O Brasil dominou mais uma técnica que pode no futuro contribuir para a regeneração de diferentes tecidos do corpo humano. A bióloga Patrícia Beltrão Braga, da Universidade de São Paulo (USP), conseguiu transformar células extraídas do dente de crianças em células bem mais versáteis: as células-tronco pluripotentes, capazes de originar as mais variadas células do organismo. Esse resultado, obtido em um laboratório brasileiro a partir de dentes doados por crianças brasileiras, deve garantir aos grupos nacionais mais independência em uma área em que a competição é bastante acirrada. A partir de agora equipes de outros laboratórios do país podem ter acesso facilitado a esse tipo de material, que é necessário para compreender o desenvolvimento de muitas enfermidades e a regeneração de tecidos. Só no ano passado as células reprogramadas começaram a ser produzidas e distribuídas gratuitamente para grupos de pesquisa de todo o Brasil pelo Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (LaNCE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Patrícia usou a estratégia proposta em 2007 pelo pesquisador japonês Shinya Yamanaka, da Universidade de Kioto, para alterar o funcionamento de quatro genes das células da polpa dos dentes-de-leite, consideradas adultas por desempenharem funções muito específicas. Por meio desse método, chamado reprogramação celular, ela devolveu a essas células as habilidades típicas das embrionárias, cujo uso é polêmico por serem retiradas de embriões humanos nos primeiros dias de vida.
Como se tivessem viajado em uma máquina que permite retornar ao passado, as células da polpa de dente, em geral alongadas, se tornaram esféricas. E seu núcleo, compartimento que abriga os genes e que antes era pequeno, se avolumou. Em paralelo às alterações na forma, também ocorreram mudanças de função. As células que anteriormente mantinham capacidade limitada de gerar outros tipos celulares ? em geral, in vitro produzem ossos e cartilagem ? passaram fazer in vivo também células de músculos, tecido nervoso, respiratório, gástrico, entre outros.
A escolha das células de polpa de dente não foi ao acaso. Anos antes a geneticista russa Irina Kerkis, pesquisadora do Instituto Butantan, em São Paulo, havia verificado que essas células não são completamente maduras como os fibroblastos usados por Yamanaka, que apresentam ramificações e núcleo ovalado e não produzem outros tipos celulares ? os fibroblastos são células que alcançaram o estágio final de especialização e preenchem os espaços vazios do corpo, conectando tecidos. ?Como as células da polpa dentária estão em um estágio de diferenciação [especialização] intermediário ao das células embrionárias e ao dos fibroblastos, imaginei que conseguiria reprogramá-las mais facilmente?, conta Patrícia, que descreveu os resultados em artigo publicado online em 18 de março na revista Cell Transplantation.
Ela estava certa. Depois de passar um mês no laboratório do neurocientista brasileiro Alysson Muotri na Universidade da Califórnia em San Diego, Estados Unidos, aprendendo detalhes da técnica, Patrícia inseriu em um vírus cópias de cada um dos genes que pretendia reativar e infectou células de dente fornecidas por Irina. Cinco dias mais tarde, ela viu surgirem as primeiras células reprogramadas, processo que costuma levar ao menos o dobro do tempo em outros tipos celulares. Injetadas na musculatura de camundongos, as células reprogramadas, mais conhecidas como células-tronco de pluripotência induzida (iPS, na sigla em inglês), originaram depois de 5 a 7 semanas tumores que contêm diferentes tipos celulares: são os teratomas, formados por células dos três tecidos primitivos do embrião, que mais tarde vão se transformar nos 216 tipos diferentes de células do corpo humano. Em geral os teratomas de células iPS humanas só costumam se formar cerca de 16 semanas depois da reprogramação de fibroblastos, embora esse processo seja mais breve quando se usam células-tronco pluripotentes obtidas a partir de outros tecidos, como a pele. E também nos laboratórios, tempo é dinheiro. A reprogramação das células em menos tempo permite economizar os produtos necessários para cultivá-las, que custam cerca de R$ 3.000,00 o litro.
Além do tempo, as células de dente podem conferir outras vantagens ao processo. Patrícia conseguiu cultivá-las isoladamente em laboratório, sem precisar usar uma camada de células de camundongos como suporte e fonte de nutrientes. “Isso evita o risco de contaminação das células reprogramadas com proteínas de animais, algo importante quando se pensa em utilizá-las para tratar seres humanos”, comenta Patrícia, que recebeu financiamento da FAPESP, do Centro Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos. Além de dispensarem esse suporte, as células da polpa dentária se encontram bem mais protegidas do que, por exemplo, as da pele, mais vulneráveis a sofrer alterações genéticas provocadas pela radiação solar.
Patrícia também observou nas células reprogramadas certa tendência a gerarem tecidos nervosos, mas ainda precisa testar em laboratório se, depois de se especializarem, elas se comportam de fato como neurônios. No momento, ela trabalha em parceria com o psiquiatra Marcos Mercadante, da Universidade Federal de São Paulo, para, a partir de células de dente de leite de crianças com autismo, desenvolver um modelo de estudo da doença.
O grupo da USP não é o único a dominar a técnica da reprogramação celular. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o neurocientista Stevens Rehen, coordenador do LaNCE, pretende usar células iPS para investigar outra doença psiquiátrica. Em um trabalho recentemente submetido para publicação, ele descreve como conseguiu devolver características embrionárias a células retiradas da pele (fibroblastos) de pessoas com esquizofrenia.
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