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ambiente

Cerca de 30% da vegetação nativa do Pampa foram cortadas desde 1985

Avanço da agricultura e do plantio de florestas de espécies exóticas ameaça descaracterizar o bioma

Área de Pampa no Rio Grande do Sul perto da fronteira com o Uruguai e a Argentina

agustavop / Getty Images

Segundo menor bioma do Brasil, com área superior apenas à do Pantanal, o Pampa perdeu 30% de sua vegetação nativa nas últimas três décadas e meia. As regiões campestres são as mais afetadas e cederam seu território especialmente para a atividade agrícola. Segundo especialistas, o prejuízo na supressão dessas áreas pode não ser tão imediatamente visível como no caso das florestas, mas nem por isso deixa de ser devastador.

Dados recentes da rede MapBiomas – rede colaborativa de pesquisa formada por organizações não governamentais (ONG), universidades e startups de tecnologia – confirmam a perda substancial de regiões não florestadas (campos) no Pampa: em 1985, essas áreas ocupavam 9,3 milhões de hectares (ha), cerca de metade de toda a extensão do bioma. Em 2022, regrediram para 6,5 milhões de ha. Por outro lado, a agropecuária aumentou praticamente na mesma proporção: entre 1985 e 2022, a área ocupada pela atividade passou de 5,6 para 8,4 milhões de ha. No caso das áreas de floresta, a extensão teve um ligeiro aumento, passando de 2,2 milhões de ha em 1985 para 2,3 milhões de ha em 2022.

O biólogo Mateus Pires observa que não se fala muito sobre o Pampa, um bioma de criação “recente” em termos oficiais. “Em 2024, completam-se 20 anos desde que o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] elevou o Pampa à categoria de bioma”, diz Pires, que faz estágio de pós-doutorado no Laboratório de Ecologia e Evolução da Universidade do Vale do Taquari (Univates), em Lajeado, Rio Grande do Sul.

O bioma só é recente mesmo no papel. “O Pampa é mais antigo do que a Mata Atlântica. É o testemunho de um período, de cerca de 40 mil a 20 mil anos atrás, em que o clima era mais frio que no atual Holoceno”, explica Heinrich Hasenack, coordenador do Programa de Pós-graduação em Agronegócios na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Há cerca de 11 mil anos, com o início do Holoceno, a Terra começou a ficar mais quente e mais úmida. Isso favoreceu a expansão de florestas. As que hoje são chamadas de Mata Atlântica se expandiram pelos campos do Pampa, indo das partes mais baixas para as mais altas. “Os campos de hoje são remanescentes antigos de áreas que não foram ocupadas por florestas”, diz Hasenack.

O bioma cobre mais da metade do Rio Grande do Sul, espraia-se por Argentina e Uruguai e ocupa o imaginário do brasileiro como vastas extensões de campo onde habita o gaúcho – figura ligada à fronteira sul que mistura as culturas ibérica e indígena. O Pampa está intimamente associado à apreciação da identidade cultural da região. A manutenção da paisagem move a cultura e a economia de muitos municípios gaúchos. “A contemplação de paisagens e o turismo em hotéis-fazenda são atividades econômicas importantes, mas, se os campos forem convertidos em lavouras, não teremos mais acesso a isso”, diz Pires. A bióloga Sandra Müller, coordenadora do Laboratório de Ecologia Vegetal da UFRGS, tem a mesma opinião: “O que seria do gaúcho sem o Pampa?”.

O sistema todo é bem mais complexo do que parece – é mais do que um conjunto de campos com relvado até onde a vista alcança. “Em um único metro quadrado de solo encontram-se em média 30 espécies diferentes de gramíneas e herbáceas. Um registro identificou 56 plantas num metro quadrado. Há uma diversidade altíssima de vegetação, mesmo que a fisionomia não mude muito nas regiões de campo”, observa Müller.

Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

Além das áreas de campo, o bioma tem outros tipos de vegetação que se agrupam em regiões diferentes. Segundo Pires, a forma mais simples de classificação divide o Pampa em três grandes partes: planícies com plantas baixas, adaptadas a áreas úmidas e arenosas próximas ao litoral; vegetação arbustiva ambientada ao clima frio e úmido das serras; e gramíneas e arbustos baixos nos campos a oeste do Rio Grande do Sul, em conformidade com um clima seco e ao estresse hídrico provocado por um regime de chuvas mais espaçado.

Segundo Müller, há pesquisas que dividem o bioma em até 10 regiões distintas. Para fins de conservação, esse refinamento é especialmente importante por olhar com mais cuidado para as espécies de fauna e flora levando em conta suas necessidades específicas de manejo.

“Em todo o bioma existem mais de 3 mil espécies herbáceas identificadas”, lembra Hasenack. Ele observa que, para uma zona subtropical, que normalmente não é tão diversa quanto as regiões tropicais, tal diversidade é impressionante.

Os campos naturais, provavelmente a porção mais característica do Pampa, têm um papel crucial em termos de serviços ecossistêmicos. Pires explica que essas áreas servem de provisão para a pecuária, já que oferecem forragem de alta qualidade para bovinos. “Bois criados em pastos naturais têm ganho de peso e dão retorno financeiro mais rápido que aqueles engordados em campos convertidos que empregam pastagens exóticas [com gramíneas não típicas da região]”, afirma o pesquisador.

O Pampa fornece forragem natural ao mesmo tempo que mantém a diversidade vegetal típica e a estrutura necessária para o desenvolvimento de várias espécies vegetais nativas, observa Müller. “É algo que os outros biomas não oferecem.” A pesquisadora explica que no Pampa crescem gramíneas de metabolismo C3 e C4. “As C3 são mais palatáveis, menos duras e agregam no valor de oferta de forragem. São campos mais finos e produtivos no inverno”, comenta.

A perda das áreas não florestadas preocupa os pesquisadores. De acordo com o MapBiomas, o uso do solo para agricultura alcançou 2,1 milhões de hectares entre 1985 e 2022. No mesmo período, a silvicultura, essencialmente florestas plantadas de pínus e eucalipto, aumentou impressionantes 1.667%, ou mais de 720 mil hectares. “Me preocupa muitíssimo porque a perda de hábitat favorece o desaparecimento de espécies da fauna com distribuição muito restrita”, afirma Müller. Variedades de emas, gatos, répteis, aves de campos abertos e mamíferos como o tuco-tuco das dunas (Ctenomys flamarioni) – um roedor ameaçado de extinção que vive em galerias abaixo da superfície do solo – sofrem a pressão da expansão da agricultura e da silvicultura no bioma.

“A soja avança de norte para sul do Pampa e a silvicultura do leste para o oeste”, conta Hasenack. “Muitas áreas ocupadas hoje pela soja são menos aptas para essa cultura, que demanda um manejo muito mais cuidadoso e, ainda assim, corre o risco de obter rendimentos menores”, diz Hasenack.

Cláudio Dias Timm / Wikimedia CommonsO roedor tuco-tuco (Ctenomys flamarioni), que está ameaçado de extinção e habita dunas costeiras do bioma PampaCláudio Dias Timm / Wikimedia Commons

A soja vem se expandindo inclusive sobre a área tradicionalmente ocupada pelos arrozais, que se adaptam melhor às condições do bioma, onde há muitas partes alagadas. “O arroz perde espaço por não ser uma commodity”, comenta Hasenack.

O Rio Grande do Sul é o maior produtor de arroz do Brasil. Segundo o IBGE, o estado registrou uma produção média anual de quase 8 milhões de toneladas entre 2020 e 2022. Em 2021, o Brasil, maior produtor das Américas, produziu 11,6 milhões de toneladas de arroz. Segundo a Embrapa, a produção de arroz em terras altas, ou em várzeas naturais, despencou de 1,6 milhão de toneladas em 2013 para 0,7 milhão de toneladas em 2022. A plantação de arroz em várzeas representa hoje uma fração tão pequena da produção nacional que a Embrapa deixou de contabilizá-la a partir de 2018.

No cultivo do arroz, o uso de fertilizantes e agrotóxicos é menos intensivo do que nas lavouras de soja. Esses produtos químicos poluem o lençol freático. “Além disso, as áreas úmidas do Rio Grande do Sul são grandes sequestradoras de carbono. Com menos trechos inundados, diminui a capacidade de o bioma reter gases de efeito estufa”, pondera Pires. Como a vegetação dos campos, as áreas de várzea ajudam a retirar dióxido de carbono da atmosfera.

Conservar áreas não florestadas do Pampa também é importante por outro motivo. Sob o bioma passa um trecho do aquífero Guarani, uma das maiores fontes conhecidas de água subterrânea do Brasil. “A vegetação nativa tem papel importante na manutenção de estoques de água no subsolo”, destaca Müller.

Segundo os estudiosos do bioma, o problema não é o avanço simplesmente da produção agropecuária no Pampa, mas o crescimento de áreas ocupadas por culturas que degradam o ambiente. Ao invés de monocultura, sugerem que poderia ser melhor para a região promover uma mescla de culturas diferentes para não degradar tanto o solo e conservá-lo produtivo por mais tempo.

“As videiras, por exemplo, convivem com a criação de ovelhas e nunca vão ter a extensão de uma lavoura de soja. Elas formam pequenas parcelas, um mosaico que não vai conflitar de maneira tão agressiva com o bioma. Não é preciso remover toda a vegetação campestre onde as uvas são plantadas”, explica Hasenack. A lógica é interessante também do ponto de vista turístico, como já ocorre na Serra Gaúcha, onde muitas vinícolas exploram um turismo ligado à paisagem regional.

Diferentemente do que acontece em outros biomas, em que áreas de florestas são desmatadas para se tornar pastagem para o gado, o Pampa tem na atividade pecuária um aliado para sua manutenção. Seus campos nativos, que têm cedido espaço para a soja, são pastos naturais.

Para Hasenack, o grande agente de conservação do Pampa deveria ser o produtor rural, ao qual deveria ser concedido mais incentivos para criar gado em pastos naturais. “No Uruguai, que tem as mesmas raças bovinas do Rio Grande do Sul, o gado de corte em campos naturais é altamente valorizado”, comenta.

A conservação é importante porque a restauração do Pampa seria muito mais difícil. “Não temos sementes de gramíneas nativas em viveiros e estamos perdendo a oportunidade de conhecer espécies que poderiam até ser comercializadas”, alerta Müller. “Não seria fácil restaurar os campos que estão sendo convertidos em florestas de pínus, uma espécie exótica e muito agressiva.” Diferentemente do desmatamento na Amazônia, que implica derrubar árvores e gera notícias frequentemente, a supressão de áreas de campos naturais no Pampa ainda não é vista como um drama ambiental.

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