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ENTREVISTA

Carmino Antonio de Souza: Os caminhos da saúde

Hematologista da Unicamp participa da elaboração de plano de retomada da produção de fármacos essenciais, uma das necessidades impostas pela pandemia de Covid-19

Souza, criador do Hemocentro de Campinas

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

Em novembro, em uma sala do primeiro andar de um prédio histórico, cercado de árvores, no Instituto Butantan, o médico hematologista Carmino Antonio de Souza, como secretário-executivo da Secretaria de Ciência, Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde do Estado de São Paulo (SCPDS), concluía um documento que entregou no início de dezembro para o governador, Rodrigo Garcia, e pretendia passar às mãos assim que possível para o eleito, Tarcísio de Freitas, que tomou posse em janeiro. É um diagnóstico e um plano de reorganização do sistema de saúde no estado, propondo, entre outras coisas, a revitalização das duas fábricas da Fundação do Remédio Popular (Furp) para a retomada de produção de medicamentos essenciais, como antibióticos, que faltaram quando os casos de Covid-19 se intensificaram (ver reportagem “Para aprimorar o sistema de saúde em SP).

Idade 71 anos
Especialidade
Onco-hematologia
Instituição
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Formação
Graduação (1975) e doutorado (1987) na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp
Produção
395 artigos científicos e 1 livro

Faz quase 40 anos que Souza tem um pé na gestão pública e outro na universidade. Em 1985 ele criou o Centro de Hematologia e Hemoterapia (Hemocentro) da Unicamp, depois coordenou o programa de sangue do estado de São Paulo, assegurando que as transfusões estariam livres de vírus como o HIV, e foi secretário da Saúde do estado em 1993 e 1994. À frente do sistema de saúde do município de Campinas, enfrentou a pandemia de Covid-19. Em 2021, publicou o livro Minha vida na saúde pública (Editora dos Editores, 2021), relatando as epidemias que enfrentou, desde a de meningite, nos anos 1970.

Nascido em Santos (SP), neto de italianos (o avô veio de Nápoles e a avó de Gênova), Souza tem 71 anos, dois filhos e duas netas – e diz que não está preparado para se aposentar. Acorda todo dia às 5h, três vezes por semana viaja de Campinas, onde mora, para trabalhar na sala do Butantan cedida à secretaria, leciona, coordena pesquisas, atende alunos e escreve artigos científicos e crônicas semanais para o site HoraCampinas.

O que o senhor tem feito na SCPDS?
A secretaria foi criada em abril de 2022 pelo governador Rodrigo Garcia. David Uip assumiu como secretário e me chamou logo depois, em maio. Não temos orçamento nem ordenamos nada. É uma secretaria de discussão estratégica, de planejamento. Em sete meses, criamos grupos de trabalho e produzimos um documento com uma proposta de reorganização da indústria da saúde no estado de São Paulo. Entre outras ações, propusemos a revitalização da Furp, que quase morreu e faz muito menos do que poderia. A fábrica em Guarulhos está operando com 40% da capacidade e precisa ser modernizada e a de Américo Brasiliense, ao lado de Araraquara, com 20 mil metros quadrados, está parada. Com o apoio das equipes técnicas do Butantan, a Furp poderia recuperar um papel importante na produção de fármacos para atender, em primeiro lugar, as doenças negligenciadas, como malária, tuberculose, hanseníase, leishmaniose, que nenhuma empresa farmacêutica privada tem interesse em produzir. Depois, poderíamos pensar nas especialidades médicas. Os medicamentos contra câncer, para uso em quimioterapia, estão sempre em falta no mundo inteiro. As duas fábricas, em dois ou três anos, poderiam produzir os fármacos de interesse da saúde pública, enquanto o Butantan ficaria com as vacinas, soros e anticorpos monoclonais. A revitalização da Furp vai exigir empenho, investimentos, parcerias; não acho que a área pública tenha de fazer tudo sempre sozinha, mas deve ser uma fomentadora. Temos de estar preparados para enfrentar outras pandemias. David Uip sempre fala: “Podemos ser surpreendidos uma vez, mas não uma segunda vez”. A pandemia nos deixou nus.

Por que diz isso?
Quando a Covid-19 começou a se espalhar, não produzíamos quase nada, nem máscara, nem aventais, nem remédios. A pandemia mostrou o quanto o Brasil é vulnerável e dependente de outros países, principalmente da China e da Índia. Num mundo globalizado, quem tem dinheiro compra de quem quiser, mas, quando falta, somos os primeiros a ficar sem, porque os países ricos se defendem com muito mais facilidade. Lembra que os Estados Unidos confiscaram ventiladores mecânicos que deveriam vir para o Brasil no começo da pandemia? O reconhecimento de nossa vulnerabilidade tem de servir de motivação para recomeçarmos a produzir princípios ativos. Hoje, mais de 95% de tudo que se consome na saúde é direta ou indiretamente importado. Em tempos de normalidade, nenhum problema. Mas, quando vivemos uma crise sanitária como a da Covid-19, é trágico, porque faltou tudo. Vivemos um inferno de Dante. Com base no que sofremos, vimos como mudar a situação, por meio da secretaria. Formamos um conselho científico com 52 instituições públicas e privadas da área da saúde e 11 grupos de trabalho, cada um para uma área: vacina, saúde digital, doenças raras etc. E fizemos um documento que pode orientar, como política de estado, o próximo governador. É um diagnóstico da situação da saúde no estado e uma diretriz do que precisa ser feito. É um documento robusto, produzido pelos melhores especialistas de cada área. Em um dos grupos de trabalho, que reuniu profissionais do Ministério da Saúde, das secretarias municipais e estadual, Prodesp [Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo], Prodam [Empresa de Tecnologia da Informação e Comunicação do Município de São Paulo], vimos também as lacunas no campo da saúde digital.

Mais de 95% de tudo que se consome na saúde é importado. Em tempos de normalidade, OK. Mas, em uma crise sanitária, é trágico

O que propõem nessa área?
A telemedicina avançou muito durante a pandemia de Covid-19, mas a rede nacional de dados em saúde precisa ser melhorada. O registro único, ou prontuário único, tem de ser feito imediatamente. Não precisa ter todas as informações médicas de cada pessoa, num primeiro momento pode constar apenas o que for essencial para os atendimentos de emergência – que doenças a pessoa tem, como está acompanhando, que fármacos está usando, se é alérgica a algum medicamento. Precisamos facilitar a circulação das informações mais relevantes e acessíveis a qualquer profissional da saúde que cuide desse paciente, esteja onde estiver.

Que diagnóstico fizeram do sistema de saúde em São Paulo?
O Brasil, do ponto de vista da saúde pública, são três países diferentes. Um é formado por São Paulo e Brasília, com os serviços mais desenvolvidos; depois o Sul e os outros estados do Sudeste; e em terceiro o Norte e o Nordeste, onde muita coisa ainda precisa ser feita. Visitar os hospitais e centros de saúde de São Paulo é como visitar os da França, Itália, Espanha, há ótimas instalações, equipes e sistemas de organização, mas a articulação e a integração poderiam ser muito melhores. Veja bem: a saúde tem de ter um comando único, que é da Secretaria de Estado da Saúde. O que estamos fazendo, como atribuição da secretaria, é criar um sistema de transversalidade e planejar o futuro para evitar situações trágicas como as da pandemia de Covid-19.

Como foi o trabalho de aproximar as instituições?
Todos toparam rapidamente. É impressionante como havia uma expectativa, uma vontade de adesão ao projeto da secretaria. David Uip usou nisso muito do seu prestígio. Eu estava fora do município de São Paulo há 30 anos, fui secretário de Estado da Saúde em 1993, enquanto ele foi secretário há pouco tempo, de 2013 a 2018. Das 52 entidades convidadas a compor o Conselho Científico, 51 aceitaram. E todos participaram dos grupos temáticos ou nomearam colegas. As mesmas pessoas que participaram do Centro de Contingência de Enfrentamento da Covid-19 fazem parte do Conselho Científico, que se reúne aqui todas as quartas-feiras, alguns pessoalmente, a maioria de modo remoto. Outro ponto: David e eu, desde que começamos a avaliar o sistema de saúde de São Paulo, estamos muito preocupados com a situação dos pesquisadores do estado, que têm um salário inaceitavelmente baixo para as funções que exercem. Por isso, vamos entregar também uma proposta de reestruturação da carreira e de salários, incluindo contratação de novos pesquisadores, por concurso.

Como foi a construção do Hemocentro da Unicamp, em 1985?
Foi uma guerra política, porque até então o sangue de Campinas era todo privado, não havia bancos públicos de sangue. Mas o então reitor da Unicamp, José Aristodemo Pinotti [1934-2009], comprou a briga e acreditou que eu teria capacidade de criar um centro público, mesmo tendo zero doador. Tive apoio do Ministério da Saúde, de Luiz Gonzaga dos Santos, criador e diretor do Hemope, o primeiro hemocentro do Brasil, em Pernambuco, de Nelson Rodrigues dos Santos, o secretário da Saúde de Campinas, e de Rogério de Jesus Pedro, meu chefe de departamento na Unicamp. Mas quem instituiu mesmo foi o Pinotti. Depois, como secretário de Estado da Saúde, de 1987 a 1991, ele disse que precisava de mim em São Paulo. Numa sexta-feira à tarde de um mês de outubro, ele me pediu para ir até a secretaria para conversar com ele.

Léo Ramos Chaves / revista Pesquisa FAPESPPreparação de sulfato ferroso, contra anemia, na fábrica da Furp em GuarulhosLéo Ramos Chaves / revista Pesquisa FAPESP

Como estava a epidemia de Aids?
Tinha explodido. O Brasil perdeu 2 mil hemofílicos por causa de transfusão com sangue contaminado. Estávamos no auge da transmissão do HIV por via sexual ou transfusional e São Paulo não tinha ainda nenhum programa de controle da qualidade de sangue. Contei para o Pinotti o que eu achava que deveria ser feito e ele não teve a menor dúvida: saímos, estava lá a imprensa inteira, ele me colocou do lado dele e falou: “Quero apresentar o novo coordenador do programa de sangue do estado de São Paulo”. Em seguida ele apresentou exatamente o que eu tinha proposto. Em janeiro, entregamos um plano de ação com recursos do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] para construir hemocentros e recursos do governo do estado para fazer o controle sorológico do sangue. Construímos e equipamos os hemocentros de Campinas, Ribeirão Preto, Botucatu, Marília e de outras cidades. Criamos um programa, que existe até hoje, o Hemorrede, e fizemos todas as ações para identificar sangue contaminado, que deram absoluta tranquilidade a quem precisa de transfusão.

Houve protestos quando se tornou obrigatório testar o sangue de todos os que doavam?
Sim, mas era minha obrigação brecar a transmissão do vírus. Fiquei lá até 1993, quando fui convidado a assumir a Secretaria de Estado da Saúde do governo Fleury [Luiz Antônio Fleury Filho, 1949–2022]. Conheci o governador Fleury 15 dias antes de ele me convidar. Ele foi a Campinas inaugurar a unidade de transplantes de medula óssea, que existe até hoje, e começamos a conversar muito gentilmente. Quando ele me perguntou quem eu era, expliquei: “Fui eu que projetei essa unidade de transplante que o senhor veio inaugurar, sou diretor do Hemocentro”. E ele se ofereceu: “Sou A negativo, quero doar sangue”. Era para ser um encontro de duas horas e ele ficou lá muito mais. No domingo à noite, o reitor da Unicamp, que na época era o Carlos Vogt, me telefonou e me pediu para ir ao Palácio dos Bandeirantes [sede do governo paulista] no dia seguinte, porque o governador queria falar comigo. Fui, o governador confirmou que estava considerando meu nome, mas havia outros candidatos. Na semana seguinte, fui sabatinado por um grupo de deputados estaduais e depois o governador me avisou: “Você toma posse na segunda-feira”. Voltei voando para Campinas, passei a coordenação do Hemocentro para Fernando Costa, que depois foi reitor da Unicamp. Eu não tinha nem terno para tomar posse. Tomei posse com um terno de linho lilás horroroso, o único que eu tinha. E fiquei até o final do governo.

O professor universitário se saiu bem em uma secretaria estadual?
Aprendi muito, primeiramente na convivência política como secretário, porque, num regime democrático, quem tem voto é quem governa. Às vezes, as pessoas se confundem, acham que um conselho pode governar, mas não: é quem tem voto. Você tem de aprender a discutir e a apoiar a classe política. Viajei muito e fiz muitas reuniões. Era um momento difícil do país. Quando entrei, a inflação era de 45% ao mês. No meu período de secretário, tive de lidar com quatro moedas: o cruzeiro, o cruzeiro real, a URV [unidade real de valor] e o real, que entrou no segundo semestre de 1994. Cada mudança de moeda implica alterações em contratos com fornecedores. Para adaptar o estado de São Paulo às novas leis do SUS, que começava a ser implantado, tivemos de fazer um grande trabalho jurídico e institucional. Criamos o Conselho Estadual de Saúde, a Comissão Intergestora Bipartite, que até hoje discute a divisão dos recursos entre estado e municípios. Com a Assembleia Legislativa, criei o primeiro código de saúde do Brasil, votado em primeiro turno no governo Fleury e em segundo turno com o governador seguinte, Mário Covas (1930-2001). Fiquei menos de dois anos, mas foi um período de aprendizado enorme. Eu não conhecia nenhum deputado, porque nunca tive filiação partidária. Nas reuniões com políticos, ouvia muito. Aprendi que muitas das demandas da área política não são para conseguir dinheiro, são só para demonstrar que o indivíduo chega no secretário, que ele tem prestígio, que ele tira uma foto e mostra para os correligionários para dizer que esteve em São Paulo.

Era a época da Aids.
A Aids continuava, não tão forte como na década de 1980, e começava a ter antivirais como o AZT [azidotimidina, o primeiro antiviral contra HIV/Aids]. Já havia melhorado muito a testagem de doadores de sangue e o processo industrial de produção dos hemoderivados, para evitar contaminação. Fui a vários congressos internacionais, meu interesse era conhecer os novos testes diagnósticos, mas vi um contexto geopolítico e social que não encontrava em outras reuniões científicas. Os congressos nessa área escancaravam as mazelas do mundo, da África, das mulheres. Curiosamente, há dois anos, a convite do Ministério da Saúde e do Conasems [Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde], fui a um congresso sobre Aids em Amsterdã, nos Países Baixos, e parecia que estava ainda na década de 1990. Trinta anos depois, os problemas da África, especialmente das mulheres, continuavam enormes. Em 1995, voltei para a Unicamp, fiz o concurso para livre-docente e em 1997 saí para trabalhar na unidade de transplante de medula da Universidade de Gênova, na Itália. Saí muito maduro, já com 45 anos, e foi ótimo. Eu participava de quase tudo com meus colegas da universidade: cuidava dos doentes, colhia exame, ia para o centro cirúrgico, aspirava medula, escrevia os trabalhos. Minha carreira decolou depois que voltei. Em 2001, fiz o concurso para professor titular e em 2006 voltei a coordenar o Hemocentro da Unicamp.

Cada epidemia é diferente e tem sua lógica própria. Cada vírus ou bactéria tem suas formas próprias de transmissão

Quem foram seus mentores?
Muita gente me orientou e esteve ao meu lado para que eu pudesse errar menos. Aprendi demais com Pinotti e com David, que conheci nos tempos da epidemia de HIV/Aids. Quando fui nomeado para a secretaria, uma das primeiras pessoas que me procurou foi Adib Jatene [1929-2014], na época diretor da Faculdade de Medicina da USP [Universidade de São Paulo]. Passamos uma tarde conversando. Antônio Ermírio de Moraes [1928-2014], empresário que cuidava da [Hospital] Beneficência Portuguesa, atual BP, também aparecia para bater papo. Não queria nada, só conversar. Aprendi muito com ele sobre como me relacionar com hospitais filantrópicos.

O que aprendeu com as epidemias que já enfrentou?
Escrevi um livro recordando minhas experiências. Primeiro foi a de meningite, nos anos 1970, eu ainda era aluno e depois residente. Depois veio a de HIV e a de cólera, com algumas dezenas de casos no estado; as arboviroses, dengue, chikungunya, zika, febre amarela; e por fim o Sars-CoV-2. Cada epidemia é diferente e tem sua lógica própria. Cada vírus ou bactéria tem suas formas próprias de transmissão. Agora, você precisa ser um grande general, ver o que tem ou não tem, onde vai conseguir, como vai se mover, fazer com que as pessoas todas estejam do seu lado e protegê-las também.

Como secretário da Saúde de Campinas, quais foram suas prioridades durante a pandemia?
Vivi uma situação de absoluta indigência. Havíamos deixado de produzir muitos medicamentos porque era mais barato importar e numa emergência como a pandemia ficamos na mão. Eu me perguntava: “Como comprar máscara, avental, tudo, enfim, que precisávamos?”. Aproveitamos os dois meses entre o anúncio mundial da pandemia e o primeiro caso no Brasil para comprar o máximo possível de sedativos, relaxantes musculares etc. O consumo de material aumentou brutalmente. Se antes um profissional da saúde usava duas máscaras e dois aventais por dia, na pandemia passou a usar 10, 12, trocando a cada doente que atendia. Recebemos muito apoio dos países do Oriente, principalmente da Coreia do Sul. A Samsung mandou uma quantidade imensa de máscaras e aventais para Campinas. Mesmo assim, faltou em alguns momentos, porque a especulação era absurda. Qual era a minha preocupação? De um lado, atender a todas as necessidades do município; de outro, não ser preso. Porque daqui a cinco anos será fácil condenar alguém por superfaturamento por ter pago R$ 10 por uma luva que custava 5 centavos. Tive uma discussão acalorada com minha equipe em um final de semana porque estávamos em dúvida entre comprar ou não mais respiradores. Contamos: havia 750 aparelhos em funcionamento e uns 20 quebrados, que as empresas da cidade, Toyota e General Motors, consertaram para nós. Só que não deu. No final, quando a pandemia estava muito acesa, a gente precisou da ajuda do governo de São Paulo e do governo federal, que mandou 25 respiradores. Não comprei, porque um respirador que custava US$ 20 mil estava sendo vendido por US$ 100 mil. Ao mesmo tempo, deslocamos o pessoal mais antigo, com maior risco de se infectar, para a telemedicina ou atividades de suporte. Mesmo no grupo de risco por já ter mais de 60 anos, todo dia eu ia para a secretaria.

Por quê?
Porque eu era o comandante, e comandante não foge. Pode morrer, paciência, o que não pode é fugir. Eu me protegia, claro. Não peguei Covid até hoje. Muitos colegas da saúde morreram, em Campinas foram cerca de 250. No Brasil, foram milhares, a maior parte de enfermagem, porque é quem está mais em contato direto com o paciente.

Como parte de um projeto mundial, estamos coletando casos de linfoma T no Brasil. Já estamos com 560

O quanto sua área, a hematologia, mudou desde que o senhor começou, nos anos 1970?
Meu primeiro contato foi com a hemoterapia, com a transfusão. Meu pai perdeu o emprego em 1971, tive de trabalhar para ajudar minha família, estava no segundo ano da faculdade e arrumei um emprego de técnico de laboratório num banco de sangue privado. A hematologia era primitiva. Os bancos de sangue trabalhavam com frascos de vidro abertos, algo impensável hoje. Eu trabalhava e dava plantões à noite no banco de sangue, conciliando com o curso de medicina. Eu fazia as provas de compatibilidade de sangue e a infusão na veia do doente. Quando me formei, fiz a prova de residência para hematologia, o primeiro ano era de clínica médica e os outros dois de hematologia. Não há comparação com os dias atuais. Nos anos 1970, as instalações dos hospitais geralmente eram precárias. Eu trabalhava em uma Santa Casa, com uma enfermaria de 33 leitos masculinos e 32 femininos, um ao lado do outro e um banheiro coletivo. Era impossível tratar direito de um paciente com leucemia, que exige cuidados especiais. O diagnóstico era exclusivamente morfológico, com análise direta do sangue e análise da medula óssea. O próprio médico coletava o sangue e fazia as lâminas de microscópio e os exames antes das transfusões. Mudou muito. A hematologia, hoje, é uma especialidade ampla, complexa e multiprofissional. Agora trabalhamos com biólogos, biomédicos e enfermeiros especializados, além das equipes dos laboratórios de biologia molecular, de imunologia e muitos outros, que se desenvolveram de maneira dramática. As doenças genéticas, como a anemia falciforme e a hemofilia, também fazem parte da hematologia. A produção científica da hematologia também é muito grande. Nosso congresso anual, realizado em outubro em São Paulo, reuniu 6 mil participantes, com mais de 1.200 trabalhos apresentados.

O que o senhor tem feito, agora como pesquisador?
Tenho, fundamentalmente, três linhas de pesquisa. A primeira é a das mieloproliferações crônicas, principalmente leucemia mieloide crônica. Participamos, com outros países, do desenvolvimento dos inibidores de um grupo de proteínas chamadas tirosina quinase, que controlam a proliferação celular. Esses medicamentos fizeram com que uma doença antes maldita, com uma sobrevida em torno de 40 meses após o diagnóstico, fosse controlada. Quem tem leucemia pode acordar de manhã, tomar um comprimidinho e sair para trabalhar, como se tivesse qualquer outra doença crônica. Como pesquisador e médico, a introdução dos inibidores de tirosina quinase foi a coisa mais revolucionária de que participei. A segunda linha de pesquisa são as linfoproliferações, os linfomas agressivos e mielomas múltiplos. Um dos linfomas agressivos é o de células T [um dos tipos de células do sangue], raros no mundo ocidental. No Oriente são cerca de metade dos linfomas, mas aqui no Ocidente são no máximo 10% do total. É um conjunto grande, com mais de 20 doenças, embora as mais comuns sejam seis, mesmo assim raras. Como parte de um projeto mundial, estamos coletando casos de linfoma T no Brasil. Pretendíamos incluir 500 doentes, mas já estamos com 560.

Qual o propósito desse estudo?
Entender melhor a evolução desse grupo de linfomas e planejar o tratamento. Queremos ver se no Brasil existem diferenças epidemiológicas por regiões e grupos étnicos. Já encontramos uma diferença importante do Brasil em relação a outros países, que é um tipo de linfoma associado ao HTLV1, um vírus parente do HIV, transmitido pelo leite materno. Em muitos casos, a pessoa desenvolve a leucemia ou linfoma de célula T décadas depois do nascimento, com uma mortalidade em torno de 5%. Temos uma alta concentração desses linfomas na região de Salvador, na Bahia. A terceira linha de pesquisa é em transplante de medula óssea. Nosso grupo de Campinas, com os colegas da Universidade Federal de Minas Gerais, foi o primeiro no mundo a fazer um estudo randomizado comparando a célula-tronco obtida diretamente da medula óssea por aspiração com a célula-tronco do sangue periférico. Vimos que é possível usar as duas, embora cada uma tenha aplicações específicas. A célula periférica tem um efeito antitumoral mais potente, mas dá mais reações, a chamada doença de enxerto contra o hospedeiro. Se não precisa de um efeito antitumoral muito potente, pode empregar as de medula óssea. Hoje se usa muito mais a célula periférica, mas a escolha é do paciente, não do doador.

Como o senhor define o sangue?
O sangue é um tecido líquido extremamente complexo, com duas funções importantes. A primeira é levar oxigênio para todas as células e transportar um resíduo que elas produzem, o gás carbônico, para os pulmões, de onde será eliminado. A segunda é vigiar e proteger o organismo contra patógenos e toxinas. O sangue carrega um exército de células: os fagócitos destroem os patógenos, os linfócitos B produzem anticorpos, os linfócitos T cuidam da memória imune, porque, se produzirmos anticorpos o tempo todo, depois de uma vacina, por exemplo, o sangue vira um minestrone. O sangue tem também uma função anti-hemorrágica, com os fatores de coagulação, plaquetas etc. Por causa dessas proteínas e células é que o sangue pode se transformar de líquido em gel, para corrigir o sangramento de um vaso que se rompeu, por exemplo, e de gel em líquido, que volta a fluir novamente quando o problema está resolvido. É o único tecido do corpo que tem essa capacidade. É maravilhoso.

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