Há cerca de 10 mil anos, o desenvolvimento da agricultura foi determinante para o sucesso ecológico da espécie humana, favorecendo a proliferação de indivíduos e a ocupação de extensas áreas do planeta. Processo similar ocorreu com as formigas, só que muito tempo antes. Mais de 50 milhões de anos atrás, as formigas da tribo Attini desenvolveram a fungicultura (tribo é uma classificação taxonômica entre a definição de família e a de gênero). Passaram a utilizar folhas, flores, fragmentos de galhos e sementes como substrato para o cultivo de fungos, base de sua alimentação.
Dos 14 gêneros de formigas que fazem parte da tribo Attini, as mais bem-sucedidas do ponto de vista ecológico são as cortadeiras, pertencentes aos gêneros Atta (saúvas) e Acromyrmex (quenquéns). Elas dominam todo o continente americano e fazem ninhos gigantescos, com milhões de indivíduos, alguns tão extensos que chegam a ser visíveis em fotos tiradas por satélites no espaço.
Entrevista: Maurício Bacci Junior
Por muito tempo, os ecólogos pensaram que o sucesso das saúvas e quenquéns se devia à sua maneira particular de cultivar alimento. As cortadeiras distinguem-se por utilizar folhas verdes e frescas, recém-cortadas por suas potentes mandíbulas, como substrato para seus jardins de fungos, enquanto as demais formigas da tribo Attini lançam mão de folhas mortas e material orgânico em decomposição para produzir sua comida. Como há mais folhas vivas do que mortas na natureza, as cortadeiras teriam maior potencial de crescimento populacional do que as formigas que dependem de material em putrefação para produzir seu repasto. A ideia dominante era a de que, nesse substrato verde, onde há mais nutrientes do que nas folhas mortas, as cortadeiras cultivavam apenas um tipo de alimento: fungos da espécie Leucocoprinus gongylophorus. Segundo a teoria mais aceita, as cortadeiras teriam surgido ao longo dos últimos 19 milhões de anos e passado por um processo de coevolução ao lado desse fungo, gerando uma relação de fidelidade.
Agora, um trabalho realizado por biólogos brasileiros e norte-americanos, publicado em maio na revista Molecular Ecology, contraria essa concepção. “A ideia de que cada grupo de formiga cultivava apenas uma espécie de fungo era algo consolidado. Mas nosso estudo mostra que as formigas estão abertas a novas parcerias, e essas trocas não alteram o sucesso ecológico das espécies”, diz o farmacêutico-bioquímico Mauricio Bacci Júnior, do Centro de Estudos de Insetos Sociais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro, e um dos líderes da pesquisa, que envolveu sete universidades. O estudo levou em conta dados ecológicos e também genéticos de mais de 40 espécies de formigas cortadeiras encontradas entre o Norte e o Sul das três Américas.
Estudo também reforça a hipótese de que as formigas-cortadeiras se originaram na América do Sul
Bacci explica que o fungo Leucocoprinus gongylophorus, que se julgava ser específico dos ninhos de saúvas e quenquéns, foi encontrado em colônias de formigas do gênero Trachymyrmex, também da tribo Attini, mas que têm um comportamento intermediário entre as cortadeiras e as não cortadeiras: elas utilizam tanto folhas verdes quanto matéria orgânica em decomposição como substrato de cultivo. Ele também pondera que o fungo que recebia o mesmo nome das formigas Trachymyrmex (justamente por ser considerado um cultivo exclusivo desse gênero) talvez precise ser renomeado por ter sido identificado agora em ninhos de formigas Atta laevigata, cortadeira conhecida popularmente como saúva cabeça-de-vidro ou saúva-de-vidro. “Chegamos à conclusão de que o sucesso ecológico das formigas – e, consequentemente, também seu impacto destrutivo na agricultura – não pode ser atribuído à colheita de um superfungo específico”, diz o biólogo Ulrich Mueller, da Universidade do Texas, coautor do trabalho.
“Existe um ‘comércio’ subterrâneo de fungos. As formigas fazem o que a gente faz com os produtos agrícolas: trocam espécies de fungos entre si e selecionam as mais nutritivas”, compara Bacci. “Em uma mesma região, a poucos quilômetros de distância, é possível encontrar a mesma espécie de formiga com espécies distintas de fungos.” A relação formiga-fungo é mutualista (ambos se beneficiam), mas ainda são pouco conhecidas as complexas interações existentes no ninho. O pesquisador da Unesp conta que a cultura desses fungos cresce lentamente em laboratório. “A formiga cultiva-os muito bem, a gente ainda precisa aprender com ela.”
O artigo publicado na Molecular Ecology cita pesquisas anteriores com resultados semelhantes. A mais surpreendente foi realizada em 2015, com a colaboração de Bacci e Mueller. “Encontramos na Amazônia a formiga Apterostigma megacephala, uma espécie rara que geralmente cultiva um dos fungos mais primitivos de vida livre que se conhece, produzindo e se alimentando do fungo da cortadeira, Leucocoprinus gongylophorus”, relata o biólogo Heraldo de Vasconcelos, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), um dos autores da pesquisa. “A contribuição mais interessante do trabalho foi apresentar uma grande quantidade de evidências de que o processo coevolutivo entre cortadeiras e esse fungo foi mais difuso do que se imaginava”, declara Vasconcelos.
Não é apenas a habilidade de cultivar espécies variadas de fungos, porém, que define o sucesso ecológico dessas formigas. A capacidade de manter colônias tão numerosas em áreas com clima, vegetação e solo diversos depende ainda de dois outros fatores: hábitos de higiene meticulosos e cooperação com bactérias que eliminam fungos nocivos ao formigueiro. “Essas formigas são muito vigilantes e fazem a assepsia de cada folha que trazem para o ninho, retirando os esporos de fungos que competem com os cultivados por elas”, conta o entomologista Odair Correa Bueno, professor da Unesp em Rio Claro.
Em um experimento em parceria com o biólogo André Rodrigues, especialista em fungos, Bueno e sua equipe infectaram colônias de saúva-limão com o fungo do gênero Syncephalastrum. Assim que identificavam exemplares do microrganismo nocivo, as operárias os retiravam e transportavam para uma área de descarte, segundo artigo publicado em 2017 na Pest Management Science. Quando as operárias eram removidas, a colônia adoecia.
Em um trabalho anterior, também parte de um projeto coordenado pelo químico João Batista Fernandes, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Bueno e Ribeiro haviam verificado que as bactérias encontradas nas formigas-cortadeiras Trachymyermex produzem compostos que atuam contra fungos invasores, como os do gênero Escovopsis, que competem com os cultivados nos jardins dos formigueiros. “As cortadeiras têm uma microbiota que auxilia na defesa contra outros microrganismos”, conta. “Por essa razão, até o momento, não se conseguiu uma estratégia de controle biológico dessas formigas.”
Ancestral sul-americana
O estudo publicado na Molecular Ecology também reforçou a hipótese de que a espécie ancestral das cortadeiras seria uma formiga sul-americana. “Uma espécie tem sua origem mais provável no local onde há mais biodiversidade. Daí o surgimento dessa teoria”, explica Bacci. Pesquisas do argentino Nikolai Kuznezov, em 1963, e de Harold Fowler, da Unesp de Rio Claro, em 1983, já sustentavam que as formigas-cortadeiras teriam se originado na América do Sul meridional (sul do Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai).
Em 2016, um estudo publicado na PLOS ONE pelo biólogo Maykon Passos Cristiano, do Laboratório de Genética Evolutiva e de Populações da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), chegou à conclusão semelhante. “Em termos evolutivos, a primeira espécie de cortadeira a se separar das demais formigas da tribo Attini teria sido Acromyrmex striatus, que ocorre nesses ambientes mais secos e abertos da América do Sul”, afirma Cristiano.
Outra teoria vinha sendo testada por pesquisas recentes: a de que as cortadeiras teriam surgido em ambientes mais úmidos, como o amazônico, ou na América Central. Essa é, por exemplo, a hipótese de um estudo de 2017, de pesquisadores do Instituto Smithsonian, dos Estados Unidos. Mas, para Mueller, a abrangência do trabalho atual realizado em parceria com o grupo da Unesp deixa pouca margem de dúvida: “Nossa extensa coleção de fungos de cortadeiras sustenta fortemente a hipótese de Kuznezov e Fowler”, diz Mueller.
Essas conclusões vieram de estudos genéticos de amostras de fungos coletados da Argentina até os Estados Unidos. Também foram usadas 2.500 amostras de mais de 40 espécies de cortadeiras, preservadas em etanol a -80 °C nos laboratórios de Bacci, na Unesp, e de Mueller, em Austin, no Texas. Para estabelecer a filogenia, ou seja, a relação evolutiva entre os indivíduos, as amostras foram submetidas a testes de sequenciamento de DNA. “Essa metodologia é muito usada em trabalhos evolutivos que buscam entender as relações de parentesco e diversificação das espécies ou linhagens. O que se deve destacar nesse trabalho é a quantidade surpreendente de material biológico utilizado”, elogia Cristiano, da Ufop, que não participou do artigo na Molecular Ecology.
“Estudos desse porte só se concretizam pelo trabalho de equipes pluridisciplinares e multilaboratoriais, por meio de ampla colaboração internacional”, salienta o entomólogo Jacques Hubert Charles Delabie, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Para Delabie, o acesso a amostras geograficamente bem distribuídas em dois continentes, analisadas por pesquisadores de várias especialidades, traz segurança às conclusões. “Esse estudo integra todo o conhecimento já publicado sobre essas questões e há muitas publicações, uma vez que essa é uma área extremamente dinâmica”, afirma.
Potencial comercial
A bióloga Mariane Aparecida Nickele, que faz estágio de pós-doutorado na Universidade Federal do Paraná (UFPR), espera que estudos tão detalhados sejam realizados também com outros microrganismos que vivem associados às formigas. “Outros microrganismos fazem parte desse sistema, como o fungo parasita do gênero Escovopsis, bactérias filamentosas, como Pseudonocardia, e a levedura negra do gênero Phialophora”, diz Mariane. Segundo a bióloga, ainda é necessário compreender o papel desses microrganismos na simbiose com as formigas, pois eles poderiam ser úteis na descoberta de novas moléculas de interesse médico ou industrial. “Se conseguirmos entender a ‘tecnologia agrícola’ dessas formigas será possível produzir em laboratório substâncias químicas de interesse comercial”, diz Bacci. Seus fungos conseguem, segundo o pesquisador, converter biomassa vegetal em substâncias da classe dos poliois, como o sorbitol e o arabitol, que têm alto valor de mercado e são utilizados, sobretudo, como adoçantes artificiais.
Para confirmar essas possibilidades, mais estudos devem ser feitos. Segundo Bacci e Mueller, as populações de cortadeiras da América do Sul ainda precisam ser amostradas na mesma densidade que as da América Central e da América do Norte, para gerar um quadro completo da biogeografia de associações de fungos e formigas no continente. “Prevemos que os maiores avanços na compreensão da evolução da formiga-cortadeira surgirão a partir de estudos adicionais de espécies do sul da América do Sul”, estima Mueller.
Projetos
1. Processamento de substratos por formigas Attini: Dinâmica e cooperação metabólica com microrganismos (nº 14/25507-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Mauricio Bacci Júnior (Unesp); Investimento R$ 224.987,87.
2. Estudos integrados para o controle de formigas cortadeiras (nº 12/25299-6); Modalidade Projeto temático; Pesquisador responsável João Batista Fernandes (UFSCar); Investimento R$ 4.042.561,80 (para todo o projeto)
Artigos científicos
MUELLER, U. G. et al. Phylogenetic patterns of ant–fungus associations indicate that farming strategies, not only a superior fungal cultivar, explain the ecological success of leafcutter ants. Molecular Ecology. v. 27, p. 2414–34. 2018.
BARCOTO, M. O. et al. Pathogenic nature of Syncephalastrum in Atta sexdens rubropilosa fungus gardens. Pest Management Science. v. 73, n. 5, p. 999-1009. Mai. 2017.
MEIRELLES, L. A. et al. Broad Escovopsis-inhibition activity of Pseudonocardia associated with Trachymyrmex ants. Environmental Microbiology Reports. v. 6, n. 4, p. 339-45. 2014.