Testa-se, neste momento, no Brasil um medicamento chamado Evista, indicado no tratamento da osteoporose. Testam-se, também, outras centenas de drogas contra a Aids, anti-inflamatórios de última geração, produtos neurológicos, oncológicos, dermatológicos e todo tipo de remédio, inovador ou não. Há medicamentos, ainda não lançados, que a indústria farmacêutica quer ver no mercado em cinco anos no máximo. Há outras drogas em estudo para as quais se busca uma segunda indicação terapêutica.
No caso do Evista, produto desenvolvido pela norte-americana Eli Lilly, o objetivo é exatamente este, a segunda indicação. A Lilly quer e espera confirmar que o remédio, além dos efeitos na osteoporose, traz benefícios cardiovasculares para grande parte das mulheres que o consomem na pós-menopausa. Um grupo de 540 mulheres espalhadas em sete cidades participa do estudo. É a contribuição brasileira para um trabalho iniciado em 1997 que envolve 10,1 mil mulheres mundo afora e deverá estar concluído dentro de dois anos. Metade das pacientes consome o Evista e outra metade, um placebo. Nenhum dos dois grupos abandonou seus medicamentos habituais para doenças cardiovasculares, já que não se sabe se o Evista funciona realmente nesses casos. O que se espera detectar é o valor adicional do produto na prevenção de problemas cardíacos.
O Evista serve de exemplo para um tipo de estudo farmacêutico sem fronteiras, de longa duração, não circunscrito aos centros de tecnologia da indústria e que se tornou corriqueiro nos últimos anos no país. É a chamada pesquisa clínica – o teste de medicamentos em seres humanos, atividade repleta de entraves éticos e de grande importância científica e comercial.
Desde 1996, ano da aprovação da lei de patentes, os investimentos da indústria farmacêutica mundial em testes de medicamentos no Brasil têm aumentado. Os laboratórios até então temiam fazer testes aqui por causa das cópias e da falta de regras claras. O governo e a sociedade, por seu lado, se aparelharam para vigiar as pesquisas e impedir que brasileiros sejam usados como cobaias.
São testados no Brasil, nos últimos tempos, muitos remédios inventados por laboratórios dos Estados Unidos e da Europa. E não se verificam muitas ocorrências de eventos adversos, o que indica um bom nível de controle. Somente em 2002 foram aprovados 774 novos projetos no país. Um único imprevisto, verificado em julho, motivou a paralisação de uma pesquisa. Houve um óbito e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) investiga, atualmente, se o problema aconteceu por causa dos testes ou devido a complicações associadas à doença crônica do paciente.
De um modo geral, porém, os estudos correm bem. Os números confirmam que a lei deu um impulso considerável para a multiplicação dos testes clínicos. A pesquisa no Brasil é feita apenas com voluntários não remunerados, ao contrário dos Estados Unidos, onde os pacientes são pagos. “No Brasil, por causa da pobreza, a remuneração poderia criar um mercado em torno das pesquisas”, afirma Paula de Sá, coordenadora de pesquisa clínica da Anvisa. O atrativo para o paciente é a chance da descoberta de uma cura ou pelo menos de um alívio para seus males.
A taxa anual de crescimento da pesquisa entre 1997 e 2001, segundo dados da Anvisa, foi sempre superior a 10% ao ano – de 30 projetos iniciados em 1995, saltou-se para 846 aprovados pelo Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) no ano passado. Também evoluiu o debate ético. Aumentam, por exemplo, as críticas aos testes contra placebo. “Pela nossa norma, o placebo precisa ser justificado, não só metodologicamente, mas também eticamente”, afirma William Saad Hossne, professor da Faculdade de Medicina da Unesp, em Botucatu, e coordenador da Conep.
A Interfarma, associação que reúne os laboratórios multinacionais de pesquisa no país, diz que os investimentos para a realização de testes prolongados no Brasil vão totalizar R$ 112 milhões, em 2002. Nos próximos quatro anos, a verba anual média deverá ficar em R$ 175 milhões. Diretores médicos de laboratórios internacionais, como Aldair Pinto, da Pfizer, ou André Feher, da Eli Lilly, elogiam a lei de patentes e a qualidade do trabalho nas universidades brasileiras. “Os investimentos podem triplicar a médio prazo”, prevê Pinto.
A Pfizer vai desembolsar cerca de US$ 4 milhões em 2002 para levar adiante suas pesquisas no Brasil. São 30 projetos, entre os quais estão a insulina inalável; o sucessor do Viagra, produto para impotência sexual; e um medicamento contra a osteoporose que vai concorrer com o Evista. A Lilly desenvolve 38 pesquisas clínicas no país e dispõe de um orçamento de US$ 3,6 milhões neste ano – em 1995, a verba girava em torno de US$ 80 mil. A maior parte de seus testes são feitos com produtos das áreas de endocrinologia, neurologia e oncologia. “A pesquisa feita aqui tem um padrão internacional”, afirma Feher, que também é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Farmacêutica. “O único problema é que a aprovação dos protocolos demora de três a quatro meses mais do que em outras partes do mundo.”
A expansão da pesquisa clínica no Brasil tem razões bem objetivas. Há o fato de o país ter uma população de mais de 170 milhões de pessoas e abrigar grupos numerosos de doentes com muita variedade étnica. Além disso, a pesquisa brasileira tem qualidade e custos baixos – a mão-de-obra recebe em reais e atinge resultados tão bons quanto os alcançados em centros europeus ou norte-americanos. Soma-se a isso a existência de um regulamento para tratar do assunto – a resolução 196, de 1996, do Conselho Nacional de Saúde (CNS) -, e a criação de uma estrutura de acompanhamento que tem como objetivo fundamental identificar, discutir e impedir desvios éticos na pesquisa clínica.
Assimetria na pesquisa
O Brasil ainda não compete com o seleto grupo de nações que descobre fórmulas e sintetiza princípios ativos farmacêuticos. Mas, aqui, a parte do conhecimento farmacêutico relacionada à metodologia e execução de testes de remédios em seres humanos tem condições de prosperar muito. “O que nós temos recomendado, agora, é que o pesquisador não só participe da execução da pesquisa, mas também de sua concepção”, diz Saad Hossne.Volnei Garrafa, professor da Faculdade de Ciências e coordenador do grupo de bioética da Universidade de Brasília (UNB), chama a atenção para a assimetria no processo de pesquisa. “Enquanto um país entra com recursos tecnológicos, o outro entra com pessoas”, diz. O que se reivindica é um maior envolvimento intelectual dos pesquisadores brasileiros na elaboração dos projetos.
No decorrer de uma pesquisa clínica, médicos e cientistas, a serviço de laboratórios privados ou estatais e sempre sob a mira do Comitê de Ética (CEP), verificam a tolerância clínica, a dosagem ótima e se os medicamentos atuam no corpo do paciente de maneira benéfica, neutralizando ou atenuando uma ou outra patologia. O protocolo do estudo precisa ser aprovado pelo Conep, em Brasília, e pelo CEP da instituição. Um médico é nomeado investigador principal e fica responsável pela pesquisa. Atualmente, estão em operação cerca de 400 CEPs no país, espalhados por quase 200 instituições.
A observação de pessoas doentes sob efeitos da molécula em análise ou induzidas por placebos e o trabalho estatístico definirão os resultados do estudo. A regra geral é que se um produto previne um mal ou o remedeia em níveis percentuais iguais ou superiores ao de um antecessor reconhecidamente eficaz e não se verificam eventos adversos associados ao seu uso, então ele merece chegar ao mercado. Em muitos casos, a inovação se justifica pela eliminação de efeitos colaterais constatados em produtos de referência.
Fases da pesquisa
A pesquisa dos efeitos de medicamentos em seres humanos tem quatro fases. A fase 1 não é feita no Brasil. Participam do estudo apenas voluntários sadios. Testa-se a segurança de curto prazo do produto e analisa-se o seu perfil farmacocinético – a maneira como a droga é distribuída pelo corpo. A fase 2 é a do estudo terapêutico piloto. Trabalha-se com um pequeno grupo de doentes, de 500 a mil pessoas, e os testes, em geral, não duram mais do que um ano. Um dos objetivos do estudo é estabelecer a melhor dosagem da droga em uma relação risco-benefício. Nesse momento se confirma, de fato, o potencial terapêutico da droga, se ela cumpre a função principal para a qual foi projetada ou não. Caso não cumpra, o laboratório interrompe a pesquisa.
A pesquisa do Evista, por exemplo, está na fase 3, quando acontece o estudo terapêutico ampliado. Voluntários doentes são selecionados e é feita uma análise de risco e eficácia da droga com grandes amostras de doentes. É a fase mais cara, a que envolve o maior número de pacientes (milhares de pessoas em vários países) e mais longa (três ou quatro anos é um bom prazo médio). Concluída a fase 3, o produto é registrado nos órgãos de vigilância sanitária e sua comercialização, liberada. Os estudos desenvolvidos depois do início da comercialização do medicamento são incluídos na chamada fase 4. Seus protocolos são parecidos com os da fase 3.
No Brasil, a grande maioria dos estudos pertence à fase 3. Em 2001, de 846 protocolos aprovados, 655 eram da fase 3; 103 da fase 2; 67 da fase 4 e apenas 1 da fase 1. No roteiro de 38 pesquisas do laboratório Lilly, 20 pertencem à fase 3; 15 à fase 4; e 3 à fase 2. Na fase 3, justamente, a droga é mais bem qualificada e são feitas comparações com outras drogas de referência ou com placebos.
Percebe-se no Brasil uma tendência ao questionamento de estudos de testes contra placebo. “A relutância ao uso do placebo aumentou”, diz Feher. “Cada caso deve ser examinado e seu uso é inadmissível quando trouxer um risco grave”, afirma Saad Hossne, da Conep. As restrições aumentam, por exemplo, na psiquiatria e na oncologia. Não se pode privar um doente grave, um esquizofrênico, por exemplo, de um medicamento que comprovadamente funciona e dar-lhe um comprimido inativo só para checar a qualidade de uma inovação, dizem os críticos dos placebos. Doentes de câncer que seguem tratamentos já conhecidos também não podem ser submetidos a testes com placebo em benefício da ciência, mas contra seus próprios interesses.
“Os placebos deveriam ser eliminados”, afirma Garrafa, que ocupa uma cadeira no Conep. “Em muitos casos, usa-se placebo só por comodismo ou porque é mais barato.” Garrafa identifica excessos, por exemplo, em uma pesquisa para testar uma nova dosagem para um medicamento para onicomicose, uma infecção fúngica das unhas. O laboratório, com aprovação do CEP, usou duplo placebo, segundo Garrafa, em um dos grupos de teste. Embora os pacientes não corressem risco de vida, a onicomicose é uma micose persistente e várias pessoas foram privadas de uma cura rápida para a doença, já que existe um medicamento eficaz.
Prevaleceram interesses científicos e comerciais sobre o bem-estar dos pacientes. A visão dos laboratórios é que o teste contra placebo pode ser adotado em doenças não fatais, em casos em que a suspensão do uso de um produto tradicional não piore a qualidade de vida do doente ou quando não existir um produto de referência. A maioria das pesquisas no Brasil, segundo Saad Hossne, não incluem testes contra placebo. A discussão sobre seu uso, porém, ainda tem muito fôlego. E o Brasil, ao que tudo indica, será um dos campos em que se desenvolverá o debate ético.
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