Passava um pouco das 11h da manhã do dia 20 de setembro quando uma aeronave de design incomum, com uma cabine semiovalada para apenas dois passageiros e 16 hélices ao redor dela, decolou do Clube de Voo Aeroquadra, situado na zona rural do município de Quadra, a 160 quilômetros (km) da capital paulista. Sem ninguém a bordo, o aparelho controlado remotamente se elevou a 40 metros (m) de altura e deslizou sobre a pista gramada do aeroclube. Durante seis minutos, manteve-se no ar, percorrendo um trajeto de 1.800 m. Instantes depois, as 60 pessoas presentes ao local testemunharam um segundo voo, mais curto, de três minutos e 20 segundos, por 700 m.
As duas decolagens marcaram o primeiro voo teste no país de um eVTOL, acrônimo em inglês para veículos elétricos que decolam e pousam na vertical, popularmente conhecidos como carros voadores. O feito coube à importadora e distribuidora brasileira Gohobby Future Technology, responsável pela importação do modelo EH216-S, fabricado pela empresa chinesa EHang. Antes, o aparelho já havia protagonizado voos de demonstração em 12 países, entre eles China, Alemanha, Espanha, Japão, Coreia do Sul e Emirados Árabes Unidos.
“O Brasil foi escolhido para receber o voo experimental da aeronave chinesa porque é considerado um dos maiores mercados potenciais para essa tecnologia, depois dos Estados Unidos, da China e da Europa como um todo”, afirma o engenheiro mecânico William Roberto Wolf, professor da Faculdade de Engenharia Mecânica da Universidade Estadual de Campinas (FEM-Unicamp) e especialista em engenharia aeroespacial. “Somos um dos países mais atraentes do futuro mercado de mobilidade aérea urbana [UAM], que terá como vetor os eVTOL. Hoje, São Paulo já tem uma das maiores frotas de helicópteros do mundo.”
Dotados de motores elétricos, esses aparelhos estão sendo projetados para deslocamentos rápidos nas cidades e como uma alternativa menos poluente e mais econômica do que os helicópteros. “O custo operacional deles deverá ser menor, assim como a emissão de ruídos e poluentes por serem dotados de baterias”, destaca Wolf. “A redução de ruídos é um dos grandes desafios tecnológicos dessa mobilidade”, diz o pesquisador, que tem um projeto financiado pela FAPESP em que estuda como diminuir o ruído de rotores e hélices de aeronaves e equipamentos industriais.
Wolf destaca que há hoje uma corrida global pela regulamentação do mercado aeronáutico de carros voadores e pelo lançamento comercial desses aparelhos, que deverão realizar prioritariamente voos urbanos ou de curta distância, de até 100 km. Os primeiros modelos comerciais, segundo especialistas, deverão entrar em operação em 2025. Pelo menos 150 aeronaves do tipo encontram-se em desenvolvimento no mundo.
Uma das empresas mais avançadas do setor, a EHang entregou em julho as primeiras 10 unidades do EH216-S para uma operadora de turismo da província de Shanxi, no norte da China, que planeja utilizá-las em passeios aéreos turísticos de baixa altitude. Na China e em outros países, o modelo chinês já fez voos experimentais com passageiros. A aeronave deverá ser vendida no Brasil por cerca de US$ 600 mil – de acordo com a Gohobby já existem 16 possíveis compradores na lista de espera do eVTOL.
O protótipo da Eve
A fabricante aeronáutica brasileira Embraer está na disputa pelo nascente segmento de mobilidade aérea urbana por meio de sua subsidiária, a Eve Air Mobility, criada em 2020. Em julho, durante a 45ª edição do Farnborough International Airshow, realizada na cidade homônima britânica, a Eve apresentou o primeiro protótipo em escala real de seu eVTOL, produzido na unidade da Embraer em Gavião Peixoto, no interior paulista – a planta é destinada principalmente ao desenvolvimento e fabricação de projetos militares da empresa brasileira. Os aparelhos da Eve serão fabricados em uma nova unidade industrial da Embraer, em implantação, localizada em Taubaté, no Vale do Paraíba, ao lado de São José dos Campos (SP), onde fica a sede da empresa.
O protótipo, 100% elétrico, se encontra na fase de testes, que deverá durar alguns meses e terá como objetivo avaliar aspectos operacionais e de desempenho. A Embraer não confirma, mas a expectativa é de que o primeiro voo do carro voador brasileiro ocorra até o primeiro semestre de 2025. A fabricante já recebeu cartas de intenção de compra de 2.900 unidades de eVTOL de operadores de helicópteros, companhias aéreas e plataformas de voos compartilhados.
Os modelos da EHang e da Eve encontram-se em processo de certificação no país, conforme a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Pelo menos outras duas empresas do setor, a fabricante alemã Lilium Air Mobility e a britânica Vertical Aerospace, também deram início à certificação de seus aparelhos na agência brasileira. Espera-se que o mercado nacional esteja regulado até 2026, quando deverá ser iniciada a operação comercial dos eVTOL no país. As companhias aéreas Gol e Azul já firmaram acordos para aquisição desses aparelhos com a Vertical e a Lilium, respectivamente.
A concepção da aeronave da Eve é bem diferente da configuração do EH216-S da EHang. A diversidade de modelos, com diferentes projetos, design, sistemas de voo e motorização, é uma característica do nascente segmento de eVTOL. Enquanto o sistema propulsor do aparelho chinês é baseado em oito pares de hélices contra rotativas (em cada par, as hélices giram em direção oposta, uma em relação à outra), o equipamento da Eve contará com oito rotores (conjunto formado pelo motor e hélice) para o voo vertical e asas fixas para o deslocamento horizontal. Já o aparelho da Lilium foi desenhado com asas móveis e propulsão a jato.
“Alguns especialistas avaliam que hélices contra rotativas não são eficientes. O veículo da Eve parece ser mais sofisticado. A Embraer, por sua história e pela excelência da equipe de engenheiros, tem capacidade de fazer projetos mais complexos para esse segmento”, diz Wolf. O eVTOL brasileiro terá capacidade para cinco ocupantes – o piloto e quatro passageiros (ver infográfico abaixo).
Centro de pesquisas avançado
A fim de realizar pesquisas focadas em aviação de baixo carbono, sistemas autônomos – como os eVTOL – e projeto e manufatura avançados, Embraer, Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), Unicamp e FAPESP inauguraram em abril de 2023 o Centro de Pesquisa em Engenharia para Mobilidade Aérea do Futuro (CPE-MAF). Batizado de FlyMOV, ele tem sede no ITA e é composto por mais de 120 pesquisadores e engenheiros da Embraer e do instituto.
“O centro permitirá capacitar recursos humanos e desenvolver tecnologias, contribuindo para a longevidade, a competitividade e a excelência do setor aeroespacial brasileiro, além de possibilitar assegurar a sustentabilidade da indústria do transporte aéreo, gerando valor para a sociedade brasileira”, declarou Luís Carlos Affonso, vice-presidente de Engenharia e Estratégia Corporativa da Embraer, à Agência FAPESP. O novo centro terá um investimento compartilhado de R$ 48 milhões ao longo de cinco anos.
Uma versão deste texto foi publicada na edição impressa representada no pdf.
Projetos
1. Simulações numéricas de alta fidelidade aplicadas em aerodinâmica não estacionárias, turbulência e aeroacústica (no 21/06448-0); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável William Roberto Wolf (Unicamp); Investimento R$ 2.290.390,27.
2. Centro de Pesquisa em Engenharia para a Mobilidade Aérea do Futuro (CPE-MAF) (no 21/11258-5); Modalidade Programa Centros de Pesquisa em Engenharia; Pesquisador responsável Domingos Alves Rade (ITA); Investimento R$ 6.977.884,83.