que as informações coletadas pertencerão ao observatório chinês, que poderá, a seu critério, disponibilizar os dados para instituições e pesquisadores brasileiros ou sistemas internacionais de vigilância de lixo espacial. “O propósito da UEPB é utilizar as imagens geradas para pesquisas assim que o telescópio entrar em operação”, esclarece Lima. “Pelo acordo firmado, nos cinco primeiros anos, as imagens estarão à disposição dos pesquisadores envolvidos no projeto, no Brasil ou no exterior.”

Comunicação LNATelescópio PanEOS: único equipamento no Brasil dedicado a monitorar detritos espaciaisComunicação LNA

Milhões de detritos no espaço
Além de autonomia operacional, a constituição de uma estrutura própria de observação e rastreamento de lixo espacial permitirá ao Brasil ter acesso privilegiado às iniciativas internacionais que monitoram esses fragmentos, como a Rede de Vigilância Espacial dos Estados Unidos e o Centro Europeu de Operações Espaciais. Segundo Corradi, nações e instituições que colaboram com informações das redes internacionais têm acesso amplo aos dados coletados por outros países, enquanto os não colaboradores conseguem acessar apenas dados públicos.

Em boletim emitido em julho de 2024, a Agência Espacial Europeia (ESA) estimou que vagueiam pela órbita terrestre 40,5 mil detritos espaciais maiores de 10 cm, 1,1 milhão de objetos entre 1 cm e 10 cm e 130 milhões de detritos de 1 milímetro (mm) a 1 cm. Apenas 36.860 objetos, os maiores, são regularmente rastreados pelas redes de vigilância espacial e mantidos em seus catálogos.

A maioria dos fragmentos é resultante de aproximadamente 650 colisões, explosões e rompimentos gerados em artefatos espaciais, como o choque do satélite desativado russo Kosmos 2251 com o norte-americano Iridium 33, em 2009, que produziu 2 mil detritos maiores de 10 cm e milhares de fragmentos menores.

“Um objeto milimétrico viajando em velocidades que superam 20 mil quilômetros por hora pode causar danos significativos ao colidir com um satélite, um telescópio espacial ou a Estação Espacial Internacional”, diz o astrofísico Roberto Dias da Costa, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). “Um satélite avariado pode ter impacto significativo nas telecomunicações, na vigilância territorial ou na previsão climática.”

Para a vida na Terra, o lixo espacial ainda não gerou danos concretos. Só há conhecimento de uma pessoa atingida por fragmentos vindos do espaço, a norte-americana Lottie Williams, em janeiro de 1997, sem nenhuma consequência. “Não há registro de danos materiais significativos”, relata Costa. A maioria dos objetos perdidos no espaço, diz o professor da USP, é de tamanho reduzido, o que faz com que queimem e se desintegrem ao entrarem na atmosfera terrestre. Até hoje, os detritos maiores que não queimaram ou se fragmentaram caíram principalmente em áreas desérticas ou em oceanos. “Mas os riscos sempre existem”, adverte.

NasaInvólucro do motor do foguete Delta 2, que caiu na Arábia Saudita em 2001Nasa

Impacto ambiental desconhecido
Um problema ainda não adequadamente dimen­sionado é o impacto no ambiente e na vida na Terra causado pela poluição do lixo que vem do espaço. “Essa é uma informação que as agências não disponibilizam”, diz o matemático Jorge Kennety Silva Formiga, pesquisador do Departamento de Engenharia Ambiental do Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (ICT-Unesp), em São José dos Campos. “Sabemos que o material que chega à Terra contém titânio, alumínio, ferro, chumbo, entre outros materiais. Mas qual é o impacto ambiental no futuro e quem se responsabilizará por ele?”, indaga o professor.

O pesquisador pondera que é fácil determinar quem é o dono e responsável legal por um foguete ou satélite. Mas quando se trata de fragmentos de artefatos que explodiram ou colidiram com outros objetos, que muitas vezes ao longo de sua trajetória voltam a se chocar com outros artefatos, não é simples estabelecer sua responsabilização.

Formiga e o matemático Denilson Paulo Souza dos Santos, chefe do Departamento de Engenharia Aeronáutica da Faculdade de Engenharia de São José da Boa Vista (FESJ) da Unesp, são coautores de um modelo matemático para determinar a trajetória dos detritos espaciais e as informações sobre a reentrada na atmosfera e o ponto de colisão com a Terra. “O modelo matemático se faz muito importante para o monitoramento dos detritos, já que muitos deles não possuem monitoramento constante pós-vida útil. […] Uma das alternativas em que o estudo pode ser aplicado é a coleta de detrito espacial por exemplo, reduzindo, assim, os problemas com excesso de detrito nas órbitas terrestres”, escreveram em artigo publicado em 2021 no Brazilian Journal of Development.

A proposta da dupla é realizar a análise do ciclo de vida dos resíduos espaciais, especialmente de fragmentos de satélites. “Vamos estudar a dinâmica dos detritos depois de uma explosão ou colisão”, diz Santos. Após essa ocorrência, explica o pesquisador, forma-se uma nuvem de fragmentos. Os algoritmos em desenvolvimento vão analisar a propagação dessa nuvem, a trajetória dos objetos e, se for o caso, seu ponto de reentrada na atmosfera terrestre. “Conhecendo todo o ciclo de vida dos detritos, poderemos determinar sua origem, seu risco e os responsáveis legais pelo resíduo”, pondera Formiga.

Com o auxílio da FAPESP, os dois professores também propuseram uma estratégia de mitigação preventiva dos efeitos dos detritos espaciais baseada em manobras para a alteração da rota dos objetos. Isso se daria por meio de impulsos gerados por um canhão de laser terrestre, uma técnica proposta pelo físico norte-americano Claude Philipps em artigo publicado na revista Acta Astronautica, em 2014.

Formiga e colegas desenvolveram um modelo matemático que utiliza as informações sobre a trajetória dos detritos e o efeito gravitacional para calcular a propulsão necessária com o laser e os efeitos do pulso do laser no deslocamento do fragmento. O estudo resultou em uma publicação no periódico The European Physical Journal em 2023. O artigo demonstra que o pulso de laser pode realizar uma pequena mudança na variação da velocidade dos detritos, alterando sua rota de reentrada na atmosfera e evitando colisões.

A reportagem acima foi publicada com o título “Lixo na órbita da Terra” na edição impressa n° 346, de dezembro de 2024.

Projetos
1.
Detritos espaciais: Análise do ciclo de vida e mitigação preventiva (nº 23/01391-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Denilson Paulo Souza dos Santos (Unesp); Investimento R$ 46.497,07.
2. Mitigação de detritos espaciais: Dinâmica baseada em manobras combinadas com laser terrestre e propulsão space blower (nº 22/13228-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Jorge Kennety Silva Formiga (Unesp); Investimento R$ 48.123,46.

Artigos científicos
MORAES, L. C. et al. Mapping of space debris: Consequences to the environment and the space program. Brazilian Journal of Development. 16 ago. 2021.
PHIPPS, C. R. A laser-optical system to re-enter or lower low Earth orbit space debris. Acta Astronautica. v. 93, p. 418-29. jan. 2014.
FORMIGA, J. K. S. et al. Ground-based laser effect on space debris maneuvering. The European Physical Journal. v. 232, p. 3059-72. dez. 2023.

Dissertação de mestrado
GIRALDO, W. H. U. Máscara para detecção de detritos espaciais em imagens de telescópio adquiridas em modo estático. UFRJ. 31 jan. 2022.

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