Há alguma coisa de profundamente tocante em todos os Brasis que o olhar fotográfico de Cristiano Mascaro, esse reconhecido fotógrafo/arquiteto, apresenta ao leitor – talvez melhor fosse dizer ao apreciador ou ao voyeur – Cidades reveladas, seu belíssimo livro recém-lançado. Uma certa atmosfera, um clima cheio de delicadeza, parece propor uma viagem, uma passagem para um tempo muito anterior/interior, quem sabe um além do tempo estrito, ainda que todas as suas imagens tenham sido colhidas num período bem definido, entre os anos de 2000 e 2006.
Nesse clima singular, transtemporal, de que as fotografias são investidas com as infinitas gradações entre o preto e o branco, ele é capaz de sugerir a mais íntima ligação entre uma minúscula casa precária, que parece traçada com a inteira pureza de linhas infantis, perdida no meio do mato em Gararu, Sergipe, e a paisagem urbana de um fim de tarde chuvoso (ou seria um amanhecer) na Ladeira General Carneiro, no centro da maior cidade do país, São Paulo (foto ao lado). Pelo olhar de Cristiano Mascaro, o Brasil mais nitidamente urbano e industrial está fortemente aderido ao país singelo da arquitetura popular de formas muito simples; o país barroco e colonial cimenta-se às construções do Império e às audácias das construções modernistas. A força de arcos, a solidez de grossas colunas, ganham um halo poético insuspeitado. Assim ele transita por diferenças e contradições, ligando tudo com um fio sutil por meio do qual nos conduz para o que sabe que pode revelar-se de uma atitude verdadeiramente “drástica e intuitiva” na fotografia, em suas próprias palavras.
Com essa unidade essencial, o livro está dividido em cinco partes: Forma, Composição, Luz e Sombra, Arquitetura, Cidades, cada uma delas aberta pelo texto de um artista plástico ou arquiteto, todos eles ligados como aluno ou professor, em algum momento passado ou ainda, à respeitada Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Assim, Renina Katz fala de forma, Maria Bonomi de composição, Sérgio Fingermann de luz e sombra, Benedito Lima de Toledo de arquitetura e Carlos Lemos de cidades. Há ainda no livro um pequeno e precioso texto do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, um artigo do diplomata e crítico André Corrêa do Lago e um texto do próprio autor, além da orelha assinada pelo poeta Ferreira Gullar.
Cristiano Mascaro, fiel ainda às máquinas analógicas, explica nas páginas finais do livro que descobriu a fotografia e suas possibilidades estudando arquitetura. “Ao folhear alguns livros entre tantos outros existentes na biblioteca da faculdade, bati os olhos, casualmente, em Images à la sauvette, uma das primeiras edições do trabalho de Henri Cartier-Bresson. “E daí emergiu um mais que justificado deslumbramento: “Jamais vou esquecer meu espanto diante daquelas imagens. (…) aquelas cenas eram tão bem estruturadas, captadas em momentos tão expressivos e todos seus elementos ocupavam lugares tão bem definidos nos espaços onde se encontravam, que eu imaginei que tudo aquilo tinha algo a ver com arquitetura” (pp. 175-176).
Faz todo sentido: veja-se a junção extraordinária que disso ele realiza na foto do Museu de Arte Contemporânea de Niterói (p. 49), ou das ruínas da Igreja Matriz de São Matias, em Alcântara (p. 37). Veja-se a eloqüência magistral da relação homem/espaço, arquitetura/homem, em fotos de composição e iluminação deslumbrantes feitas em Porto Alegre, no Clube do Comércio, e em Belém, no Palácio dos Governadores (pp. 94-95 e 96-97). São apenas exemplos, porque é difícil dizer o que mais causa impacto, sacode nossa sensibilidade, nesse mar de imagens de infinita beleza. Ainda bem que Cristiano Mascaro declara sua fé na capacidade transfiguradora do olhar. E explica que fotografa as cidades brasileiras – certo de que elas são as mais relevantes testemunhas das transformações do país, o cenário mais amplo e diversificado por onde se manifesta o brasileiro. Enfim, o retrato mais fiel de nosso caráter (p. 179).
Nas palavras de saudação que dirige ao autor dentro do próprio livro, Paulo Mendes da Rocha diz: “A minha idéia é que a fotografia – a sua sempre – de modo muito comovente fixa para ver o invisível. Para dizer o indizível” (p. 181). É isso: há uma atmosfera das cidades brasileiras que continuaria invisível sem Cristiano Mascaro.
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