de Boston
Media Lab / MITHá cegueiras que poderiam ser evitadas se testes diagnósticos baratos e informativos fossem disponibilizados em regiões menos abastadas. É o caso da catarata. Uma nuvem branca que se espalha pelo olho impede a passagem da luz e compromete lentamente a visão. Mesmo com os avanços nas técnicas cirúrgicas, a doença continua sendo a principal causa de cegueira no mundo. Uma tecnologia desenvolvida no Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, com a participação fundamental de brasileiros, poderá ajudar na fácil detecção dessa doença relacionada ao processo de envelhecimento que é responsável pela cegueira de18 milhões de pessoas atualmente em todo o planeta, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). A novidade é um dispositivo para ser acoplado a telefones celulares dotados de um sistema para detectar o problema ocular. O trabalho recebeu em maio dois importantes prêmios, o MIT Ideas, uma competição com júri especializado voltada para projetos sociais que envolvam comunidades carentes, e o MIT Global Challenge Public Choice Award, em que projetos recebem votos de fora da comunidade acadêmica. O projeto será apresentado em agosto na conferência de computação ACM Siggraph. O dispositivo é compacto e barato, e se baseia no que a própria pessoa enxerga. “Ele poderá ser usado na triagem de pacientes em locais onde há acesso restrito à oftalmologia”, disse Manuel Oliveira, professor do Instituto de Informática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), um dos brasileiros envolvidos no trabalho e que ficou entre 2009 e 2010 vinculado ao MIT como professor associado visitante. Unindo conhecimentos em computação gráfica, ótica e técnicas de interatividade, assim como um bom conhecimento de matemática, o sistema, chamado de Catra, permite detectar a presença, localização e gravidade da catarata, gerando mapas que os aparelhos disponíveis hoje nos consultórios não produzem. “Acreditamos que o Catra dará início a uma revolução em dispositivos acessíveis e de alta precisão, nos quais os pacientes têm o direito de ver, arquivar e entender os dados brutos de sua própria saúde, monitorando e testando sua visão em qualquer lugar”, disse Ramesh Raskar, idealizador do projeto e líder do grupo Camera Culture, no Media Lab do MIT, onde o trabalho foi realizado.
Ponto luminoso
“A base da tecnologia é usar a tela do celular como fonte de luz e um software interativo, desenvolvido pelos pesquisadores, que varre diferentes pontos do olho em busca de alterações, bloqueios ou dispersões de luz”, diz Oliveira. A cada momento a luz acende em um lugar distinto da tela. Para direcionar os raios de luz projetados do celular, eles criaram um dispositivo plástico que tem um pequeno orifício e uma lente. Quando o ponto de luz acende na tela do celular, a luminosidade passa pelo orifício e vira um raio, um pequeno filete. A lente inserida dentro do dispositivo garante que os raios atinjam a córnea e o cristalino, que são as lentes naturais do olho, convergindo em seguida para um ponto único na retina do usuário. Cada vez que o ponto luminoso se movimenta na tela do celular, o raio de luz entra por um lugar diferente da córnea.
O usuário olha para a tela do celular por meio do dispositivo e responde a diferentes comandos apertando as teclas do próprio aparelho. Quem não tem catarata vai enxergar, no primeiro teste, caracterizado por ser uma varredura automática do olho, um ponto verde que não muda de brilho e nem pisca. Se a pessoa tem a doença, no momento em que o raio de luz passar pela mancha branca da catarata, o ponto some rapidamente. Isso acontece porque a catarata faz com que o raio de luz altere seu percurso, tanto bloquean-do quanto espalhando a luz.
Na segunda etapa, um software interativo emite um bip para cada ponto testado nas lentes naturais do olho do paciente. Caso o raio desapareça, ou se torne escuro, um botão do celular deve ser apertado, marcando a região como afetada pela catarata. Esse processo é repetido várias vezes para avaliar a consistência das respostas, gerando ao final um mapa onde estão marcados os pontos em que a pessoa percebeu alguma alteração de luminosidade, mostrando a localização e o tamanho da catarata. Agora que o software sabe a localização dos pontos de catarata, a etapa seguinte é escolher um deles e compará-lo a uma região onde a lente do olho é limpa, sem a presença de deformações. Usando o mesmo aparato, o paciente compara os dois caminhos luminosos e, via botões do celular, faz com que um dos pontos se torne igual ao outro, gerando um mapa de atenuação. Com isso é possível dizer o quanto a mancha está bloquean-do a luz, o que equivale à densidade da catarata.
O projeto do Catra começou quando Oliveira e seu aluno de doutorado Vitor Pamplona chegaram ao Media Lab em 2009 com a vontade de combinar seus estudos em modelos matemáticos voltados para a fisiologia do olho humano com o conhecimento de Raskar em tecnologias de câmeras. Os testes iniciais usaram uma rede de microlentes dispostas em um pedaço de papel, com pontos coloridos debaixo das lentes para entender onde a luz vinda de cada lente ia parar. Esses foram os primeiros passos do que viria a ser o Netra (Near-Eye Tool for Refractive Assessment), um dispositivo para prescrição de óculos similar ao Catra, que detecta miopia, hipermetropia e astigmatismo, usando um dispositivo acoplado ao celular. Pamplona participou dos dois trabalhos, no segundo com a colaboração de Erick Passos, da Universidade Federal Fluminense. “A invenção funciona, mas o uso clínico ainda é questionado pelos médicos, porque não fizemos a validação clínica mais extensa, confrontando com informações médicas detalhadas dos usuários”, diz Pamplona.
“O trabalho tem o seu mérito, é interessante, mas a aplicação clínica é precoce”, diz o oftalmologista Rubens Belfort Filho, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Belfort gostaria de ver pesquisadores da área médica participando de artigos científicos publicados pelo grupo e se mostra preocupado com o fato de o teste ser subjetivo. “Não existe ainda uma maneira científica e objetiva de avaliar o progresso da catarata. Isso é ruim, pois se vou fazer uma pesquisa clínica quero saber se uma droga é boa para parar a evolução da catarata ou não. Só que esse método também não adianta porque é baseado naquilo que o paciente acha que está vendo”, diz.
Shrikant Bharadwaj, diretor associado de optometria do L V Prasad Eye Institute (LVPEI), rede de pesquisa e tratamento da saúde ocular localizado na Índia e um dos centros da OMS para prevenção da cegueira, diz que um dispositivo como o Catra teria um impacto enorme no seu país. “Atualmente a dimensão da catarata é feita usando uma lanterna, que não detecta todos os tipos da doença, apenas os mais avançados. O Catra será muito mais quantitativo”, explica. Estruturado com centros de excelência e postos de atendimento, o LVPEI atende à população do meio rural nos chamados centros primários de visão que cobrem em média uma população de 20 mil pessoas moradoras de vilas. As identificadas com a doença podem ser encaminhadas para um centro de tratamento mais complexo se necessário. Para Bharadwaj, um dispositivo como o Catra poderia ser usado por profissionais da saúde, batendo de porta em porta para medir catarata na população. A outra opção seria utilizar o slit lamp, o equipamento comum em consultórios médicos para exame oftalmológico (aquele no qual apoiamos o queixo enquanto o médico avalia os olhos). O problema é que tanto a versão estática quanto a portátil do aparelho são muito caras.
Bharadwaj conta que a questão da interatividade do paciente com o celular é um desafio que eles ainda enfrentam principalmente com populações do meio rural que utilizam o Netra para prescrição de graus de óculos. “Os resultados tendem a ter mais ruídos e o tempo de treinamento necessário para que os pacientes moradores das vilas consigam fazer o teste usando o celular ainda não é ideal”, diz. Foi por isso que Bharadwaj viajou ao MIT em maio para discutir com o grupo liderado por Raskar maneiras de deixar o teste menos subjetivo. A equipe do LVPEI não sabe ainda se a mesma dificuldade observada com a utilização do Netra no campo vai acontecer também com o Catra. Eles acabaram de receber o protótipo deste último. “Estamos agora nos organizando para testar o Catra com indivíduos do meio rural”, diz Bharadwaj.
Arquitetura global
Reunião multidisciplinar de ideias, criação e inovação
Os laboratórios do MIT Media Lab são como ateliês de arquitetura onde engenheiros, artistas, cientistas e designers trabalham em áreas tão distintas como neuroengenharia, carros do futuro e composição musical. Usando muita criatividade, protótipos são criados e testados em espaços abertos, em bancadas onde o espírito colaborativo e a “mão na massa” do MIT podem ser observados. “Desmontar e remontar é algo marcante no Media Lab”, diz Manuel Oliveira, professor do Instituto de Informática da UFRGS que foi professor visitante entre 2009 e 2010 no laboratório. Vidros separam os pesquisadores dos curiosos que passam pelo local, transformado em um dos pontos turísticos da região de Boston. De lá saíram empresas como a E-ink, responsável pela primeira geração de telas de e-books (Kindle), Harmonix, que comercializa os jogos Rock Band e Guitar Hero, além da organização sem fins lucrativos OLPC (sigla para “um laptop para cada criança”), cujo cofundador foi Nicholas Negroponte, professor do MIT. Foi ele quem, em 1985, fundou o Media Lab junto com o então reitor, Jerome Wiesner, defendendo o uso de métodos da arquitetura para desenvolver novas tecnologias e novas mídias.
Ao clicar em telas interativas espalhadas pelo prédio do Media Lab é possível conhecer os 30 grupos de pesquisa que conduzem mais de 400 projetos. São 28 professores e pesquisadores, 139 alunos de pós-graduação, além de professores visitantes. A principal fonte de financiamento vem de um consórcio com empresas que pagam “para experimentar projetos malucos ou arriscados demais para elas mesmas”, diz Leo Burd, pesquisador brasileiro do Media Lab. Oliveira destaca que as pessoas tendem a romantizar demais o laboratório. “Nem tudo que é feito ali é espetacular, mas o espaço consegue atrair pessoas muito competentes, interessadas em construir um ambiente de experimentação e muito trabalho.”
Em abril deste ano, o japonês Joi Ito, radicado nos Estados Unidos, assumiu o cargo de novo diretor do Media Lab. Ito, que nunca trabalhou antes na academia, ajudou a estabelecer em 1994 o primeiro serviço de internet no Japão e é presidente do conselho do Creative Commons, entidade que visa promover o compartilhamento de informações digitais. Como investidor em empresas de tecnologia, Ito colaborou na fundação dos sites do Twitter, Flickr e Last.fm.
Republicar