Pensar no usuário é uma preocupação constante da designer Aline Darc, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Como parte de seu doutorado, concluído em julho de 2023 na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Bauru, ela procurou aparatos eletrônicos que detectassem objetos acima da cintura e evitassem colisões e quedas de pessoas com baixa ou nenhuma visão durante suas caminhadas. As bengalas, normalmente usadas por deficientes visuais, só alertam para a existência de obstáculos próximos ao chão.
Darc não gostou do que viu, como os protótipos de capacetes que poderiam detectar obstáculos e lhe pareceram desconfortáveis, e foi a campo. Entrevistou alunos do Lar Escola Santa Luzia para Cegos, em Bauru (SP), definiu os requisitos do projeto e criou uma mochila com uma câmera com sensor de profundidade ligada a motores que vibram, alertando seu portador para a proximidade de obstáculos acima da cintura.
A câmera fica presa a uma alça da mochila e os demais componentes em uma caixa dentro dela, que pode ser aproveitada para carregar outros objetos (ver infográfico abaixo). De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2019, 3,4% da população, o equivalente a 7 milhões de pessoas, tem deficiência visual. Globalmente, são 2,2 bilhões de indivíduos com baixa ou nenhuma capacidade visual.
Construído com uma equipe de engenheiros eletricistas da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), o primeiro protótipo do dispositivo, chamado NavWear, pesa 418 gramas, como detalhado em um artigo publicado em março deste ano na revista científica Disability and Rehabilitation: Assistive Technology. Em um ensaio preliminar realizado na Ufes, 10 pessoas vendadas vestiram a mochila e percorreram com ela e com uma bengala um corredor com caixas. Ao final do teste, consideraram a inovação eficaz para evitar colisões ao longo do percurso proposto.
O trabalho contou com o apoio financeiro da FAPESP, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (Fapes) – e ainda não terminou. “Pretendemos construir outro protótipo, com componentes menores, que foram lançados depois que começamos a trabalhar”, diz ela. “Queremos também fazer uma versão com sinal sonoro e não apenas tátil, para que os usuários possam escolher.”
A pedido de Pesquisa FAPESP, a equipe de Orientação e Mobilidade da Fundação Dorina Nowill para Cegos, de São Paulo, avaliou a proposta e, em uma nota, considerou-a adequada para pessoas com deficiência visual que já tenham segurança e autonomia para usar recursos tecnológicos. “Como o objetivo é o uso em ambientes externos, seria necessário realizar um estudo prático com pessoas com deficiência visual em locais com grande circulação de indivíduos, diferenças na percepção de cada um, objetos, desníveis e outras questões práticas”, avaliou o grupo.
“Os sistemas de navegação como essa mochila, ainda que seja uma tecnologia emergente, têm o mérito de propor soluções para problemas reais”, comenta Vinicius Ramos, do Instituto de Medicina Física e Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, que não participou da pesquisa. “Mas precisamos ter em mente que a mobilidade das pessoas com deficiência visual não depende só das tecnologias. Precisamos também de calçadas melhores.”
50 novas tecnologias
Graduado em relações internacionais, Ramos é membro da Cooperação Global pela Tecnologia Assistiva da Organização Mundial da Saúde (Gate-OMS), que procura reunir órgãos normativos, usuários, empresas e outras partes interessadas para viabilizar a produção de inovações para pessoas com todos os tipos de deficiência. Segundo ele, com o apoio desse grupo, a OMS deve publicar em breve uma lista atualizada de 50 produtos assistivos prioritários, com a recomendação de que sejam incorporados aos sistemas públicos de saúde.
Os chamados dispositivos vestíveis para deficientes visuais são bastante raros. Em julho de 2021, no JAMA Ophthalmology, uma equipe da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, apresentou um protótipo com uma câmera grande angular conectada a uma unidade central de processamento (CPU). O dispositivo é capaz de capturar imagens e analisar o risco de colisão com base no movimento relativo dos objetos aos quais os usuários se aproximam e ao redor de seu campo de visão.
Semelhante ao modelo brasileiro, a câmera estava acoplada ao peito pela alça de uma mochila, dentro da qual estava a CPU. Por sua vez, a CPU se conectava por bluetooth a duas pulseiras, uma em cada braço do usuário. Se a colisão iminente for detectada no lado esquerdo ou direito, a pulseira correspondente vibrará; ambas vibrarão se o obstáculo estiver à frente.
Usado durante um mês por 31 adultos com deficiência visual que utilizam uma bengala longa, um cão-guia ou ambos, o dispositivo, quando ativado, reduziu as colisões em 37%, em comparação com o modo silencioso, quando estava desligado, sem que o usuário soubesse em que modo estava. Em um comunicado da universidade, a equipe responsável pelo projeto informou que pretendia fazer outro protótipo, com componentes menores e mais rápidos, testá-lo e submetê-lo à aprovação dos órgãos oficiais.
Um grupo de estudantes do Instituto de Tecnologia Ramaiah, em Bangalore, na Índia, trabalhando em conjunto com os alunos e professores da Associação Nacional para Cegos (NAV), adotou uma abordagem semelhante: um par de óculos, conectado por fio a um processador que pode ser guardado no bolso, com programas de inteligência artificial instalados nele. Apresentado em julho de 2023, o dispositivo óptico descreve objetos próximos e lê em voz alta textos de cartazes, placas de trânsito e livros. A equipe recebeu um prêmio de US$ 4.400 de um programa de apoio a projetos de engenharia mantido pela Universidade Purdue, dos Estados Unidos, para aprimorar o protótipo, já usado por cerca de 100 alunos do NAV. Similares aos indianos, óculos inteligentes já são produzidos nos Estados Unidos e no Reino Unido e custam o equivalente a R$ 30 mil.
À medida que avançarem, os dispositivos ópticos para caminhadas poderão reforçar os recursos que facilitam o dia a dia das pessoas com deficiência visual. Nos últimos anos, aumentou a oferta, com preços menores, de dispositivos como leitores de tela de computador e de celular, impressoras e teclados em braile para quem tem baixa visão e até um cão-guia robótico para cegos (ver Pesquisa FAPESP nos 314 e 348).
Outras novidades estão a caminho. A própria Darc, que fez um brinquedo para crianças cegas como trabalho de conclusão de sua graduação na Unesp, empenhou-se no desenvolvimento de materiais pedagógicos para uso em sala de aula, em conjunto com outros professores da FAU-USP, onde foi contratada em julho de 2024.
A reportagem acima foi publicada com o título “Olhos eletrônicos” na edição impressa nº 356, de outubro de 2025.
Projeto
Design aplicado à mobilidade de pessoas com deficiência visual: Uma proposta de pesquisa e inovação (nº 19/14438-4); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Fausto Orsi Medola (Unesp); Bolsista Aline Darc Piculo dos Santos; Investimento R$ 184.881,97.
Artigos científicos
PUNDLIK, S. et al. Home-use evaluation of a wearable collision warning device for individuals with severe vision impairments: A randomized clinical trial. JAMA Ophthalmology. v. 139, n. 9. 22 jul. 2021.
SANTOS, A. D. P. dos et al. NavWear: design and evaluation of a wearable device for obstacle detection for blind and visually impaired people. Disability and Rehabilitation: Assistive Technology. 1-15. 18 mar. 2025.
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