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biotecnologia

Cabras transgênicas

Animais recebem genes humanos e produzem proteínas no leite para tratamento de doenças

Gluca: a cabra transgênica da Unifor que tem no leite uma proteína humana para tratamento da doença de Gaucher

UNIFORGluca: a cabra transgênica da Unifor que tem no leite uma proteína humana para tratamento da doença de GaucherUNIFOR

A cabra Gluca vive num abrigo especial na Universidade de Fortaleza (Unifor), no Ceará. Trata-se do primeiro caprino transgênico da América Latina produzido pela técnica de clonagem com células geneticamente modificadas. O nome vem de uma proteína que ela tem no leite, chamada de glucocerebrosidase, que atua no processamento de glicocerebrosídeos, um tipo de gordura celular. Quem não a produz tem comprometimento de órgãos como fígado, baço e no sistema nervoso central, além de dor nos ossos. Os sintomas fazem parte da caracterização clínica da doença de Gaucher (pronuncia-se Gochê), uma enfermidade genética rara. A Gluca é parte de um experimento iniciado na Unifor para que cabras transgênicas tenham no leite a glucocerebrosidase, que, depois de extraída e purificada, poderá ser transformada em um biofármaco para combater essa doença. Em outubro, o rebanho transgênico instalado no Núcleo de Biologia Experimental (Nubex) da universidade, formado por Gluca e uma cabra clonada da própria Gluca chamada Beta, poderá aumentar. A primogênita está prenhe de dois ou três filhotes – não foi possível definir com precisão pelo ultrassom – com chance de 50% de cada filhote  ser transgênico. Isso acontece porque o pai não é um animal transgênico.

Quando der à luz, será a primeira vez que Gluca, que nasceu em março de 2014, terá uma lactação normal. Quando ela tinha 6 meses de idade, os pesquisadores induziram a lactação por meio de hormônios para comprovar a presença da proteína no leite. “Quando Gluca estiver lactando, teremos muito mais leite disponível para verificação de sua composição, funcionalidade e testes de purificação”, diz Marcelo Bertolini, que coordenou o projeto na Unifor, onde ficou por seis anos. Desde julho deste ano ele é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Na lactação induzida, a presença da glucocerebrosidase no leite da Gluca variou de 4 a 8 gramas por litro (g/l). Se tivermos a média de 5 g/l com quatro cabras, estará garantido o número de animais necessários para suprir todos os cerca de 700 pacientes que têm a doença de Gaucher no Brasil”, diz Bertolini. Com a Gluca e a Beta, e se os dois ou três cabritos forem fêmeas e tiverem a proteína no leite, estará completo o rebanho para a produção do biofármaco.

A disponibilidade do medicamento brasileiro, no entanto, não ocorrerá imediatamente. Será preciso purificar a molécula de proteína do leite e produzir um fármaco injetável, em um processo que pode demorar cinco anos ou mais. A intenção do grupo de pesquisadores é esperar as primeiras análises com o leite natural da Gluca para buscar parcerias em empresas e institutos de pesquisa, requisito fundamental na realização dos testes clínicos e submissão do medicamento à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para aprovação. A empresa Quatro G, parceira do grupo da Unifor, vai receber o leite da Gluca para purificar a proteína. No início do projeto, a empresa, que está sediada no Parque Tecnológico da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), em Porto Alegre, fez a produção das sequências genéticas para a inserção do gene da glucocerebrosidase no genoma da cabra.

O desenvolvimento da Gluca se deu pela técnica de clonagem com células geneticamente modificadas. O primeiro passo é introduzir uma sequência genética complexa contendo o gene humano da proteína glucocerebrosidase em células de uma cabra. Quando o gene se incorpora ao genoma do animal, as melhores células são escolhidas pelos pesquisadores para inserção nos ovócitos, que são as células reprodutoras femininas, cujo DNA materno fora removido. Depois, o embrião clonado e transgênico é transferido para uma cabra não transgênica para o estabelecimento da gestação. “A eficiência desse método ainda é baixa, mas o resultado foi positivo considerando o altíssimo valor científico do caprino transgênico”, explica o médico veterinário Leonardo Tondello Martins, professor do Centro de Ciências da Saúde da Unifor. “No experimento que resultou no nascimento da Gluca foram transferidos 858 embriões, divididos entre 60 receptoras. Das 11 prenhezes identificadas, nasceu um animal saudável e transgênico, a Gluca”, conta Leonardo. O projeto recebeu recursos de R$ 2,4 milhões da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) no Programa de Subvenção Econômica captado pela Quatro G, em parceria com os pesquisadores da Unifor. Os animais, da raça anglo-nubiano, foram cedidos pela Esperança Agropecuária, do Grupo Edson Queiroz, que também está ligado à fundação de mesmo nome que mantém a Unifor.

062-065_cabra trans_236Origens distintas
A produção de um medicamento contra a doença de Gaucher no país poderá levar o governo brasileiro a economizar mais de R$ 140 milhões por ano –
R$ 200 mil por paciente – com medicamentos importados para os doentes que os recebem gratuitamente. “Estimamos, com dados que temos do mercado, que o uso de animais como biorreatores para fármacos complexos pode ficar até 80% mais barato em relação a outras técnicas biotecnológicas”, diz Bertolini.

Os medicamentos utilizados contra a doença de Gaucher são o Cerezyme, produzido pela técnica de DNA recombinante, caracterizada pela inserção de um gene de uma proteína em células de ovário de hamster chinês, desenvolvido pela empresa norte-americana Genzyme Corporation, atualmente uma subsidiária da francesa Sanofi. O outro é o Uplyso, da israelense Protalix, que utiliza células de cenoura transgênica na fabricação do fármaco. Esses medicamentos não possuem a própria glucocerebrosidase, mas substâncias que promovem o mesmo efeito.

A produção de medicamentos utilizando animais como plataforma tem no mundo dois exemplos que chegaram ao mercado, segundo a Sociedade Internacional de Tecnologia Transgênica (ISTT, na sigla em inglês). O ATryn foi o primeiro, aprovado em 2006 na Europa e em 2009 nos Estados Unidos. Ele foi desenvolvido pela Genzyme Transgenics Corporation (GTC) Biotherapeutics, hoje da norte-americana rEVO Biologics, que disponibiliza a antitrombina alfa a partir do leite de cabras transgênicas. A substância é usada no tratamento de tromboembolismo em cirurgias de pacientes com deficiência congênita da antitrombina hereditária, doença que provoca coágulos no interior dos vasos sanguíneos. O segundo é o Ruconest, aprovado em 2013, medicamento usado para o angioedema hereditário, mal que atinge pessoas que nascem com deficiência da enzima inibidora de esterase C1 (C1INH). A enfermidade provoca inchaços dolorosos em partes moles do corpo, principalmente no abdômen, rosto e genitais. A solução encontrada pela empresa que desenvolveu o medicamento, a holandesa Pharming, foi expressar e purificar a enzima no leite de coelhas transgênicas. Para o agrônomo Elibio Rech, pesquisador na Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília, as empresas farmacêuticas estão muito interessadas em fazer fármacos com animais. “Considero o produto desenvolvido [pelo grupo da Unifor] de extrema importância científica e tecnológica para o país”, diz Rech.

Aos 10 meses de idade, fêmea transgênica obtida na Uece, da raça canindé

ueceAos 10 meses de idade, fêmea transgênica obtida na Uece, da raça canindéuece

Também no Ceará
No Brasil, o experimento pioneiro na área de animais transgênicos também aconteceu em Fortaleza, na Universidade Estadual do Ceará (Uece). No total, já nasceram sete cabras transgênicas desde 2008, em projeto coordenado por Vicente José Freitas, professor da Faculdade de Veterinária da Uece. Os animais têm o gene codificador do fator estimulante de colônia de granulócitos humanos (hG-CSF), importante para reforçar o sistema imunológico em pacientes que passaram por quimioterapia e estão vulneráveis a infecções oportunistas, como aqueles com Aids. Atualmente existem medicamentos com o mesmo efeito produzidos no exterior que oferecem proteínas análogas sintetizadas por bactérias recombinantes ou ovários de hamster chinês. As proteínas presentes nas cabras transgênicas da Uece e da Unifor são iguais às existentes no ser humano, portanto possivelmente mais fáceis de se adaptarem ao organismo.

Os experimentos na Uece foram realizados em parceria com a equipe do professor Antonio Carlos Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e duas pesquisadoras russas: Irina Serova, do Instituto de Genética Molecular de Moscou, e Lyudmila Andreeva, do Instituto de Citologia e Genética de Novosibirsk. “Conseguimos 600 microgramas (mcg) da proteína por litro (l) de leite das cabras. A única referência que temos foi um projeto da Coreia do Sul, entre dois institutos de pesquisa e a empresa Hanmi, que em experimentos apresentou 50 mcg/l”, conta Vicente.

“O nosso problema é encontrar um parceiro empresarial para que possamos purificar a proteína do leite e fazer os testes clínicos. Vão passando os anos e isso não acontece”, lamenta Vicente. “Minha esperança é uma parceria com o Instituto Vital Brasil, no Rio de Janeiro, que no ano passado demonstrou interesse em ter nossos animais transgênicos para purificação [da proteína] e produção do fármaco.” De acordo com o pesquisador, como existem vários medicamentos produzidos por bactérias ou ovários de hamster, embora não sejam de proteínas 100% humanas, as indústrias farmacêuticas não querem mudar o sistema de produção. Ele lembra que o custo da fabricação em animais é menor que em cultivo celular e cita um artigo científico – “Expression systems and species used for transgenic animal bioreactors” – de pesquisadores de duas universidades chinesas e uma japonesa. Eles fazem um resumo mostrando, de maneira geral, que o custo de 50 quilos de proteína por ano seria de US$ 147 por grama (g) do produto em cultivo celular e US$ 20/g em animal transgênico. Para Vicente José, apesar de todas as dificuldades de investir em biorreatores de animais, os experimentos realizados até agora mostram que ainda dá tempo de o Brasil vir a ser uma referência nessa área.

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