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Casa-Grande e Senzala dos Matarazzo na Califórnia Paulista

Estudo da Unesp resgata o cotidiano de semi-servidão dos cortadores de cana da Amália, fazenda na região de Ribeirão Preto que foi do antigo império agroindustrial

Uma página quase esquecida da história das Indústrias Reunidas Francesco Matarazzo, antigo império agroindustrial que na década de 30 chegou a ser o maior conglomerado empresarial da América do Sul, foi resgatada com a conclusão de um trabalho sobre a vida dos trabalhadores rurais de uma das propriedades favoritas da famiglia: a fazenda Amália, em Santa Rosa de Viterbo, na região de Ribeirão Preto, nordeste paulista. No projeto Mulheres da Cana: Memórias, que foi financiado pela FAPESP, a socióloga Maria Aparecida de Moraes Silva, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), acabou fazendo mais do que inicialmente havia se proposto. Reconstituiu em detalhes o dia-a-dia de semi-servidão, trabalho quase ininterrupto e isolamento não só das cortadoras de cana, seu objeto de estudo por excelência, mas de famílias inteiras (homens e crianças aí incluídos) que deram seu suor para estender a grandeza da Amália por seus 11 mil alqueires.

O estudo enfoca um período de mais de 60 anos da história da fazenda, ainda hoje, após ter sido desmembrada e arrendada, em parte controlada pelos Matarazzo. Começa na década de 30, época em que a cana toma definitivamente o lugar do café na Amália e os trabalhadores vivem como colonos em casas dentro dos domínios da propriedade. Passa pela segunda metade dos anos 60, quando esses colonos perdem o emprego fixo e a moradia na fazenda (em muitos casos sem receber a devida indenização), viram bóias-frias e têm de procurar casa para morar fora da propriedade dos Matarazzo. E termina nos dias de hoje, marcados pela crescente mecanização da lavoura e falta de emprego crônico para os trabalhadores ou seus descendentes nos canaviais, seja na Amália ou em outras fazendas da região.

Em cada uma dessas fases, o relacionamento dos cortadores de cana, a maioria analfabeta ou com conhecimentos rudimentares da língua escrita, com os senhores da Amália se dá em bases diferentes. A cada mudança, a situação do trabalhador rural vai se tornando mais precária, a despeito de alguns ganhos localizados, como a disseminação de botas e roupas mais adequadas para o corte da cana. No período coberto pelo estudo, a categoria dos cortadores de cana – a mais numerosa (talvez chegasse a 5 mil pessoas) e com menor status dentro da hierarquia dos empregados/habitantes da Amália – experimentou um progressivo descenso social. “É uma história de vencidos”, sentencia Maria Aparecida.

O dia-a-dia de colono
Até fins da década de 60, quando os cortadores de cana da Amália exibiam a condição de colonos e moravam em casas construídas por seus patrões e espalhadas pelas terras da propriedade, um dia de trabalho na fazenda era, literalmente, um dia dedicado religiosamente ao trabalho. E não mais do que isso. Às 5 horas da manhã, com o primeiro badalar do sino, os colonos acordavam. Tomavam o café e pegavam no batente até as 9 horas da noite, quando o sino voltava a tocar. Com rápidas pausas para almoço e merenda.

Na época da colheita, domingos e feriados também eram dias de passar o facão pelo canavial, estendendo-se o serviço, às vezes, até a noite, conforme alguns relatos colhidos por Maria Aparecida. Férias? Nem pensar. Esses trabalhadores ainda não tinham esse direito. Para as mulheres, a jornada em geral era mais longa e dupla. Elas acordavam mais cedo do que os maridos para preparar o café e, após as horas de trabalho no canavial, ainda tinham de cuidar das crianças, preparar o jantar e arrumar a cozinha antes de dormir.

Formalmente, o chefe da casa, em geral o homem, era o único trabalhador amparado por um vínculo empregatício com a Amália. Ele tinha o chamado título, era o funcionário com registro junto aos patrões. Mas, na prática, todos os dependentes que integravam seu clã – mulher e filhos, sobretudo após os 5 anos de idade – iam para o canavial. Às mãos pequeninas das crianças era reservada a tarefa de enfeixar a cana cortada pelo adultos.

Na hora de receber o pagamento, a quantidade de cana cortada por toda a família era pesada e contabilizada. O valor devido – um número mágico cuja lógica que lhe dera origem escapava aos cortadores de cana – era repassado a apenas um dos empregados, o titular. Para todos os efeitos (sobretudo os legais), toda aquela cana cortada tinha sido produto do labor de um só empregado. Como não tinham qualquer amparo legal, os dependentes do titular, embora fossem tratados no hospital da fazenda quando se machucavam, não recebiam nenhum tipo de indenização se viessem a sofrer algum acidente de trabalho. O estudo levantou processos contra a Amália movidos por trabalhadores acidentados, não-titulares, que não foram indenizados pela empresa.

A estratégia de exploração não parava por aí. Os cortadores de cana recebiam uma remuneração, mas, no dia do pagamento, dinheiro algum lhes tocava a mão. As toneladas de cana decepadas no mês garantiam às famílias de trabalhadores um vale (ou ordem), que, obviamente, tinha de ser trocado por comida e remédios nos armazéns e farmácias existentes na propriedade. Ou seja, o pouco que era ganho era gasto ali mesmo, dentro da própria Amália. Quase sempre consumindo produtos com a marca Matarazzo, vindo das mais de 350 fábricas que o grupo chegou a ter, algumas delas funcionando na propriedade de Santa Rosa de Viterbo, em outras áreas da fazenda.

Em muitos casos, o titular não conseguia cobrir todas as suas despesas com os vales que recebia do patrão. Os débitos no armazém ou boticário (leia-se, com os Matarazzo) aumentavam a cada mês e acabavam gerando a chamada servidão por dívida. “Era pedir a Deus para não ficar doente. Se tinha de comprar um vidro de remédio, a gente não via pagamento”, relembra o ex-cortador de cana João Flausino, 72 anos. Incapazes de saldar a conta negativa, alguns trabalhadores tomavam uma decisão radical: abandonavam sua casa e fugiam da fazenda. De tão freqüentes, as escapadas geraram uma expressão entre os cortadores de cana da Amália para designar os que deixavam a propriedade em meio à escuridão protetora da madrugada: “Fulano de tal anoiteceu e não amanheceu”.

Cientes de que a vida dura dos cortadores de cana na Amália poderia se tornar ótimo combustível para inflamar e unir os trabalhadores, os Matarazzo trataram de dispersar os colonos por sua imensa propriedade. A estratégia tinha o objetivo claro de dificultar o contato entre os empregados, minando assim a organização de grandes movimentos contestatórios. Segundo o levantamento de Maria Aparecida, os colonos da Amália foram instalados em moradias erigidas em 21 seções rurais, pequenas vilas que se situavam em diferentes partes da propriedade, no meio dos canaviais.

Quando não estavam no corte da cana, os trabalhadores ficavam confinados em suas seções, sem ter muito contato com seus pares de outras seções. O isolamento só era quebrado nos fins de semana em que havia festas nas seções ou jogos de futebol no campo da fazenda. “Havia na Amália uma espécie de relação feudal. Os trabalhadores praticamente não saíam de suas seções”, diz a professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Unesp em Araraquara.Além de farmácia e armazém, cada seção abrigava um grupo de cerca de cem titulares. Reunia, portanto, mais ou menos esse número de casas destinadas às famílias de trabalhadores. Banheiros e tanques comunitários eram instalados para servir grupos de quatro ou cinco casas. “Cada mulher tinha um dia para lavar roupa”, recorda Maria de Lurdes da Silva, 57 anos, ex-moradora da Amália. Ao redor de cada casa, era permitido manter algum tipo de horta ou pequenas criações de animais.

Água e luz
Pelos depoimentos e evidências colhidos no estudo, nem todas as seções contavam com água encanada e luz elétrica. Além das moradias dos cortadores de cana, feitas de alvenaria ou madeira, havia a casa do administrador da seção, a do feitor e a do fiscal. Algumas seções tinham escola. As melhores casas eram ocupadas pelos funcionários de confiança dos Matarazzo. Refinando o sistema de segregação, os senhores da Amália evitavam juntar num lugar trabalhadores italianos (essa minoria tinha uma seção exclusiva, com casas de melhor nível) e o grosso dos colonos, brasileiros.

A família Matarazzo tinha pouco contato direto com seus empregados, sobretudo os mais humildes. Segundo o relato de muitos ex-funcionários, era comum os cortadores de cana se esconderem no meio dos canaviais, a pedido de seus chefes e feitores, a fim de “limpar” o caminho na estrada para a passagem de algum membro da família. Os Matarazzo eram temidos e, não raro, reverenciados pelos trabalhadores.

Para compor o painel das relações trabalhistas na fazenda Amália, situada numa das regiões rurais mais ricas do Estado de São Paulo (para não dizer do país), Maria Aparecida consumiu quatro anos de pesquisa e recorreu a vários tipos de fonte de informação. Com a ajuda de três alunos, bolsistas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), analisou a trajetória de vida de 70 homens e mulheres que passaram pelos canaviais da propriedade. Essas pessoas e seus familiares (esposos, filhos ou até pais) responderam a questionários com dados biográficos e contaram sua história em entrevistas, que redundaram em mais de 140 horas de depoimentos gravados.

Foram ainda encontrados e analisados 208 processos trabalhistas contra a Usina Amália movidos por ex-funcionários (122 no fórum de Santa Rosa e 86 em São Simão) e ouvidos dois juízes que julgaram essas ações. A pesquisadora não conseguiu acesso a descendentes da família Matarazzo, cujos depoimentos certamente serviriam de contraponto aos dados levantados na pesquisa. A revista Pesquisa FAPESP tentou entrevistar alguém da família, mas também não obteve sucesso.

Um minucioso levantamento iconográfico das vidas dos cortadores de cana conseguiu reunir 300 fotos. Muitas dessas imagens foram cedidas pelos entrevistados, algumas resgatadas na Fundação Cultural Santa Rosa de Viterbo, outras (as mais recentes) foram feitas pela própria pesquisadora ou colaboradores. Praticamente, não há fotos de trabalhadores cortando cana, sobretudo das décadas mais distantes. Esse fato é interpretado como um indício de que os próprios trabalhadores desvalorizavam a sua condição social. Quando tinham condição de gastar dinheiro com fotos, os cortadores preferiam fazer retratos de momentos de lazer, em festas ou eventos.

As origens da Amália
Provavelmente nunca existiu uma fazenda como a Amália no Estado de São Paulo. Pelo menos não com os mesmos ingredientes e requintes que fizeram dessa propriedade uma das preferidas dos Matarazzo. Originalmente uma fazenda de café, a Amália, antes de parar nas mãos do então maior grupo industrial brasileiro, pertencia a Henrique dos Santos Dumont, irmão do pai da aviação. Embora sediado em Santa Rosa de Viterbo, o imóvel rural fazia seus 11 mil alqueires avançarem ainda pelo território dos municípios de São Simão, Serra Azul, Cajuru e Tambaú. Na década de 20, Henrique decidiu se desfazer dessa enorme área, equivalente a 40% da área da cidade de Ribeirão Preto.

Nessa época, após ter deixado para trás a cafeicultura e se lançado no plantio de cana-de-açúcar, gesto que seria imitado décadas mais tarde por outras fazendas da região de Ribeirão Preto, a propriedade já tinha usina de açúcar, destilaria de álcool e uma pequena ferrovia. Dando seus primeiros passos no mundo da agroindústria, a Amália despertou o interesse de três empresários de São Paulo, que a compraram em parceria. Francisco Schmidt, Alexandre Siciliano e o conde Francesco Matarazzo foram sócios na fazenda até 1931.

Nesse ano, após inúmeras desavenças com os colegas no negócio, o fundador das IRFM passou seu quinhão no imóvel rural para o filho e futuro sucessor, Francisco Matarazzo Jr. Amante das plantas e dos bichos, o jovem se interessou pela Amália. Tratou logo de arrebatar a parte dos outros sócios e se tornou o único dono do empreendimento. Era o início de uma pequena revolução, que acentuaria a já presente vocação agroindustrial da fazenda.

O livro comemorativo Matarazzo 100 Anos, editado em 1982 pela própria família, resume muito bem as transformações operadas pela nova visão à frente da fazenda: “A organização industrial da Amália seguiu o modelo tradicional da família: máximo aproveitamento da matéria-prima. Assim, aliada à usina e à destilaria, o conde Jr. instalou uma fábrica de papelão, para utilizar o bagaço da cana; uma fábrica de ácido cítrico, processado por fermentação alimentada pelo melaço da cana; uma fábrica de éter sulfúrico, aproveitando o excedente de álcool”. Além de implementar essas novas unidades industriais e erigir um imponente palacete residencial em sua propriedade, Francisco Matarazzo Jr. criou, em 1937, uma fábrica de doces e conservas. A Produtos Amália usava como ingredientes os frutos das novas culturas introduzidas na fazenda, marmelo, goiaba e abacaxi.

Com o tempo, a Amália se tornou o centro nervoso da vida em Santa Rosa. Até do ponto de vista da vida social. Afinal, além de ser uma potência agroindustrial, a fazenda tinha cinema, campo de futebol, igreja, escola, hospital. Organizava as melhores festas, casamentos e bailes de carnaval. E abrigava um palacete que nenhuma outra fazenda tinha – e quase ninguém via. Era uma cidade dentro da cidade.

Pode-se reprovar moralmente o sistema de titularidade, que permitia pagar apenas ao chefe da casa e usar a mão-de-obra de toda a família, mas não condená-lo do ponto de vista legal – pelo menos não até 1963. Apenas nesse ano entra em vigor o Estatuto do Trabalhador Rural, que iguala os direitos do homem do campo aos do trabalhador urbano e torna ilegal o sistema de titularidade. A partir dessa data, o cortador de cana começa a ter direito a férias, décimo terceiro salário, carteira assinada (para cada trabalhador e não para apenas o titular), atendimento médico pelo INSS e aposentadoria. Segundo Maria Aparecida, como a legislação anterior à criação do estatuto era omissa em relação aos direitos dos trabalhadores rurais, predominavam os contratos particulares entre patrões e empregados, como os de titularidade.

Em 1964, no entanto, com a instalação da ditadura militar no Brasil, começa a ser criado um arcabouço jurídico-legal – leis de Segurança Nacional e de Greve – que seria usado por alguns patrões do campo para se livrar dos colonos sem ter de pagar os novos direitos que o estatuto previa. E, no seu lugar, recrutar os mesmos trabalhadores na condição de temporários, de bóias-frias, que não contavam com quase nenhuma proteção trabalhista e para os quais não era mais preciso dar moradia.

A socióloga Maria Aparecida aponta a eclosão de um evento em 1966, fruto desse novo contexto, que se transformaria num marco divisor da trajetória dos trabalhadores da Amália. Houve uma greve de seis dias, por melhores salários e condições de trabalho. Segundo evidências e depoimentos de ex-funcionários colhidos pela pesquisadora, esse movimento foi, secretamente, insuflado pela direção da Amália, que controlava o recém-criado sindicato dos trabalhadores rurais.

Terminada a greve, a direção da Amália começou a mandar embora os colonos que participaram do movimento. “Pouca gente que fez greve voltou ao trabalho”, relembra o aposentado Alcides Brandão, 77 anos, que viveu de 1950 a 1972 na Amália. Para a socióloga, as razões que motivaram o ato de protesto dos trabalhadores são hoje bastante cristalinas. “A greve foi arquitetada pela empresa (os donos da Amália) com o aval da ditadura militar, criando um pretexto para se desvencilhar dos colonos sem ter de pagar os direitos e indenizações devidos, sobretudo as aposentadorias dos funcionários mais antigos. Foi uma armadilha”, diz a professora.

Assim que um cortador era despedido e convencido a deixar a fazenda, sua antiga casa era posta abaixo pelos patrões. Dessa forma, ficava inviabilizada a sua volta à propriedade na condição de colono e começava a ruir o sistema de titularidade, baseado na concessão de casa e trabalho aos cortadores de cana. Como quase ninguém se mostrava satisfeito com o acerto de contas proposto pelo patrão, houve uma avalanche de ações judiciais contra a Amália, contestando os valores das indenizações.

Enquanto a disputa judicial se arrastava pelos corredores dos tribunais, os cortadores de cana em litígio conseguiram respaldo legal para continuar residindo em suas casas. Eles podiam continuar morando ali até a sentença final dos juízes, mas os Matarazzo não lhes deram mais serviço – pelo menos não oficialmente. E ainda lhes impuseram represálias. “Depois da ação contra a usina, eles (os patrões) cortaram os animais e a horta”, conta Helena Teodoro, 82 anos, que morou por quase três décadas na Amália.

Em alguns casos,o impasse judicial durou até cinco anos. Para sobreviver, esses colonos demitidos, mas na prática ainda vivendo na fazenda, tiveram de ganhar o seu sustento às escondidas de seus ex-patrões. Eles passaram a ser contratados como trabalhadores temporários por empreiteiras que começaram a fornecer bóias-frias para os canaviais da Amália. Maria Aparecida suspeita que algumas dessas empreiteiras eram empresas criadas pelos próprios donos da fazenda. Nos mais de 200 processos trabalhistas levantados pelo estudo, os dois juízes paulistas que analisaram boa parte dos casos costumavam dar razão aos empregados. Mas a Justiça era morosa e permitia uma série de recursos e artimanhas jurídicas. Antes de ser alvo do veredicto final, uma ação, por exemplo, poderia passar – passear, talvez fosse o termo mais adequado – por uma série de instâncias, como os fóruns de Santa Rosa, Ribeirão Preto, São Paulo, Rio de Janeiro e, finalmente, Brasília.

Anos de indefinição fizeram muita gente desistir de exigir seus direitos na Justiça ou optar por um acordo pouco vantajoso. “Os que ganharam ações conseguiram dinheiro suficiente para comprar uma casinha”, diz a socióloga. Resultado: nos primeiros anos da década de 70 o processo de expulsão dos colonos praticamente havia se encerrado e o sistema de recrutamento de bóias-frias para o canavial já era uma realidade sem volta. Poucos dos ex-colonos demitidos ficaram em Santa Rosa de Viterbo. A maioria se viu obrigada a ir para outras cidades, distante da influência dos Matarazzo. Maria Aparecida localizou grupos de ex-moradores da Amália em Leme e Barrinha.

Resgate da história do campo
O interesse em resgatar histórias do campo, como a dos cortadores de cana da Amália, tem a ver com as origens rurais de Maria Aparecida. Nascida em Altinópolis, município próximo a Ribeirão Preto, onde a terra roxa fez florescer pés de cafés, a pesquisadora se lembra da infância na fazenda da família, uma propriedade de 100 alqueires. “Cheguei a trabalhar no plantio e colheita de café. Mas meu pai sempre quis que os filhos estudassem”, recorda. Foi o que ela fez. Formou-se em Ciências Sociais e fez mestrado e doutorado na França, sempre estudando as formas de exploração do trabalho agrícola. Entre suas recordações antigas, destaca-se a imagem de trabalhadores rurais migrantes, vindos de outros Estados à região de Ribeirão Preto, em busca de trabalho nos canaviais.

Como se sabe, essa cultura agrícola acabou tomando o lugar dos cafezais, que haviam dado fama e fortuna à elite local. Em meados da década de 80, Maria Aparecida começou a trabalhar com a questão das mulheres e dos migrantes no meio rural paulista. Em 1988, para se embeber do modo de vida do migrante, chegou a ficar 40 dias no Vale do Jequitinhonha, região do norte de Minas que se estende até a divisa com a Bahia. O Jequitinhonha é conhecido por ser uma das áreas mais pobres do país, uma espécie da ante-sala das misérias e mazelas que assolam o vizinho Nordeste. Com anos de estrada e trabalho sobre a condição da mulher do campo, a pesquisadora escreveu o livro Errantes do Fim do Século, financiado pela FAPESP, CNPq e Fundunesp, obra que, em 1999, obteve menção honrosa no prêmio Casa Grande e Senzala, da Fundação Joaquim Nabuco, de Recife.

Situação atual
Não é raro hoje se encontrar famílias de ex-trabalhadores da Amália sendo comandadas por mulheres. Isso se deve basicamente a dois motivos: ou o antigo chefe da casa morreu, às vezes em razão de alguma enfermidade decorrente dos anos de trabalho nos canaviais, ou ainda está vivo, mas se tornou mais um fardo do que um pilar em seu clã. Por causa da dificuldade de encontrar emprego na cidade e inadaptação ao novo tipo de existência sem o bastão protetor-opressor dos antigos donos da Amália, muitos ex-colonos se tornaram alcoólatras.

Para desempenhar esse novo papel de esteio emocional e financeiro do lar, essas mulheres têm de vencer desafios ainda maiores do que em seu passado de colona. Concorrendo agora com homens mais novos e máquinas que vão tomando conta do corte da cana, as mulheres bóias-frias enfrentam enormes dificuldades em encontrar emprego no meio rural. Restam a elas poucas alternativas de serviços, em geral os piores serviços, aqueles que nem homens ou máquinas conseguem ou gostam de fazer. Trabalhos como catar, agachadas, bitucas no canavial (os tocos de cana que as máquinas deixam depois de executar o corte) ou mexer com agrotóxicos em viveiros.

O quadro levantado pelo estudo tampouco aponta alguma perspectiva de melhoria familiar em razão da ascensão social das novas gerações que compõem essas famílias. Apesar de terem maior grau de escolaridade do que seus pais, os filhos e netos dos ex-trabalhadores rurais da Amália continuam ocupando os estratos inferiores das sociedade. Quando arrumam serviço, são empregadas domésticas, pedreiros ou se esfolam em canaviais ou na colheita de outras culturas no interior paulista. “Como seus pais, eles perpetuam o que se chama de destino de classe. Nascem, crescem e se relacionam com pessoas de seu mesmo estrato social”, afirma a socióloga Maria Aparecida.

Os órfãos da Amália

Ao tomar conhecimento da vida de privações e trabalho semi-escravo que levavam os cortadores de cana da Amália, a primeira reação de muitas pessoas é concluir que ninguém deve sentir saudade de ter passado pela fazenda. Essa impressão, no entanto, é falsa. Embora alguns, geralmente os mais novos, não economizem nas críticas a seus ex-patrões, muitos dos ex-colonos – hoje soltos no mundo, fora do universo rural fechado e controlado a ferro e fogo pelos Matarazzo – ainda guardam boas recordações daquela época difícil.

Evocam o companheirismo que reinava entre os moradores da fazenda. Fazem referência ao grande movimento de gente na Amália nos domingos e dias de festa, quando a propriedade se tornava o centro do lazer em Santa Rosa de Viterbo. As mulheres de idade mais avançada se lembram que, ao nascer, seus filhos eram presenteados com pequenos mimos que teriam sido feitos pela própria condessa Mariangela Matarazzo, esposa do conde Francisco Matarazzo Jr. Mas um gesto de seus antigos patrões a maioria desses ex-colonos não entendeu – e perdoou – até hoje: por que, afinal, eles perderam suas casas na Amália e foram postos cerca afora da propriedade, em muitos casos sem receber as devidas indenizações? Com a palavra Maria Aparecida Brandão Flausino, 50 anos, que, ao lado dos pais e oito irmãos, morou e trabalhou dos 7 aos 19 anos nos canaviais da Amália.

“Fiquei chateada por terem nos tirado de lá”, diz essa mineira, baixinha e forte, ainda hoje exercendo o ofício de cortadora de cana ou trabalhando na colheita de outras culturas – quando consegue algum serviço – nos arredores de Leme, onde reside atualmente. “A vida na fazenda era dura, trabalhava-se muito, mas era boa. Podíamos plantar arroz, feijão, milho. Era mais fácil do que na cidade. Aqui tem de comprar tudo no mercado, tem de ter crédito.”Em sua modestíssima casa, quase sem acabamento algum e composta de dois minúsculos quartos, uma sala/cozinha, um corredor com um tanque e um quintal ao fundo, moram seis pessoas: ela, o marido, José Aparecido (50 anos), três filhos e um neto.

Como os filhos estão sem emprego fixo e o marido não dispensa a companhia de um bom copo, Maria Aparecida é o esteio da casa. Por sorte, ela ainda exibe uma boa saúde e disposição para trabalhar. Os anos cortando cana curvada ainda não afetaram as suas costas, como acontece com muitos trabalhadores. Seu pouco mais de um metro e meio parece tê-la livrado, por ora, das dores na coluna. Quem é menor tem de se curvar menos para podar a cana.

Nascida num sítio entre Santa Rosa e São Simão, Fátima Aparecida Silva Pereira, 42 anos, cortou cana na Amália durante oito anos, de 1970 a 1978. Ela não pegou a época dos colonos e nunca pôde morar na fazenda, a melhor fase na visão da maioria dos ex-moradores da propriedade. Residia em Santa Rosa e prestava o serviço na condição de bóia-fria para empreiteiras que sublocavam mão-de-obra para os canaviais. Sempre ativa nas greves e movimentos contestatórios que começaram a pipocar na região a partir da segunda metade da década de 60, Fátima gostava do clima amigável entre seus parceiros de lida, mas tem uma visão mais ácida sobre sua passagem na Amália. “Todo mundo saiu de lá com problemas (de saúde). Eu tinha dores nas costas e as veias das pernas, às vezes, estouravam durante o corte. A gente também mexia com veneno (fertilizantes, agrotóxicos) e não tinha máscara nem nada”, conta Fátima, que tem grossas varizes nas pernas.

Após a experiência na Amália, ela passou por outros canaviais e até tentou a ocupação de empregada doméstica em Ribeirão Preto e São Paulo. Não se adaptou à vida entre quatro paredes. “Não gostava de ficar presa dentro de uma casa. Cortar cana é mais divertido”, compara. Fátima então voltou para Santa Rosa, mas, depois que casou e teve uma filha (Maria Brígida, com quase 5 anos), teve de abandonar definitivamente o antigo ofício. “Mulher com varizes e filho hoje não consegue emprego (de bóia-fria junto às empreiteiras)”, diz, resignada. A saída foi fazer e vender camisetas, caixas e chinelos para reforçar o orçamento doméstico. Seu marido, Adilson Pereira, ganha pouco mais de R$ 7 por dia colocando veneno para matar formiga num antigo canavial da Amália, hoje sob controle de uma firma que arrenda a terra dos Matarazzo. Seu sonho é mudar de cidade e tentar a sorte em outro lugar. “A Amália acabou. Para nós e para os Matarazzo. Aqui não tem emprego, não tem gente interessada em artesanato. Tenho de pensar nos filhos. Não dá para viver com R$ 200 por mês.”

Afinal, quem são hoje os órfãos da Amália? É quase impossível saber quantos dos cortadores de cana que passaram pela fazenda ainda estão vivos. Mas as 70 pessoas cuja história de vida foi resgatada no trabalho da socióloga Maria Aparecida de Moraes Silva, da Unesp, apresentavam o seguinte perfil. Mais da metade era paulista de nascimento, 30% eram mineiros. Dois terços dos ouvidos eram brancos e um terço era negro ou pardo. Cinqüenta e cinco por cento eram do sexo masculino e 45% do feminino. Quase 85% tinham mais de 50 anos (os mais velhos passavam dos 90 anos). Nove de cada dez entrevistados eram analfabetos ou tinham o primário incompleto. Metade dos indivíduos que deram depoimentos estava aposentada, 12% se rotularam de desempregados, 10% eram donas de casa, 10% trabalhavam na lavoura e 7% se encontravam afastados do trabalho (provavelmente sem ter conseguido se aposentar). O restante tinha outros tipos de ocupação.

Alguns ex-colonos da Amália apresentam sentimentos contraditórios em relação ao período vivido na fazenda, um misto de amor e ódio aos métodos implantados pelos ex-patrões. É o caso do aposentado Joaquim Lourenço dos Anjos, 77 anos, colono da Amália entre 1944 e 1977 e atualmente dono de uma casa em Leme. Durante sua estada no complexo agroindustrial de Santa Rosa, ele foi cortador de cana e também exerceu as funções de feitor e guarda-noturno. Até hoje fala com orgulho de ter ganho o prêmio de terceiro melhor cortador de cana na fazenda em 1955. Na linha operário-padrão, ele seguia os conselhos de seu pai, também morador da Amália, e era contra as greves. “Achava que isso era perda de tempo. Os Matarazzo tinham muito dinheiro e compravam tudo e todos”, diz.

Embora diga que a vida na seção São Lourenço, onde ficava sua casa de colono, era “boa demais”, faz uma série de ressalvas ao sistema vigente na fazenda. “Para dizer a verdade, a gente trabalhava de graça, era muito explorado. Se tivesse vindo para cá antes, teria sido melhor”, acredita. Esse tipo de opinião, rara entre os órfãos da Amália, talvez se explique pelo fato de Joaquim ter conseguido um emprego razoável em sua migração para o meio urbano – foi durante dez anos guarda numa firma de Leme. Esse posto lhe permitiu se aposentar e tocar a vida com um mínimo de decência. A maioria de seus ex-colegas não teve essa chance.

Um palacete italiano entre os canaviais

Não muito distante do suor dos canaviais e das engrenagens do setor agroindustrial da Amália, uma imponente construção encarnava (e ainda encarna) a pompa e o poder associados durante décadas do século passado à aristocrática família de Castella bate que veio fazer a América no Brasil: o palacete, com suas alamedas ajardinadas, que servia de residência dos Matarazzo em suas visitas a Santa Rosa de Viterbo. Não se deve confundir esse edifício, algo único na história rural paulista, com a tradicional casa-grande que funcionou como sede das antigas fazendas de café do Estado.

Projetado por arquitetos italianos, o palacete era decorado com afrescos florentinos, estátuas em estilo renascentista e gravuras do artista plástico francês Jean-Baptiste Debret, que viveu no Brasil no início do século 19. Seus jardins foram criados na década de 30 pelo conde Francisco Jr., filho e sucessor do fundador do grupo, que nutria especial devoção pela propriedade. No livro Matarazzo 100 Anos, obra editada pela família em 1982, o apreço do empresário pelo lugar é descrito assim: “Queria criar uma ilha de sonho onde pensava repousar e até morar, recebendo os filhos em harmonia. Amália era a ‘sua’ casa. Aí ele gostava de receber os amigos e personalidades.”

Para os trabalhadores rurais da Amália, o palacete era mais do que um sonho. Era um mistério completo. Sua entrada no distinto local era proibida e, segundo os relatos colhidos pela socióloga Maria Aparecida de Moraes Silva, pouquíssimos cortadores de cana chegaram mesmo a avistá-lo alguma vez. “Como um castelo da Idade Média, o palacete, na cabeça desses trabalhadores, evocava o mundo dos contos de fada”, afirma.

A fim de facilitar o acesso de seus membros e ilustres convidados – o presidente Juscelino Kubitschek e o político e empresário norte-americano Nelson Rockefeller assinaram o livro de visitas da Amália – a esse ambiente de luxo e prazer, os Matarazzo até fizeram uma estrada particular, ligando o centro de Santa Rosa ao palacete. Hoje, quem passa pela praça Mariah Pia, no coração da cidade, ainda vê o portão, trancado a cadeado e escoltado por dois leões de metal, que delimita o início da estrada da fazenda. Em tempo: o palacete é uma das poucas partes da Amália que ainda pertencem aos Matarazzo.

O projeto
Mulheres da Cana: Memórias (96/12858-2); Modalidade: Auxílio a projeto de pesquisa; Coordenadora: Maria Aparecida de Moraes Silva; Investimento: R$ 15.367,00

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