Imprimir PDF Republicar

ENTREVISTA

Brasileira conta como foi feita primeira imagem de buraco negro da Via Láctea

Astrofísica Lia Medeiros participa da equipe que obteve o flagrante da fonte de rádio no centro da galáxia conhecida como Sagitário A*

A astrofísica carioca estuda se os buracos negros estão de acordo com a relatividade geral

Dan Komoda / IAS

Em 12 de maio, uma imagem do buraco negro supermassivo no centro da Via Láctea foi divulgada pelo Telescópio Horizonte de Eventos (EHT), uma colaboração internacional que reúne mais de 300 pesquisadores. Essa foi a segunda imagem direta obtida de um desses objetos extremamente densos e misteriosos, que atraem e sugam, por ação da gravidade, toda a matéria, inclusive a luz, situada a uma certa distância de seu interior. A primeira tinha vindo a público em abril de 2019, quando a mesma equipe do EHT publicou um flagrante do buraco negro situado no centro da Messier 87 (M87), uma galáxia gigante distante 55 milhões de anos-luz da Terra.

Membro do EHT, a astrofísica brasileira Lia Medeiros, de 31 anos, que faz estágio de pós-doutorado no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, nos Estados Unidos, participou de ambos os trabalhos. Desde o início de 2020, a pesquisadora é uma das duas coordenadoras do grupo dentro do EHT que estuda a física gravitacional dos buracos negros, baseada essencialmente na teoria da relatividade geral de Albert Einstein (1879-1955). A divulgação da imagem de Sagitário A* (lê-se Sagitário A-estrela), nome do buraco negro no centro de nossa galáxia, foi acompanhada da publicação de seis artigos científicos em uma edição especial do periódico Astrophysical Journal Letters. Medeiros foi uma das líderes do grupo que redigiu um dos papers. “Os buracos negros são um laboratório para se testar a gravidade proposta por Einstein”, comenta essa carioca que vive nos Estados Unidos desde criança.

Nos dois casos, os retratos cósmicos foram produzidos pelo processamento e interpretação de dados observacionais captados por uma rede de radiotelescópios terrestres situados em diferentes partes do globo. Por definição, buracos negros não emitem luz, mas seu entorno “brilha” em certos comprimentos das ondas de rádio. As chamadas imagens diretas do estranho objeto situado no coração das duas galáxias mostram, na verdade, a sombra do buraco negro, uma região central escura, envolta por um anel de matéria, de gás quente, artificialmente colorizado em tons alaranjados.

Até agora, as imagens da sombra dos dois buracos negros confirmam as ideias propostas pelo físico alemão. É o que explica Medeiros em entrevista concedida por aplicativo de vídeo enquanto retornava de carro, como passageira, de Washington para Princeton em 13 de maio. Na véspera, ela e colegas do EHT tinham sido convocados pela National Science Foundation (NSF) para participar na capital norte-americana de um evento público, transmitido pela internet, em que responderam perguntas sobre a imagem de Sagitário A*.

Como é o processo de obtenção de imagem de um buraco negro?
Usamos uma técnica chamada interferometria, que combina os dados observacionais obtidos por diferentes radiotelescópios e possibilita a obtenção de imagens com maior resolução. Quanto maior a distância entre os telescópios da rede, maior a resolução da imagem obtida. Não construímos uma rede de telescópios. Usamos os que já existiam, fizemos modificações neles e instalamos câmeras novas para que pudessem trabalhar em conjunto. Dessa forma, criamos um radiotelescópio virtual quase do tamanho da Terra.

Quantos telescópios foram usados nas observações?
Em 2017, o EHT observou os buracos negros da M87 e de Sagitário A* com oito radiotelescópios, dois no Chile, dois no Havaí, um no Arizona [estado norte-americano], um no México, um na Espanha e um na Antártida. Formamos pares de telescópios que operam de forma sincronizada e cada dupla observa um ponto no espaço e obtém um pedaço da informação. Depois juntamos todos os pedaços, com o emprego de algoritmos e softwares, e obtemos uma imagem. Observamos em um comprimento de onda de rádio bem pequeno, de 1,3 milímetro (mm), maior do que o da luz visível. A partir da diferença de tempo com que essas ondas chegam em cada par de telescópios, conseguimos calcular, de forma muito precisa, de onde elas vieram. É algo parecido com o funcionamento do sistema de GPS, que registra o tempo que um sinal emitido por satélites no espaço demora para chegar à Terra e o utiliza para calcular, por exemplo, a localização de um celular.

As imagens dos buracos negros na M87 e na Via Láctea confirmam as previsões da relatividade geral

Mas como a montanha de dados obtida nas observações é usada para produzir uma imagem?
É algo muito mais complicado do que simplesmente ter uma câmera apontada para o espaço e fazer uma imagem de um objeto. Temos de realizar muitos cálculos para construir uma imagem a partir dos dados coletados nos telescópios, que estão instalados em montanhas altas para não serem afetados pelo vapor-d’água da atmosfera. Ondas de rádio de 1,3 mm interagem com a água. Gravamos todos os dados referentes a cada onda de rádio observada. Não só de onde a onda veio, mas também a hora exata de sua emissão, tudo com muita precisão. Os telescópios têm relógios atômicos extremamente precisos. Cada par de telescópios registra um pedacinho da informação sobre a imagem.

Por quanto tempo os dois buracos negros foram observados?
Cada buraco negro foi observado por cerca de 12 horas durante uma semana de abril de 2017. Fizemos várias observações nessa semana. Alguns dados foram obtidos no começo do tempo de observação, outros no final. Cada ponto da imagem foi acompanhado por dois telescópios simultaneamente. A localização geográfica determina o que cada telescópico consegue observar. Não é possível ver todas as áreas do espaço o tempo todo a partir de todos os lugares da Terra. Para a imagem de Sagitário A*, o telescópio no polo Sul foi muito importante. Ele consegue observar esse buraco negro quase o tempo todo.

Por que as imagens demoraram anos para ser produzidas após as observações terem sido realizadas?
O acesso aos dados e seu processamento é muito complicado. Cada telescópio guarda toda a informação de cada onda de rádio que conseguiu detectar em discos rígidos. Esses dados chegam a algo como 3,5 petabytes e equivalem a mais ou menos 100 milhões de vídeos de uma rede social como o TikTok. Não há como transmitir essa quantidade de dados pela internet. Os discos rígidos de cada um dos oito telescópios têm de ser transportados por avião, em grandes caixas, para centros de computação e análise de dois lugares, Bonn, na Alemanha, e Boston, nos Estados Unidos. Nesses centros, os dados são correlacionados e as observações de um telescópio sincronizadas com as dos outros. Depois tem início o trabalho de processamento dos dados para gerar as imagens. Outra dificuldade é que não temos dados sobre todos os pontos do espaço que gostaríamos de ter para construir a imagem dos buracos negros.

Como assim?
Em muitos lugares da Terra, não temos telescópios. Portanto, não conseguimos observar algumas áreas do buraco negro. Nossa informação é incompleta. Baseados nas nossas simulações computacionais e nos dados que temos, tentamos prever como são essas áreas sem informação. É como tentar tocar uma música em um piano com algumas teclas faltando. Não é possível saber exatamente como seria a música e como as teclas em falta seriam usadas para tocá-la. Mas, com as informações disponíveis, é possível tentar adivinhar a música. Então, no final do nosso trabalho, geramos milhares de imagens do mesmo buraco negro que são tecnicamente compatíveis e consistentes com os nossos dados observacionais. Tanto no caso do buraco negro da M87 como no do Sagitário A*, o que divulgamos é uma espécie de imagem média de todas as nossas reconstruções, a versão mais compatível com nossos dados e a teoria.

A imagem de Sagitário A* demorou três anos a mais para ser divulgada do que a do buraco negro da M87. Isso quer dizer que ela foi mais difícil de ser obtida?
Sim, foi mais complicado. O buraco negro está no centro da Via Láctea e a Terra está em um dos braços da galáxia, uma posição que atrapalha nosso campo de visão. As ondas de rádio que observamos têm de atravessar a galáxia e são afetadas por campos magnéticos gerados pela matéria ionizada [com cargas elétricas] da Via Láctea. Além disso, por ser muito menor do que o buraco da M87, os contornos de Sagitário A* aparecem para nós como mais instáveis. O brilho e o padrão de distribuição do gás em torno de Sagitário A* mudam muito mais rapidamente. Na M87, o gás do anel demora dias ou semanas para completar uma órbita em torno do buraco negro. Na Via Láctea, isso ocorre em poucos minutos. É como tentar obter uma imagem nítida de um objeto em constante movimento.

Aparecem três pontos mais luminosos no anel em torno de Sagitário A*. O que eles querem dizer?
Não acreditamos que esses pontos existam de fato. Não devemos gastar tempo tentando entendê-los. Eles devem ser um efeito dos instrumentos usados nas observações e dos algoritmos computacionais empregados para gerar a imagem. Produzimos outras versões da imagem do buraco negro, que também são consistentes com os nossos dados, mas que apresentam esses pontos distribuídos de outra forma pelo anel. Ou seja, sua existência é incerta. Sobre o buraco negro no centro da Via Láctea, temos confiança que ele tem um anel – conseguimos medir seu diâmetro e espessura – e uma região escura no centro desse anel. Conseguimos comparar a intensidade da região escura com a do anel em si. Essas são as estruturas do buraco negro em que acreditamos. A imagem de Sagitário A* é bem parecida com a do buraco negro da M87. A única diferença é que o brilho na parte sul do anel da M87 é mais intenso do que no norte. Essa distinção deve ser real.

Colaboração EHTImagens divulgadas pela colaboração EHT dos dois buracos no centro de galáxias, o da M87 (à esq.) e o da Via LácteaColaboração EHT

O que essa diferença de brilho pode significar?
Quando um disco de matéria rodeia um buraco negro, ocorre um efeito relativístico denominado doppler beaming. A matéria que se movimenta no sentido do observador em velocidades próximas à da luz aparece como mais brilhante e a que está no lado oposto como menos intensa. Esse efeito muda o comprimento e a intensidade da luz. É isso que vemos na imagem do buraco negro da M87.

Qual é o seu trabalho dentro do EHT?
A colaboração é dividida em grupos de estudos, que focam em áreas diferentes, como produzir as imagens dos buracos negros ou fazer as simulações teóricas desses objetos. Já participei da maior parte dos grupos de pesquisa, especialmente do de simulações. No meu doutorado, fiz simulações de como a matéria em torno de um buraco negro poderia cair nele e as usei para prever como poderia ser Sagitário A*. Em 2019, quando divulgamos a imagem da M87, não havia um grupo dedicado a testar a teoria da gravidade de Einstein, a relatividade geral. Em janeiro de 2020, comecei a coordenar esse grupo ao lado de um colega do projeto. Cada grupo tem dois ou três coordenadores.

Por que a imagem dos dois buracos está em conformidade com a relatividade geral?
Para Einstein, a gravidade é uma curvatura do espaço-tempo, causada pela distribuição desigual de matéria. A teoria prevê a existência e as características de um buraco negro, em especial sua geometria, que seria muito específica. A geometria do buraco negro é calculada pela métrica de Kerr, que é uma solução das equações de campo da relatividade geral. O formato do anel nas imagens de buraco negro contém muita informação sobre a buraco negro em si. Medindo o tamanho do anel, sabemos se o buraco negro apresenta a geometria de Kerr. Nos dois casos, na M87 e na Via Láctea, as imagens confirmam a teoria. Foi muito importante testar a relatividade em buracos negros com massas diferentes, em regimes de força gravitacional muito forte, perto do horizonte de eventos [região no entorno do buraco negro a partir da qual a matéria é atraída]. A massa de Sagitário A*, que dista 27 mil anos-luz, equivale a cerca de 4 milhões de sóis. O buraco negro da M87 está 2 mil vezes mais longe, mas sua massa é 1.500 vezes maior: equivalente à de 6,5 bilhões de estrelas como o Sol.

Como surgiu seu interesse por estudar astrofísica?
Nasci no Rio de Janeiro e passei a maior parte da minha infância morando em várias cidades do Brasil e alguns anos em Cambridge, no Reino Unido. Aprendi português e inglês e ficava alternando entre as duas línguas. Ainda criança, passei a morar nos Estados Unidos. Então, desde pequena, percebi que a matemática era a mesma em todos os países. Resolvi focar nela. Sabia que ela seria sempre a mesma independentemente de onde eu estivesse. Era algo fundamental e universal.

E por que decidiu pela pesquisa sobre buracos negros?
Com 16 ou 17 anos, já estudava cálculo, física e astronomia no ensino médio na Califórnia e me dei conta de que a matemática era a linguagem não só para descrever, mas também para prever o Universo. Para mim, o buraco negro é o melhor exemplo disso. Fiquei fascinada quando descobri que esse fenômeno mexeria com o tempo, dilatando-o. E quis aprender mais sobre isso. Estudei física e astrofísica na Universidade da Califórnia em Berkeley e depois fiz mestrado e doutorado em física teórica na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara. Ainda durante o doutorado, depois que terminei as aulas em Santa Bárbara, passei três anos no Steward Observatory, da Universidade do Arizona, e um na Black Hole Initiative, da Universidade Harvard. Em seguida, com uma bolsa de pós-douto-rado da NSF, fui para o Instituto de Estudos Avançados [o último local em que Einstein trabalhou].

Há outros brasileiros no EHT?
Que eu saiba, não. Conheço muitos astrônomos brasileiros, amigos e colegas. Dei palestras no Brasil em 2019 e passo sempre férias aí com minha família. Mas nunca trabalhei com a comunidade científica brasileira. Tenho muito interesse em fazer isso algum dia.

Republicar