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Covid-19

Ciência sob pressão

Interferência política na aprovação de vacina pode minar confiança pública na imunização, alertam pesquisadores

Trump quer um imunizante aprovado antes das eleições de novembro

Yulia Reznikov / Getty Images | Drew Angerer / Getty Images

Representantes de nove empresas que atuam no desenvolvimento de vacinas contra a Covid-19, entre elas a Pfizer e a AstraZeneca, divulgaram um comunicado conjunto no dia 8 de setembro reafirmando sua responsabilidade com a integridade do processo científico na realização dos testes de candidatas a imunizantes contra o novo coronavírus. No documento, eles se comprometem a submetê-las para aprovação dos órgãos reguladores internacionais somente após terem demonstrado sua segurança e eficácia em estudo clínico de fase 3. Dias antes, executivos de sete biofarmacêuticas dos Estados Unidos publicaram uma carta aberta pedindo que “considerações políticas sejam deixadas de lado” durante o desenvolvimento de fármacos e vacinas contra a doença. “Os líderes políticos devem reassegurar ao público que não influenciarão o desenvolvimento e a aprovação de novos medicamentos ou vacinas, e que as conclusões sobre sua segurança e eficácia serão baseadas na coleta e avaliação rigorosas de dados pelos órgãos apropriados. A saúde pública e a confiança do público em novos produtos médicos dependem da integridade, da transparência e da avaliação objetiva desses dados à medida que eles forem publicados”, escreveram. Mais recentemente, as farmacêuticas Pfizer e Moderna foram além e divulgaram, pela primeira vez, os detalhes dos testes de suas vacinas, isto é, como selecionaram os participantes e como eles estão sendo monitorados, as condições sob as quais os testes seriam interrompidos se houvesse problemas e as evidências que usarão para determinar se as pessoas que tomaram suas vacinas estão protegidas contra a Covid-19.

Tais movimentos são uma resposta às crescentes tentativas de interferência nos cronogramas de testes clínicos e na aprovação de medicamentos e vacinas contra a doença. Interessados em prestígio político e nos ganhos econômicos associados à primazia do anúncio de uma solução para a crise do novo coronavírus, governos de diferentes países pressionam pesquisadores e agências reguladoras a acelerar, ou mesmo a atropelar, os testes de imunizantes. “A percepção é de que a pandemia fez com que a ciência voltasse a figurar no centro de disputas políticas envolvendo as principais potências mundiais”, diz a geógrafa Neli Aparecida de Mello-Théry, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (Each-USP). Desde o início da pandemia a pesquisadora estuda os efeitos geopolíticos da Covid-19 na relação de interdependência econômica entre os países. Segundo Mello-Théry, a disputa observada agora pode comprometer as estratégias de controle da Covid-19 ao criar a impressão de que a segurança das vacinas foi sacrificada por conveniência política, aumentando a resistência de parte da população a uma eventual ação de imunização.

Entrevista: Neli Aparecida de Mello-Théry
     

Para serem comercializados e usados em larga escala, novos medicamentos ou vacinas precisam ser aprovados por órgãos reguladores. Para isso, passam por sucessivos testes de segurança e eficácia. Esse processo pode levar anos até ser concluído, sobretudo quando se trata de uma nova vacina. As agências costumam ser mais rigorosas nesse caso porque as vacinas são aplicadas em milhares de indivíduos saudáveis, de modo que qualquer efeito colateral, por mais raro que seja, pode afetar muito mais pessoas do que um medicamento desenvolvido para uma doença específica. Diante do atual cenário da pandemia, contudo, com o aumento do número de mortes e novos casos de Covid-19, agravamento das desigualdades e uma recessão que assola economias, esse processo, complexo e rodeado de interesses, mas mais restrito ao ambiente científico, ganhou também implicações políticas e econômicas.

 “Nos Estados Unidos, por exemplo, o anúncio de uma vacina pode mudar os rumos das eleições presidenciais de novembro”, destaca Mello-Théry. O presidente Donald Trump vem aumentando a pressão para que as autoridades regulatórias acelerem a aprovação de uma vacina ainda em outubro. Seu principal alvo tem sido a Food and Drug Administration (FDA), agência norte-americana de controle de alimentos e medicamentos. Desde maio Trump dá sinais de interferência no órgão em relação a assuntos ligados à Covid-19, como quando ordenou que flexibilizasse a fiscalização de testes de diagnóstico da doença desenvolvidos por laboratórios e clínicas privadas. A FDA já vinha sendo acusada de ceder a pressões políticas ao ter autorizado o uso emergencial de terapias contra a Covid-19, como a hidroxicloroquina, apesar das parcas evidências de sua eficácia em pessoas acometidas pelo vírus. Mais recentemente, a agência liberou o uso emergencial de plasma convalescente no tratamento de pessoas com a doença. O anúncio se deu às vésperas da convenção do partido republicano e um dia após Trump ter acusado o órgão de atrasar a aprovação de vacinas e terapias contra o novo coronavírus para prejudicá-lo politicamente. A pressão agora é para que a FDA acelere a aprovação de uma vacina antes das eleições, o que, na prática, significaria flexibilizar, ou dispensar, critérios normalmente adotados para aprovar um imunizante.

Na avaliação de Elize Massard da Fonseca, professora do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo, esse tipo de movimento não é um fenômeno novo, muito menos se restringe a grupos ligados a governos ou à indústria farmacêutica. “A pressão para que a FDA aprovasse a terapia antirretroviral de alta potência no início da década de 1990 partiu sobretudo de grupos de defesa dos direitos de pacientes portadores do HIV”, lembra a pesquisadora, que estuda processos regulatórios de produtos farmacêuticos. “A diferença é que hoje essas tensões estão mais escancaradas, dada as implicações políticas e econômicas associadas à aprovação da vacina.” Fonseca descarta a possibilidade de a FDA subverter diretrizes e protocolos mundialmente utilizados na análise de uma vacina. “A agência é uma das mais respeitadas do mundo e dificilmente colocará sua legitimidade em risco nesse caso.” Isso não significa, segundo ela, que em algum momento o órgão não tenha de encarar a difícil decisão de autorizar o uso emergencial de uma vacina em parcela reduzida da população – possivelmente profissionais da saúde e indivíduos do grupo de risco – antes de ser formalmente aprovada.

A China, por sua vez, investiu pesado em pesquisa e desenvolvimento (P&D) nas últimas duas décadas, sobretudo na área de biotecnologia. Construiu laboratórios de segurança máxima, adquiriu os melhores equipamentos e máquinas e criou mecanismos para repatriar cientistas atuando no exterior (ver Pesquisa FAPESP nº 283). O resultado: das 187 candidatas a vacinas contra o novo coronavírus em desenvolvimento hoje no mundo, 20 são do país asiático. A mais avançada é a Coronavac, da Sinovac Biotech. O imunizante está na fase 3 dos testes clínicos, em andamento em vários países, entre eles o Brasil, onde a empresa tem parceria com o Instituto Butantan. “Diferentemente dos Estados Unidos, o esforço da China para ser a primeira nação a apresentar um imunizante contra a Covid-19 não responde a um componente político interno, mas à ambição de mostrar ao mundo que é uma potência capaz de fazer frente aos Estados Unidos em termos científico, econômico e geopolítico”, disse a Pesquisa FAPESP a advogada suíça Els Torreele, ex-diretora da Campanha de Acesso a Medicamentos da organização internacional Médicos Sem Fronteiras. “A ideia de testar suas vacinas em outros países, oferecendo-lhes em troca prioridade no acesso à imunização, faz parte de uma estratégia chinesa para ampliar sua influência geopolítica e melhorar sua imagem entre as nações ocidentais.” Internamente, no entanto, o país parece se manter longe dos protocolos tradicionais para testar e aprovar uma vacina. Em uma estratégia inusual, vem administrando candidatas a imunizantes em militares e servidores públicos. Segundo reportagem do jornal The New York Times, embora o governo tenha enfatizado que os voluntários são livres para escolher tomar as vacinas, funcionários e soldados relatam sofrer pressão para participar dos testes.

A pandemia fez com que a ciência voltasse a figurar no centro de disputas políticas entre potências mundiais, diz Mello-Théry

A pressa em obter uma vacina também fez com que a Rússia atropelasse etapas essenciais para a verificação da segurança de novos compostos. Em agosto, o país surpreendeu o mundo ao anunciar o registro da Sputnik V, sem, no entanto, apresentar os dados dos ensaios clínicos de fase 1 e 2 aos quais ela foi submetida. O presidente Vladimir Putin apressou-se em garantir que o imunizante era seguro. “Gostaria de repetir que [a vacina] passou por todos os testes necessários”, afirmou o líder russo durante teleconferência com ministros do governo. Ele acrescentou ainda que uma de suas filhas havia sido vacinada e passava bem. Ela teria tido febre leve após receber a primeira dose do imunizante. “Depois da segunda injeção, teve febre leve de novo e depois tudo ficou bem. Está se sentindo bem e tem uma alta contagem de anticorpos”, disse Putin.

Pesquisadores do Centro de Pesquisas de Epidemiologia e Microbiologia Nikolai Gamaleya, em Moscou, demoraram quase três semanas para publicar um artigo na revista The Lancet detalhando os testes clínicos iniciais da vacina. Quase imediatamente, porém, um grupo de cientistas de diferentes instituições publicou uma carta manifestando preocupação com a consistência dos dados. “Embora a pesquisa seja potencialmente significativa, a apresentação das informações levanta várias preocupações, que demandam acesso aos dados brutos originais para uma investigação completa”, afirmam. 

Para além de eventuais ganhos científicos e tecnológicos e vantagens econômicas, a afoiteza da Rússia em entrar na corrida por uma vacina contra o novo coronavírus, segundo Mello-Théry, faria parte de uma estratégia do governo Putin para ampliar sua influência entre os países do Leste Europeu e Sudeste Asiático. “A ideia é se apresentar como uma alternativa às vacinas oferecidas pelos Estados Unidos, Reino Unido e China.” Vários países se mostraram interessados, inclusive o Brasil. Em agosto, o governo do Paraná anunciou tratativas para trabalhar em parceria com os russos. Mais recentemente, o Fundo Russo de Investimento Direto (RDIF) e a Secretaria de Saúde da Bahia firmaram acordo para colaborar na distribuição de 50 milhões de doses da Sputnik V no país.

Torreele alerta que o açodamento para aprovar uma vacina pode ter implicações graves na segurança e eficácia dos imunizantes. “A única maneira de determinar a segurança dos compostos é realizar testes clínicos com o maior número possível de pessoas, o que toma tempo. Os ensaios atuais têm sido criticados por não serem suficientemente diversificados e, mesmo que tentem incluir diferentes subpopulações, os números permanecerão pequenos para detectar efeitos colaterais menos frequentes.” Segundo ela, “esses fatores, somados às suspeitas de maquinações políticas para acelerar a aprovação de uma vacina, podem minar a confiança das populações na imunização contra o novo coronavírus”. 

Tais impactos já se refletem em pesquisas de opinião. Uma delas, realizada entre 9 e 11 de setembro pela empresa YouGov poll, aponta para um aumento da hesitação à vacinação contra a doença nos Estados Unidos. Em maio, 55% dos norte-americanos afirmaram que se vacinariam assim que o imunizante fosse aprovado. Esse número agora caiu para menos de um terço dos entrevistados. “No Brasil, pesquisa Ibope divulgada dia 5 de setembro verificou que um em cada quatro brasileiros resiste à ideia de tomar uma vacina contra a Covid-19”, comenta Dayane Machado, doutoranda do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

O Brasil vive uma situação particular, na qual diferentes esferas de governo – federal, estadual e municipal – adotaram estratégias descoordenadas, às vezes contraditórias, em relação à pandemia. Para Machado, “isso tende a criar um sentimento de insegurança e desconfiança na população que pode ser difícil de reverter”. “É por isso que a única maneira de avançar no desenvolvimento de uma vacina e na construção de uma relação de confiança com a população é investindo na transparência total dos protocolos e dados dos ensaios clínicos e uma revisão independente e aberta por especialistas em saúde pública”, destaca Torreele. 

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