Sistema de navegação autônoma de startup de Vitória permite a identificação de obstáculos e o movimento em trajetos predefinidos
Imagem criada em computador do caminhão sem cabine projetado pela Lume Robotics
Lume Robotics
Desde 2023, quatro caminhões sem motorista carregam caixas com produtos de limpeza entre a linha de produção e o centro de distribuição da fabricante Ypê, em Amparo, no interior paulista. Eles dispensam o condutor porque têm um sistema de navegação autônoma desenvolvido pela startup capixaba Lume Robotics, criada em 2019 por seis engenheiros formados na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Os dispositivos integram câmeras e sensores, que captam dados do ambiente e funcionam como os olhos do motorista, e programas de computador, que controlam o motor e as rodas.
“Por ser uma tecnologia extremamente avançada, esse tipo de inovação traz desafios e um processo de aprendizado”, informa a Mercedes-Benz, a fabricante dos caminhões sem motorista, por meio de seu setor de comunicação com a imprensa. “Cada entrega envolve muitos estudos, visitas à operação do cliente e discussões a fim de entendermos e oferecermos a melhor solução para cada operação”, acrescenta o comunicado. “Acreditamos nessa tecnologia e atestamos os benefícios que ela traz para a operação dos clientes em ambientes controlados.”
Em outras operações experimentais, caminhões autônomos transportam fardos de celulose em áreas portuárias da empresa PortCel, no Espírito Santo, e da Suzano, no Maranhão, e um veículo sem motorista carrega amostras no Centro de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação da Petrobras, no Rio de Janeiro. Procuradas pela reportagem para comentar os testes em campo, as companhias não se manifestaram.
Com 55 funcionários, dos quais 35 no setor de pesquisa e desenvolvimento, a startup de Vitória instalou também seu sistema de navegação em um micro-ônibus fabricado pela empresa gaúcha Marcopolo, com capacidade para 21 passageiros. O veículo é programado para mapear instantaneamente a região e evitar obstáculos, circular em ambientes internos e chegar ao destino predefinido. Foi testado em março de 2023 na siderúrgica ArcelorMittal Tubarão, na Grande Vitória, e apresentado publicamente três meses depois.
Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP
“As empresas querem otimizar as operações e reduzir custos”, comenta o engenheiro da computação Rânik Guidolini, diretor-executivo da Lume. Segundo ele, a chamada navegação autônoma propicia uma economia de até 17% no consumo de combustível e de 75% com mão de obra, além de uma redução de acidentes em até 94%. “O motorista, mesmo o mais experiente, nem sempre consegue fazer as trocas de marcha no tempo certo, da forma mais econômica e eficiente”, ele argumenta.
Os movimentos atuais da empresa resultam da experiência bem-sucedida de construção do Automóvel Robótico Autônomo Inteligente (Iara) pela equipe do Laboratório de Computação de Alto Desempenho (LCAD), da Ufes, do qual Guidolini participava. Em 2017, o veículo percorreu 74 quilômetros (km) entre o campus e a cidade de Guarapari, na Região Metropolitana da Grande Vitória, atravessou três municípios e enfrentou o tráfego normal de ruas e avenidas, semáforos e pedágios. Um motorista acompanhou a experiência dentro do carro autônomo durante o trajeto para assumir o controle caso houvesse problemas, o que não ocorreu.
Em 2018, ainda na Ufes, Guidolini participou do desenvolvimento de uma tecnologia que tem se mostrado útil, um rastreador que enquadra cada pedestre em um cruzamento e acompanha momentaneamente seu movimento para prever sua posição instantes depois, como detalhado em um artigo de novembro de 2019 na Computers & Graphics.
No ano seguinte, antes de fundar a empresa, ele integrou a equipe da Ufes e da Embraer que fez o primeiro teste de uma aeronave autônoma do Brasil, um jato Legacy 500. “O objetivo era provar a capacidade do sistema de dirigir o avião pelas pistas de um aeroporto”, conta. “Instalamos os sensores que captam informações do ambiente e computadores para o processamento desses dados e o avião fez o taxiamento [movimento em solo para estacionar ou ir a uma pista de decolagem] sem intervenção humana.”
Lume RoboticsÔnibus sem condutor foi testado em siderúrgica em Vitória (ES); à direita, detalhe do sensor LidarLume Robotics
O funcionamento dos veículos autônomos se apoia em dois sistemas – o de percepção e o de tomada de decisão –, pesquisados tanto na startup quanto nas universidades de Brasília (UnB), de São Paulo (USP) e federais do Espírito Santo, de Minas Gerais (UFMG) e do Rio Grande do Sul (UFRGS) (ver Pesquisa FAPESP nº 315).
O sistema de percepção é constituído por câmeras, sensores, radares e instrumentos de navegação por satélite, instalados em diferentes pontos do veículo, conforme detalhado em um artigo de revisão publicado em março de 2021 na revista Expert Systems with Applications, do qual Guidolini é um dos autores. Em conjunto, esses dispositivos executam tarefas essenciais, como a localização do veículo, o mapeamento de estradas, a detecção de obstáculos e o reconhecimento de sinalização de trânsito.
A plataforma de tomada de decisão, dotada de programas de inteligência artificial, interpreta os dados coletados pelo sistema de percepção e cuida do planejamento de rota e da prevenção de acidentes, de forma que o veículo chegue ao destino definido pelo usuário. Os tipos e a quantidade dos dispositivos variam conforme o veículo e as tarefas que deve desempenhar.
Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP
Escala de automação Os níveis de automação veicular vão do zero, quando o automóvel, ônibus ou caminhão dependem totalmente do motorista, ao cinco, em que os veículos são totalmente automatizados, sem nenhuma intervenção humana, seja qual for o lugar ou a situação em que operam. Essa classificação foi elaborada pela Sociedade de Engenheiros Automotivos (SAE), dos Estados Unidos.
Os caminhões e ônibus em operação experimental enquadram-se entre os níveis 3 e 4 – nesse último, o veículo circula em percursos restritos em velocidade de até 50 quilômetros por hora (km/h). Para construir uma versão mais avançada, não apenas sem motorista, mas também sem cabine, a startup capixaba conseguiu no segundo semestre de 2024 um financiamento de R$ 2,5 milhões da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). A previsão é de que o primeiro protótipo esteja pronto em 2027 e, se tudo der certo, os ensaios em campo comecem em 2028.
“A Lume é uma das empresas mais avançadas na área de robótica móvel no Brasil. A primeira companhia que chegar ao nível 4 de automação terá mais condições de ser a dona do mercado”, comenta o cientista da computação Fernando Santos Osório, do Laboratório de Robótica Móvel do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (LRM-ICMC) da USP em São Carlos. Em cidades dos Estados Unidos e do Japão, diz o pesquisador, já há carros rodando sem motorista em rotas planejadas e mapeadas por satélites. “Nenhum deles ainda com o nível máximo de automação, o 5”, afirma Osório.
Ainda há obstáculos a serem superados para que os veículos desse tipo ganhem as ruas do país, entre eles o alcance da maturidade tecnológica, dificuldades para a certificação e questões legais. Não se sabe, por exemplo, quem deverá ser responsabilizado se um veículo com automação total atravesse um sinal vermelho e atropele uma pessoa ou destrua o muro de uma casa.
Apesar disso, o mercado de veículos autônomos encontra-se em expansão. Uma análise de agosto de 2024 da consultoria norte-americana Goldman Sachs estima que as vendas de veículos sem motoristas com nível intermediário de automação deverão representar cerca de 60% de todas as vendas de veículos leves em 2040.
Prevê-se que as vendas se concentrem na China, onde já circulam carros com nível 4 de automação, como os robotáxis da empresa Apollo Go, subsidiária da Baidu, em cidades como Shenzhen e Wuhan. A General Motors, dos Estados Unidos, desistiu do negócio de robotáxis chamados por aplicativos, após acumular prejuízos. Em janeiro, a multinacional anunciou uma tecnologia de assistência ao motorista Super Cruise, semelhante ao Autopilot, da também norte-americana Tesla. Os dois sistemas oferecem tecnologia de direção parcialmente automatizada, com câmeras, radar e um módulo de atenção para garantir que o motorista fique atento à estrada.
“Em outros países, os carros autônomos rodam em cidades mais estruturadas, com vias em boas condições e trânsito e fluxo mais organizados do que no Brasil”, adverte o engenheiro cartógrafo Edvaldo Simões da Fonseca Júnior, coordenador do Laboratório de Topografia e Geodésia da Escola Politécnica (Poli) da USP, que atua nessa área desde o início dos anos 2010. Para exemplificar as dificuldades de implantação dessa tecnologia em cidades brasileiras, ele relata uma situação que apresentou aos alunos durante uma aula: “Outro dia tirei a foto de um semáforo que tinha, ao mesmo tempo, luz verde e vermelha. Como o carro autônomo resolve uma situação dessa?”. A decisão do veículo vai depender da programação, diz Fonseca. “Se ele buscar sempre o vermelho vai ficar parado no cruzamento o tempo todo. Se buscar o verde vai passar e poderá ocorrer uma colisão. Se o carro identifica que ambas as luzes estão acesas, ele vai se aproximar do cruzamento e, com outros sensores, verificará se poderá prosseguir ou não.”
Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP
Projeto Carina Para o engenheiro eletricista Marco Henrique Terra, da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da USP, a maior barreira às pesquisas com veículos autônomos no Brasil não é a falta de infraestrutura: “O grande gargalo é o capital. Precisamos de investidores com fôlego para apoiar o desenvolvimento dessa tecnologia, até atingir a maturidade”.
Terra coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Sistemas Autônomos Cooperativos (InSAC), um dos INCT apoiados pela FAPESP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que sucedeu ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Sistemas Embarcados Críticos (INCT-SEC), encerrado em 2014. O apoio desses dois INCT foi fundamental para o desenvolvimento do projeto Carro Robótico Inteligente para Navegação Autônoma (Carina), primeiro automóvel autorizado a trafegar sem motorista numa cidade brasileira – em São Carlos, interior paulista, em 2013. “Compramos o primeiro veículo em 2009, com verba do INCT-SEC, e ele estava automatizado e operacional, sem motorista, em 2010”, lembra Osório.
No Brasil, uma dificuldade adicional para o avanço dos projetos de veículos autônomos é o alto custo dos componentes importados. Osório espera ajudar a resolver esse problema com sua participação no projeto “Implementação e testes de componentes e dispositivos para o desenvolvimento de sistemas de assistência à condução” (Segcom), que faz parte do programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover) do governo federal. “O Segcom pretende levantar alternativas tecnológicas que possam ser repassadas às empresas nacionais”, diz ele. Uma das metas é implementar um sistema de visão computacional utilizando câmeras da empresa brasileira Intelbras.
“Estamos incorporando tecnologias gradativamente”, avalia Terra. Segundo Osório, ainda é difícil prever quando carros robóticos estarão nas ruas das cidades brasileiras, não apenas por questões técnicas, mas também pela falta de uma legislação específica que autorize a circulação de veículos desse tipo. Em busca de alternativas, equipes da EESC e do ICMC, ambos da USP, por meio de um acordo de cooperação com a Scania, coletam dados para treinar um caminhão autônomo para atividades de mineração. “De maneira realista”, conclui Terra, “é nesse nicho de operações restritas que podemos entrar, por enquanto.”
A reportagem acima foi publicada com o título “Quando o motorista é dispensável” na edição impressa nº 349 de fevereiro de 2025.
Projeto INCT 2014: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Sistemas Autônomos Cooperativos Aplicados em Segurança e Meio Ambiente (nº 14/50851-0); Modalidade Projeto temático; Pesquisador responsável Marco Henrique Terra (USP); Investimento R$ 4.227.952,62.
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