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Entrevista

Cientista brasileira recebe reconhecimento da Casa Real Sueca

Especialista em química sustentável, pesquisadora da USP foi premiada com cátedra em ciências ambientais criada pelo monarca Carl XVI Gustaf

Rossi foi a primeira pesquisadora da América Latina a ocupar a cátedra sueca

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa Fapesp

No esforço para descarbonizar o planeta, a engenheira química Liane Marcia Rossi, doutora em química e professora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), dedica-se a uma área científica de ponta: a captura de dióxido de carbono (CO₂) e seu uso como matéria-prima para fabricar combustíveis e produtos químicos. Remover o CO₂ diretamente da atmosfera ou de fontes emissoras resultantes de atividade humana é um dos caminhos para combater o aquecimento global.

A base para novas descobertas nessa área vem de um campo de pesquisa antigo, a catálise. Realizar a transformação da molécula de CO₂ em produtos de valor econômico agregado é um desafio que pode ser vencido pelo uso de catalisadores e por ajustes nas condições da reação. Rossi e colaboradores do IQ-USP desenvolveram um novo processo para conversão de CO₂ em metanol baseado em um catalisador feito de óxidos de titânio e rênio. O combustível poderá auxiliar a transição energética em setores difíceis de eletrificar, como o transporte marítimo.

Realizada no âmbito do Centro de Pesquisa para Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI), financiado por FAPESP e Shell, a investigação levou à criação de uma startup. “Seu o objetivo é desenvolver essa tecnologia até ela atingir maturidade comercial”, informa Rossi, que é a diretora do Programa de Captura e Utilização de Carbono do RCGI.

Por seus trabalhos na área da química verde e catálise, a pesquisadora foi premiada com a Cátedra Rei Carl XVI Gustaf em ciências ambientais, concedida por um fundo presidido pelo monarca sueco. Rossi é a 28ª titular da cátedra, que pela primeira vez agraciou um pesquisador da América Latina. Por um aplicativo de videoconferência, ela concedeu a entrevista a seguir.

Como capturar carbono da atmosfera pode ajudar a combater o aquecimento global?
Há duas formas de fazer isso. Um caminho é a captura direta do ar. É uma tecnologia cara porque o CO₂ que já foi emitido está numa concentração muito baixa, o que dificulta sua captura, mas é suficiente para provocar o aquecimento global, que está na origem das mudanças climáticas. Outro caminho, que parece mais promissor, é a captura de carbono na fonte geradora ou emissora [ver Pesquisa FAPESP nº 340]. Ao invés de deixá-lo ir para a atmosfera e se diluir nos gases que a compõem, captura-se o gás na fonte, quando a concentração de dióxido de carbono é maior. Em ambos os casos, deve-se investir em sua estocagem ou utilização.

Que fontes geradoras são essas?
Processos industriais, especialmente a fabricação de cimento ou aço, geração de energia, como a queima de combustíveis fósseis em termelétricas, exploração de petróleo, entre outras. No Brasil, também há emissão de carbono na fabricação de etanol durante o processo de fermentação do açúcar e na queima do bagaço para cogeração de energia. O carbono liberado na fermentação do açúcar é de alta qualidade e poderia ser usado diretamente em processos de conversão em outros produtos. Já o carbono capturado de termelétricas e de outras indústrias exige processos de purificação dispendiosos para ser reutilizado.

Onde o carbono capturado pode ser armazenado?
A tecnologia de estocagem mais conhecida é a que se faz diretamente em poços de petróleo para a recuperação avançada do óleo. O CO₂ é injetado nos reservatórios, aumentando a eficiência de produção, e fica armazenado. Mas o Brasil tem boa capacidade para estocagem em reservatórios rochosos. Há no país grande coincidência entre a localização das usinas de etanol e as formações geológicas do subsolo apropriadas para a estocagem. No armazenamento, contudo, não se cria valor para o carbono; apenas evita-se que ele permaneça ou vá para a atmosfera.

A opção seria fazer uso do CO₂ capturado?
Sim. Há várias possibilidades, desde usos mais simples e diretos, após apenas uma etapa de purificação, na indústria de bebidas e alimentos. Outra possibilidade é usar o CO₂ como fonte de carbono em processos químicos que alteram sua estrutura molecular e levam a diferentes produtos químicos. Isso envolve ajustes precisos das condições de reação, como a presença de outros reagentes, temperatura e pressão, além do uso de catalisadores – substâncias que promovem a reação entre dois ou mais reagentes, mas que não participam do produto final. O grande desafio é achar a formulação de um catalisador que direcione para uma dada reação, ou seja, que ao final dela gere principalmente um determinado produto. Em geral são obtidas misturas de produtos.

Seria fantástico sintetizar etanol a partir do dióxido de carbono gerado nas usinas sucroalcooleiras

Que produtos podem ser gerados a partir da transformação do CO₂?
Um dos caminhos para transformar o CO₂ em produtos químicos ocorre por meio da reação dele com o gás hidrogênio [H₂], com o uso de catalisadores que realizam reações de hidrogenação. Podemos fazer sua conversão em três produtos principais: monóxido de carbono [CO], metano [CH₄] e metanol [CH₃OH]. Esses produtos são constituídos por apenas um átomo de carbono. Nesse processo, não são formadas ligações entre átomos de carbono; o que muda são os átomos vizinhos a eles. O monóxido de carbono não é um produto acabado, mas um intermediário químico. Na indústria química, é usado principalmente combinado com H₂, formando o chamado gás de síntese. Ele é empregado para a produção de metanol, hidrocarbonetos, parafinas [substâncias constituintes da gasolina] e olefinas [um grupo de hidrocarbonetos usados na fabricação de polímeros]. Esse processo de conversão de gás de síntese em parafinas e olefinas é conhecido há 100 anos, mas ainda não é economicamente atrativo. Já a produção de metanol, a partir de gás de síntese e misturas deste com CO₂, é um processo amplamente utilizado. Hoje, o gás de síntese é produzido principalmente a partir de fontes fósseis, do carvão e do gás natural. Aqui temos uma questão em aberto: é viável usar o CO₂ como a fonte de carbono renovável para a produção de metanol? A viabilidade depende de fatores como o custo e a disponibilidade de H₂ verde, energia limpa, a eficiência do processo e os catalisadores. Na conversão direta de CO₂ em outros produtos, como o metanol, a necessidade do uso de H₂ é o maior problema.

Por quê?
Por causa do custo energético e do impacto ambiental da produção de hidrogênio. O ideal é que se use hidrogênio verde, obtido a partir da eletrólise da água com uso de fontes renováveis de energia. Mas ele ainda é muito mais caro do que o hidrogênio convencional, gerado a partir do gás natural e que provoca emissões de CO₂ no ambiente [ver Pesquisa FAPESP nº 333].

Em que estágio se encontra a transformação de CO₂ em metanol?
Estamos investigando a conversão direta do CO₂ em metanol sem necessariamente isolar primeiro o monóxido de carbono. Pesquisamos também a produção de álcoois superiores, que têm dois ou mais átomos de carbonos em sua estrutura, como o etanol [C₂H₆O]. No caso do metanol, tivemos uma tese de doutorado bem-sucedida, da química Maitê Lippel Gothe, orientada pelo professor Pedro Miguel Vidinha Gomes, do IQ-USP. Também depositamos uma patente relacionada a um novo catalisador que transforma CO₂ em metanol de forma bastante seletiva. Há dois anos, criamos uma startup, a Carbonic, para desenvolver essa tecnologia até que ela atinja maturidade comercial.

O que significa a seletividade de um catalisador?
Significa que, ao ser empregado na reação de transformação do CO₂, o catalisador maximiza a formação de um único produto – no caso, a proporção de metanol é superior a 90%. Nessa conversão, metano é o produto minoritário e há traços de CO. Isso é esperado porque nesses processos catalíticos existem várias reações que ocorrem simultaneamente.

Quais são as aplicações do metanol?
A produção global de metanol é de cerca de 100 milhões de toneladas por ano. Ele é um produto químico empregado tanto como solvente ou reagente em indústrias tradicionais quanto em setores de energia limpa. É usado na produção de biodiesel, formaldeído e ácido acético, bem como na produção de olefinas, aromáticos e até gasolina, por meio de processos catalíticos específicos. Dependendo da legislação do país, pode ser utilizado como aditivo da gasolina ou na forma pura. No Brasil, misturamos etanol na gasolina, mas em outras nações isso é feito com metanol. Conforme a origem das matérias-primas e da energia utilizada, o metanol é classificado em cores. Quando feito a partir de fontes fósseis, como carvão e gás natural, é classificado como cinza, pois durante sua produção há emissão de dióxido de carbono. Mas, se durante a produção for implementado algum processo de captura desse CO₂, passa a ser chamado de azul. Já o metanol verde é gerado a partir de biomassa, resíduos orgânicos ou CO₂ capturado de algum outro processo com o uso de energia limpa. Nessas três rotas emprega-se hidrogênio. O que muda, além da fonte do carbono, é o uso de hidrogênio verde – esse também é um requisito para a produção do metanol verde. Para que o metanol seja neutro ou até negativo em carbono, o ideal é o uso de CO₂ biogênico ou capturado diretamente do ar.

O metanol verde, portanto, pode ser útil para a transição energética.
Sim. Ele tem recebido mais atenção em setores difíceis de eletrificar, como o transporte marítimo. Uma das grandes apostas é adaptar motores que hoje empregam óleo pesado, de origem fóssil, para funcionar com metanol e, assim, acelerar a transição de combustíveis fósseis para os sustentáveis de baixo carbono. O fato de ser um produto biodegradável, líquido e passível de ser transportado em condições atmosféricas normais também é vantajoso. Não é preciso pressurizar ou resfriar o metanol para estocagem e transporte, o que acontece com outros potenciais combustíveis do futuro, como a amônia e o hidrogênio. Isso torna o metanol fácil de se transportar, armazenar e abastecer usando infraestrutura e procedimentos de segurança já estabelecidos. É um combustível de queima mais limpa e não produz fuligem. O metanol cinza diminui em 15% as emissões de carbono e o metanol verde pode alcançar uma redução de 95%. Se o setor marítimo se interessar pelo metanol, teremos um mercado grande. A projeção de consumo é cinco vezes maior do que a produção atual de metanol. E o setor marítimo não quer o metanol cinza, mas o verde.

O catalisador criado pelo seu grupo é uma inovação mundial?
Escolhemos um metal, o rênio, pouco usado em processos catalíticos industriais. Já tínhamos conhecimento de que ele era empregado para redução de ácidos carboxílicos, que têm estrutura semelhante à do dióxido de carbono. Por isso, decidimos testar o óxido de rênio junto com outros óxidos que servem como suporte. A história da síntese do metanol a partir de fontes fósseis data de 1923. Os primeiros catalisadores, à base de óxido de cromo, foram usados industrialmente por cerca de 40 anos. Na década de 1960, foram desenvolvidos outros catalisadores, à base de cobre, zinco e alumina. Chamados de CZA, ainda são os mais empregados na produção de metanol. O novo desafio, contudo, é fazer metanol a partir do CO₂ – e não mais de carvão ou gás natural. Muitos grupos de pesquisa têm investido no próprio CZA, adaptando-o para a conversão direta do dióxido de carbono em metanol. Mas esses catalisadores ainda têm problemas quanto à estabilidade e à seletividade. Novos catalisadores são desejáveis e devem contribuir para aumentar a viabilidade desse processo.

A pesquisadora e o rei Carl XVI Gustaf durante evento no Palácio Real sueco

Jonas BorgA pesquisadora e o rei Carl XVI Gustaf durante evento no Palácio Real suecoJonas Borg

O que precisa ser superado?
A conversão de CO₂ em metanol é uma tecnologia com grande potencial, mas enfrenta desafios técnicos, econômicos e de escala. É necessário um ajuste das condições de reação para elevar a atividade, a seletividade e a durabilidade do catalisador. A reação funciona assim: quanto maior a temperatura da reação, maior a conversão do CO₂. Mas, à medida que você eleva a temperatura do processo, cai a produção de metanol e aumenta a de metano ou monóxido de carbono. Um ponto-chave é encontrar um catalisador que seja ativo, promovendo a conversão, na temperatura mais baixa possível. No nosso sistema, a condição ótima para a reação acontecer é com 200 graus Celsius [°C]. Se elevamos para 250 ºC ou 300 ºC, a seletividade para metanol cai e passamos a produzir outros gases. Sabemos que o catalisador comercial CZA, em condições usuais [220 °C a 300 °C de temperatura e 5 a 10 megapascal de pressão], tem uma seletividade para o metanol de 40% a 60%, conforme reportado na literatura.

Em que estágio está o trabalho da Carbonic?
A startup, da qual faço parte, foi criada em 2022 para desenvolver soluções para o combate às mudanças climáticas. No curto prazo, buscamos amadurecer a tecnologia de conversão de CO₂ em metanol verde. Temos bons resultados em laboratório, mas o futuro da tecnologia depende de um processo de escalonamento bem-sucedido. A ideia é poder empregar o CO₂ biogênico das usinas de etanol. É um processo longo. Normalmente, para sair da escala de bancada e chegar ao nível de demonstração leva-se em torno de 10 anos.

Seu grupo também pesquisa a conversão de gás carbônico em etanol?
Dois alunos de doutorado fazem estudos nessa linha. Seria fantástico sintetizar etanol e outros álcoois superiores a partir do CO₂ gerado nas usinas. Estaríamos fechando o ciclo, usando o CO₂ emitido na produção do etanol para gerar mais etanol. Chegar a um catalisador capaz de formar etanol ao invés do metanol requer uma formulação mais complexa, pois é necessário formar novas ligações carbono-carbono de forma controlada, mantendo a formação de oxigenados. Tivemos êxito no desenvolvimento de catalisadores à base de ferro e cobre com excelente atividade, contudo a seletividade para etanol ainda é baixa, menor que 5%. No futuro, queremos explorar outras rotas de conversão de CO₂ em etanol.

O prêmio recebido na Suécia tem relação com seus estudos focados em novos catalisadores e na conversão de CO₂ em produtos ambientalmente sustentáveis?
De certa forma, sim. Trabalho há muito tempo com química verde, uma filosofia aplicada em todas as áreas da química cujo objetivo é reduzir a geração de resíduos, minimizar ou eliminar o uso e a geração de substâncias perigosas, utilizar recursos renováveis, entre outros. Eu me interessei por esse tema no início de minha carreira, nos anos 2000. A catálise, que também é um dos princípios da química verde, pois usa reagentes mais amigáveis para realizar transformações químicas, já estava presente em meus estudos na década de 1990.

Como se deu sua indicação para a Cátedra Rei Carl XVI Gustaf em ciências ambientais?
Meu nome foi sugerido em 2022 pela professora Belén Martín-Matute, da Universidade de Estocolmo. Eu a conheci virtualmente em 2020 quando fui convidada para dar um seminário para um consórcio de universidades nórdicas focado no tema de emissões de carbono. As universidades suecas fazem indicações para essa cátedra, criada em 1996 para celebrar o 50º aniversário do rei sueco, e anualmente um ou dois cientistas estrangeiros são selecionados. O premiado deve fazer uma estadia como professor visitante por um ano na Suécia, realizando atividades relacionadas às ciências ambientais em colaboração com pesquisadores locais. No meu caso, está sendo um pouco diferente. Já fui três vezes para a Suécia para estadias de até três meses e pedi uma extensão da cátedra por mais 12 meses. Estou proferindo palestras em várias universidades, realizando visitas a grupos de pesquisas e colaborando com colegas da Universidade de Estocolmo.

O que faz lá?
Temos um projeto na área de conversão de CO₂ para metanol com uma estratégia diferente. A ideia é fazer a conversão em condições mais amenas usando uma combinação de captura de CO₂, a catálise heterogênea, a minha especialidade, e a catálise homogênea, aquela em que o catalisador está solúvel na mesma fase [líquida] dos reagentes. Queremos desenhar um processo mais sustentável em termos de consumo de energia, temperatura e o que for necessário para contornar os problemas da produção de metanol verde e outros produtos de valor econômico agregado.

Já teve alguma interação com o rei Carl XVI Gustaf?
Encontrei com o monarca em duas ocasiões. Na primeira, um evento para convidados no Palácio Real, dei uma palestra sobre os desafios que o Brasil enfrenta para estabelecer uma economia de baixo carbono. Mostrei que o país tem um caminho muito promissor para a transição energética. A consolidação do etanol como combustível e da tecnologia de motores flex pode fazer a diferença. Na segunda, o rei participou de um simpósio em homenagem à cátedra que ocupo. O foco foi minha pesquisa em catálise e a conversão de CO₂ em produtos sustentáveis. Embora o rei não seja um especialista em química sustentável, percebi nele um interesse genuíno pela área das ciências, em especial as ambientais. Comecei minha palestra falando do momento extremamente crítico que o Brasil vivia naquela ocasião [setembro de 2024], quando focos de queimadas atingiram diferentes regiões do país, gerando mais CO₂ na atmosfera e contribuindo para o agravamento climático. Enalteci a contribuição de Svante Arrhenius, químico sueco que em 1896 calculou a relação entre a concentração de CO₂ atmosférico e a temperatura da superfície da Terra. Há mais de 100 anos, ele concluiu que as emissões antropogênicas de CO₂, resultantes da queima de combustíveis fósseis, poderiam ser suficientemente grandes para afetar o clima na Terra por meio do agravamento do efeito estufa.

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