LAURA DAVIÑAAs caixas amontoadas tomam todo o apartamento: nossas coisas.
Após o fim de semana extenuante de separa, embala, fecha, não há mais nada nas estantes — que me olham, cabisbaixas, exprimindo o desamparo da súbita prescindibilidade. Retribuo o olhar.
Uma sala cheia de caixas de papelão só não é mais triste do que uma sala vazia. Se a perspectiva do novo vibra à frente, a gente adivinha uma saudade que ainda não chegou.
Ouço os estalos do piso de tábuas corridas que cede à quentura amena do sol vindo da varanda e boto uma ficha na máquina da lembrança. A primeira vez que entrei nessa sala: amplitude de outro vazio, ainda grávido de promessas. A caixa, também outra, nas mãos dele.
Devolvo a ficha.
“Não vai jogar fora este também”, e a frase deixava vazar a mágoa mantida em fogo brando por dois anos. Ele se referia ao canudo que um dia achou na rua, entrelaçou e transformou em flor antes de me entregar, com olhos de meiguice infantil. Eu ri, botei a flor no bolso da camisa, mas quando chegamos em casa joguei na lixeira. Não podia imaginar.
Seu alerta trazia no lombo a remissão. Preso na sunga, o pequeno saco plástico de onde tirou um cavalo-marinho. Morto.
“Encontrei na praia e lembrei de você.”
Não houve tempo para que perguntasse por que um cavalo-marinho, com aquele corpo esquálido, feioso, poderia fazer com que se lembrasse de mim.
“Sabia que os cavalos-marinhos são os animais mais fiéis do mundo?”
Diante de meu ar desnorteado, ele pediu que fizesse uma concha com a palma da mão e delicadamente colocou o bicho ali. “Vou pro banho.” E seguiu, deixando um rastro de areia pela sala.
Quando o conheci, na festa de uma amiga, estávamos razoavelmente bêbados. Eu chegava de outra festa, ele fazia a terceira parada de um périplo pelos bares de Laranjeiras que cumpria semanalmente — um de seus tantos hábitos, descobriria mais tarde. E logo tomou a atenção da mesa, desfiando uma estranha tese sobre O mágico de Oz e analisando as canções de um disco da Ângela Ro Ro. Não lembro qual era a relação, mas o modo como ele falava, o flerte natural com as palavras que preenchiam o bar como balões vermelhos rapidamente me enredaram. E eu cedi.
Nosso primeiro encontro, alguns dias depois, foi no mesmo bar.
“Aqui estabelecemos nosso mito fundador”, ele disse, erguendo a tulipa de chope. Estranhei a súbita solenidade, mas confesso que achei original.
Ainda não conhecíamos, então, o cheiro (depois íntimo) dos nossos hálitos, a arquitetura dos corpos (depois percorrida). Não havíamos desfolhado as idiossincrasias. Tudo era ainda entusiasmo e pedra bruta. E fomos adiante.
As caixas tomam todo o apartamento: as coisas dele.
No canto esquerdo, sobre uma das caixas, o cavalo-marinho, já ressecado e endurecido, parece dormir.
Quando organizei a mudança, não soube onde colocá-lo. Cogitei a caixa onde estão as cartas, que ele escrevia vigorosamente — e a mão. Pensei em juntá-lo à coleção de bonecos de super-heróis. Ou armazená-lo entre o que ele chamava de “diversos”.
Mas no fundo sabia que ele o cavalo-marinho era meu. Nosso.
Diversos: Filmes vistos em julho Amacord — Fellini é um palhaço triste. A testemunha — Bom policial, Ford canastra toda vida. Asas do desejo — Quero ser anjo.
Ainda Uma embalagem antiga de cigarro. Cópia do hemograma. Carteira da academia de ginástica, vencida. Um guardanapo com anotação a caneta: “Ar em dívida”.
Sim, ele anotava frases em guardanapos, embora nunca fizesse uso delas. E mantinha os guardanapos nas gavetas de um velho armário. Assim como folhetos sobre Cuba, apostilas de astrologia, broches do movimento ecológico, cartinhas de antigas namoradas, óculos que nunca mais usaria.
Quando certa vez lhe perguntei por que acumulava tantos objetos sem serventia, ele respondeu, fingindo irritação:
“São a minha máquina da lembrança”.
Cavalos-marinhos são promíscuos, diz estudo
Um estudo conjunto realizado por 15 aquários de vida marinha do Reino Unido demonstrou que os cavalos-marinhos não são monogâmicos. A tese derruba o mito da fidelidade existente entre a espécie e, muitas vezes, indica promiscuidade e comportamentos homossexuais em determinados grupos. Os resultados foram obtidos após 3.168 registros de acasalamentos de três espécies da Austrália, Caribe e Reino Unido. No total, 1.986 “contatos” entre machos e fêmeas, 836 entre fêmeas e 346 entre machos foram computados. Até este estudo, muitos biólogos acreditavam que os cavalos-marinhos eram monogâmicos.
Nunca contei a ele sobre a notícia em que esbarrei numa tarde vagabunda, navegando pela internet sem grandes intenções.
Morávamos juntos já há quase quatro anos. Desde a noite no bar em Laranjeiras, os encontros se sucederam e as ânsias de parte a parte foram içando curiosidades e esperanças que se cruzavam até enfim se fundir no clichê da atração dos opostos. Ah, você é de Escorpião. “Ascendente em Peixes.” Sou de Libra, não sei o ascendente. Adora Truffaut” Gosto de Spielberg. Cinema. TV. Clarice. Graciliano. Academia. Ioga. Você. Você.
Preferi manter o pacto silencioso que fizéramos no dia em que ele chegou da praia com o cavalo-marinho, ainda que odiasse aquele bicho a cada cisco de desconfiança, a cada celular desligado, a cada.
Ademais, traçáramos planos, muitos planos.
Ver o pôr do sol em Varadero. Fazer um curso sobre astrologia. Ler um livro a dois. Transar a três.
As caixas tomam todo o apartamento: minhas coisas.
Não houve tempo para adeus, um rito para dramatizar a partida. É possível que em alguns anos fique apenas a imagem dele. Talvez as piadas privadas, os fracassos forjados na cumplicidade, o inventário dos afetos trocados sem noção de urgência.
Nesse vácuo entre o que foi e o que virá, me aproximo da caixa menor e pego o cavalo-marinho. Seguro com cuidado para que o corpo não quebre e saio do apartamento. Três andares, e a portaria.
“Seu Zé, vou até a praia. Se alguém me procurar, peça para me avisarem.”
A praia não fica distante, dois quarteirões que percorro sob um sol destoante.
Ao pisar na areia, vejo alguns garotos perto da rede de vôlei. Não há muita gente.
Sento próximo aos garotos, o cavalo-marinho nas mãos, e fixo os olhos na linha do horizonte que liga as ilhas, enganando a solidão. O mar corre agitado, parece tremer, como se reprimisse um medo não dito de engolir tudo.
Penso que aquele cavalo-marinho já nadou ali (será que teve medo”). Penso na expressão larga do rosto dele ao retirar o cavalo-marinho do saco plástico e pousar em minhas mãos. Na algaravia das primeiras trepadas, no limbo das zangas excessivas. Penso, mesmo não querendo pensar, até que o Marquinhos, filho do Seu Zé, toca as minhas costas e avisa: “Meu pai mandou avisar que o caminhão de mudança chegou”.
Então agradeço, falo que ele já pode ir, que já vou, e caminho até a água a fim de molhar os pés. Agora é descer todas aquelas caixas. “Minha máquina da lembrança”, recordo da frase e esboço o sorriso possível. Levo as mãos até o mar e devagar, bem devagar, solto o cavalo-marinho, que começa a deslizar sobre as ondas, dançando no ritmo intenso da maré, distanciando-se da margem, ficando cada vez menor. Simplesmente indo, indo, indo.
Marcelo Moutinho é autor dos livros Somos todos iguais nesta noite e Memória dos barcos, organizador das antologias Prosas cariocas, Contos sobre tela e do Dicionário Amoroso da Língua Portuguesa. Publica seus textos em www.marcelomoutinho.com.br
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