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Entrevista

Cientista política defende que o debate entre opiniões divergentes é ainda possível na sociedade

Maria Hermínia Tavares de Almeida estudou temas como sindicalismo, federalismo e políticas públicas

Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP

Filha de um advogado que atendia agricultores pobres do interior paulista sem cobrar pelo serviço e era ligado ao Partido Comunista, Maria Hermínia Tavares de Almeida cresceu acompanhando de perto as discussões sobre a agitada política brasileira. “Na época, aprendi que as diferenças de opinião podiam ser discutidas com veemência sem separar pessoas que se queriam bem”, conta.

A temática pautou sua atuação na academia, onde se destacou no campo da ciência política ao discutir questões como sindicalismo, federalismo e políticas públicas. Almeida começou a carreira docente na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), nos anos 1970. Na década seguinte foi para a Universidade de São Paulo (USP), onde se aposentou em 2013. Mais tarde, em 2024, recebeu o título de professora emérita do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH).

No campo institucional, participou de iniciativas como a fundação da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), em 1977, e a recriação da Associação Brasileira de Ciência Política, em 1986 – entidade que presidiu entre 2004 e 2008.

Aos 82 anos, não para. Assina uma coluna semanal no jornal Folha de S.Paulo e integra o conselho curador da Fundação Padre Anchieta, que administra a TV Cultura. Além disso, é uma das coordenadoras do Programa Internacional de Pós-doutorado do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). “Costumo recomendar aos jovens participantes que tomem as rédeas da própria pesquisa, sem medo e com ousadia”, diz.

Especialidade
Ciência política
Instituição
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)
Formação
Graduação em ciências sociais (1969) e doutorado em ciência política (1979) pela Universidade de São Paulo (USP)

Os cientistas políticos no Brasil estão sempre tentando responder às questões do momento e olham pouco para o passado?
Sim. Minha geração, por exemplo, foi formada durante a ditadura militar e era impossível dar as costas para aquela realidade. As universidades, bem ou mal, eram uma espécie de oásis onde se podia refletir sobre aquele momento. Uma parte da agenda da redemocratização passou pelos debates que ocorriam na universidade ou, por exemplo, em instituições como o Cebrap e em outros centros privados de pesquisa. Mesmo sob o sistema democrático, que já tem 40 anos, os incentivos para tratar do presente são grandes. Somos procurados pela imprensa, convidados para debates. Quem estuda as relações entre Executivo e Legislativo, partidos políticos ou processos eleitorais tem mais chance de ser procurado para entrevistas, de ter seus textos lidos por leigos do que quem estuda os sistemas ou ideologias autoritárias dos anos 1930. Assim, vai se deixando de lado o estudo das coisas do passado, que são importantes, seja para fazer avançar a teoria, seja para compreender como certos sistemas políticos funcionam.

É diferente do que acontece nos Estados Unidos, por exemplo?
As ciências sociais sempre dialogam com os processos sociais, com o que está acontecendo na sociedade. E isso acontece tanto aqui quanto em outros países onde a área está consolidada há mais tempo, como nos Estados Unidos. Naquele país, entretanto, o campo disciplinar é maior: há mais cientistas políticos, alguns dedicados ao arriscado exercício de tratar do presente e outros que buscam no passado evidências para aceitar ou rejeitar teorias ou então para entender fenômenos mais complexos ou de longa duração.

A ciência política tem ferramentas para lidar com a complexidade do mundo atual?
Sim e não. Como para todo conhecimento organizado em ciências sociais, é mais fácil explicar o que passou do que aquilo que está ocorrendo hoje. Cientistas sociais, sejam eles economistas, sociólogos, antropólogos ou cientistas políticos, se ocupam de explicar o comportamento humano. E os seres humanos calculam, avaliam e especialmente tiram lições de experiências passadas. Assim, nunca é possível dizer que, diante das mesmas circunstâncias, eles tomarão as mesmas decisões. Por isso, conhecer o passado não nos assegura a capacidade de entender completamente o presente, e muito menos de prever o que vem pela frente. De toda forma, a ciência política hoje tem mais conhecimento acumulado. Sempre se pensou sobre política ao longo da história da humanidade, mas a ciência política é uma disciplina acadêmica relativamente recente, do século XX.

Como a política entrou em sua vida?
Falava-se muito de política na minha casa. Meu pai veio do Recife [PE] e foi morar em Monte Aprazível, no interior de São Paulo, na década de 1920. Depois foi para São José do Rio Preto [SP], onde nasci, em 1942. Ali, meu pai fez um círculo de amigos, que se tornaram sua segunda família. Ele era advogado, tinha um emprego público e atendia os agricultores pobres sem cobrar pelo serviço. Chegou a ser candidato a deputado federal pelo Partido Comunista, em 1947, mas ficou como suplente. Foi perseguido e por isso mudamos para São Paulo quando eu era criança e onde estava a família da minha mãe, oriunda de São Carlos. Em São Paulo, já estavam também os membros da nova “família” de meu pai. Eles eram comunistas ou ligados ao Partido Trabalhista Brasileiro [PTB], mas eram também próximos de Luiza Mesquita, parente dos donos do jornal O Estado de S. Paulo e simpática à UDN [União Democrática Nacional, partido conservador e defensor do liberalismo econômico]. Na casa dela, sempre cheia, meu pai e seus amigos jogavam buraco e discutiam política acaloradamente. Ali era a UDN contra o PTB e o Partido Comunista. Nesse ambiente, aprendi que a política era coisa muito importante e que as diferenças de opinião podiam ser discutidas com veemência sem separar pessoas que se queriam bem. Gosto de contar essa história para mostrar que o diálogo é possível a despeito das diferenças ideológicas.

Essa ideia não parece utópica nos dias de hoje?
Atualmente, vivemos um momento de mais intransigência, que parece hostil ao debate, às diferenças de opinião. Mas, do ponto de vista civilizatório, acho que não podemos perder de vista a importância de ouvir e ler aqueles com os quais não concordamos, de debater suas ideias e aceitar o contraditório. Penso que os intelectuais devem ter esse papel. Intelectual serve para pôr em dúvida consensos fáceis, para abalar posições rígidas.

No Brasil, os cientistas políticos olham para o presente e deixam de lado o estudo das coisas do passado

Por quê estudou ciências sociais?
Não foi uma escolha imediata. Terminado o ginásio, fui cursar o científico [atual ensino médio] porque queria ser psiquiatra. Mas desisti, pois vi que a medicina seria um caminho difícil para mim: eu não podia ver sangue. Pensei também em fazer psicologia, mas um amigo do meu pai, o filósofo João Cruz Costa [1904­‑1978], que era professor na USP, me desencorajou. Não me lembro exatamente por que fui para as ciências sociais. O fato é que ingressei em 1962, na USP, cursei por um ano e parei por um tempo.

O que aconteceu?
Eu participava de uma organização de esquerda, trotskista, e fui me dedicar à militância. Fiquei nesse grupo até por volta de 1968, mas voltei à faculdade dois anos antes. Larguei a militância por desencanto e por desejar seguir a vida acadêmica. Durante a graduação, oscilei em ir para a ciência política ou para a antropologia. Tive três professoras fantásticas: as antropólogas Gioconda Mussolini [1913­‑1969], Eunice Durham [1932-2022] e Ruth Cardoso [1930-2008]. Ruth fez um curso com o antropólogo Claude Lévi-Strauss [1908-2009] na França, que ela passou a reproduzir para seus alunos na USP. Fiquei fascinada pelo modelo analítico de Lévi-Strauss, que é muito sofisticado. Porém, no final da graduação, fiz uma disciplina com Francisco Weffort [1937­‑2021], que me levou de forma definitiva para a ciência política.

Do que se tratava?
Era uma disciplina que conjugava teoria e pesquisa. Fiz um levantamento com meu colega Cassiano Marcondes Rangel, que não seguiu carreira acadêmica, sobre as greves durante o governo João Goulart [1961-1964]. Descobrimos que a maior parte delas acontecia no setor público, promovidas por trabalhadores da base sindical que apoiava Goulart. No final de 1968, veio o AI-5 [Ato Institucional nº 5], que cassou parte dos nossos professores. Alguns deles formaram o Cebrap no ano seguinte, sob a liderança de Fernando Henrique Cardoso. Mesmo sem ter sido cassado, Weffort participou da fundação do Cebrap e criou ali um núcleo de estudos sobre a classe operária e os sindicatos. Mas não abandonou a USP. Na época, ele me convidou para completar no Cebrap aquele levantamento sobre as greves que eu havia iniciado na graduação.

Fez o mestrado na USP?
Por causa da repressão política no país, queria fazer pós-graduação fora e cheguei a dar início ao processo para conseguir uma vaga na Universidade Columbia, nos Estados Unidos. Quando ainda estava na graduação, em 1967, comecei a trabalhar como secretária de redação na divisão de fascículos da editora Abril, que publicava títulos como a enciclopédia Conhecer. Na época da minha formatura, meu chefe, o sociólogo Pedro Paulo Poppovic [1928­‑2025], disse que Fernando Henrique, de quem era amigo, poderia me indicar para uma vaga no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Flacso [Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais], no Chile. Resolvi aceitar, pois a reposta de Columbia tardaria. Fiz o curso de sociologia, que era considerado melhor do que o de ciência política. Era um programa de mestrado com ênfase em teoria sociológica e teorias do desenvolvimento, além de muita estatística e metodologia de pesquisa.

Como foi a passagem pelo Chile?
Cheguei em Santiago em março de 1970. A Flacso recebia estudantes de toda a América Latina e convivi com colegas da Argentina, do Uruguai, do México, do Peru, da Bolívia, da Venezuela. Além disso, eu circulava pela comunidade dos brasileiros exilados pela ditadura. Nesse período, antes do golpe militar de 1973, o Chile abrigava muitas organizações internacionais que lá estabeleceram seus escritórios na América Latina. Foi o caso da Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe], órgão da Organização das Nações Unidas [ONU], criado em 1948 para pensar os caminhos do desenvolvimento econômico na região. No começo dos anos 1970, lá estavam economistas brasileiros como Maria da Conceição Tavares [1930-2024] e Antônio Barros de Castro [1938-2011]. Assisti a alguns dos cursos que ofereciam na Escolatina [Escola de Estudos Latino-americanos para Graduados], ligada à Universidade do Chile, e me tornei amiga deles. Como tive bolsa da FAPESP, pude me dedicar integralmente aos estudos, mas acabei não entregando o trabalho final para obter o título de mestre. Voltei ao Brasil em novembro de 1972.

Descobrimos que as greves no período João Goulart partiam da base sindical que apoiava o governo

O que a trouxe de volta?
Weffort me enviou uma carta dizendo que minha vaga no doutorado estava garantida e também que estava propondo minha contratação como professora assistente da USP. A convite dele, fiquei no Cebrap esperando pela contratação na USP, que, entretanto, não saía. Pedi para Leôncio Martins Rodrigues [1934­‑2021], que tinha sido meu professor na graduação e se tornado um grande amigo, para investigar o que estava acontecendo. Ele tinha trânsito nos bastidores da reitoria. Ali funcionava o chamado terceiro estágio, que mais tarde a Comissão da Verdade da USP [2013-2018], da qual participei, revelou se tratar da Assessoria Especial de Segurança Interna. Ela operava ao lado do gabinete do reitor para fazer a triagem dos contratos e contava com dois funcionários, que não eram da USP, responsáveis por levantar a ficha dos candidatos em órgãos de informação, como Dops [Departamento de Ordem Política e Social] e SNI [Serviço Nacional de Informações]. Leôncio me avisou: “Seu contrato não vai sair”.

Por qual razão?
Não cheguei a ser presa na ditadura, mas respondi entre 1966 e 1969 a um processo na Justiça militar em função da minha participação naquela organização trots­kista. Essa informação constava do parecer da USP e por isso acabei não sendo contratada como professora assistente. Durante a pesquisa do livro As universidades e o regime militar [Zahar, 2014], o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, da Universidade Federal de Minas Gerais [UFMG], encontrou esses documentos e me enviou uma cópia.

O que pesquisou no doutorado?
O título da minha tese é “Estado e classes trabalhadoras no Brasil (1930-1945)”. Realizei a pesquisa entre 1973 e 1979, na USP, orientada por Weffort. Na tese, discuto como foi montada a institucionalidade trabalhista e sindical no governo Vargas. Mostro que essa medida não surgiu a partir de uma exigência da classe trabalhadora, mas de uma elite estatal disposta a regular as relações capital-​trabalho e controlar as lideranças sindicais.

Durante o doutorado, a senhora escreveu o artigo “O sindicato no Brasil: Novos problemas, velhas estruturas”, publicado em 1975, em que discute o movimento sindical no ABC paulista, na década de 1970. Como surgiu a ideia?
No início do doutorado, Weffort me disse: “Tem alguma coisa nova acontecendo no ABC, que é diferente da liderança sindical mais tradicional, mais pelega”. E eu fui lá ver o que era. Isso foi em 1973. Na época, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema era Paulo Vidal, que ficou no cargo até 1975, sendo sucedido por Lula. Mesmo após ter escrito o artigo, continuei visitando o sindicato. Leôncio e eu fizemos seminários para aqueles trabalhadores, acompanhamos de perto as greves de 1978 e 1979. Além disso, vimos a transformação de Lula em uma figura de expressão nacional, durante e depois dos movimentos grevistas.

Quando foi para a Unicamp?
No final de 1973, enquanto esperava a contratação na USP, fiz um seminário na Unicamp, a convite dos professores Carlos Estevam Martins [1934-2009] e Paulo Sérgio Pinheiro. Falei sobre o que tinha presenciado no ABC paulista. No início do ano seguinte, o filósofo francês Michel Debrun [1921-1997], que coordenava a área de ciência política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas [IFCH] da universidade, me chamou para conversar. O professor Roberto Gambini, que hoje é psicanalista, tinha acabado de pedir demissão e havia uma vaga para professor na disciplina de História do Pensamento Político Brasileiro, na graduação de ciências sociais. Eu sabia quase nada desse assunto, mas, mesmo assim, aceitei a vaga e pedi para Bolívar Lamounier me ajudar a montar um curso. Passei dois meses mergulhada na literatura sobre o tema e ministrei a disciplina.

Hoje, a questão não é tanto criar políticas sociais, mas aprofundar e complementar aquelas que já temos no Brasil

Começou a se interessar pelo estudo de políticas públicas na Unicamp?
No início dos anos 1980, o país caminhava para a redemocratização e Vilmar Faria [1941-2001], meu colega na ciência política da Unicamp, me disse que as universidades precisavam pensar a respeito das políticas públicas, sobretudo as políticas sociais. Com esse objetivo, ele, Paulo Renato Souza [1945-2011], que estava no Instituto de Economia, e eu, montamos alguns seminários e convidamos para participar, por exemplo, lideranças da saúde e da educação. A ideia se desdobrou. Em 1982, durante a gestão do reitor José Aristodemo Pinotti [1934-2009], foram criados o Núcleo de Estudos em Políticas Públicas [Nepp], que ajudei a fundar e que mais tarde dirigi, e o Núcleo de Estudos em População [Nepo], que foi comandado pela matemática e demógrafa Elza Berquó. Na sequência, em 1984, fui fazer um estágio de pós-doutorado na Universidade da Califórnia [Ucla], em Berkeley, para me aprofundar na agenda de políticas públicas. Passei cerca de quatro meses lá, “morando” na biblioteca. Naquela época não havia internet e as bibliotecas brasileiras eram muito defasadas em relação ao que se produzia no estrangeiro.

O que fez ao voltar para a Unicamp?
Eu havia ajudado a montar o mestrado em ciência política, logo que fui para lá. A USP tinha um modelo de pós-graduação mais antigo, mais tutorial. O ingresso era decidido pelo orientador e o aluno fazia dois, três créditos, do jeito que quisesse. O importante era entregar a tese. Na Unicamp, resolvemos escolarizar esse processo, com acesso por meio de prova e grade curricular. Era mais organizado e muitos alunos formados pela USP vieram fazer o mestrado na Unicamp. Quando voltei de Berkeley, começamos a discutir a etapa seguinte, a organização de um doutorado. Criamos um doutorado multidisciplinar, organizado em torno de áreas de pesquisa que juntavam cientistas políticos, sociólogos e antropólogos. O programa funcionou assim por muito tempo, mas sempre teve dificuldade de se encaixar no sistema de avaliação da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior], que favorecia a pós-graduação disciplinar.

Como se aproximou do federalismo?
No período em Berkeley passei meses lendo a literatura sobre o estado de bem-estar social. E no Brasil esse sistema de proteção social é atravessado pela questão federativa. Os diagnósticos que levaram às reformas das grandes políticas de proteção social [saúde, educação e assistência social], após 1988, enfatizavam o caráter centralizado do sistema de proteção social, sob o regime autoritário, bem como sua regressividade, que beneficiava os trabalhadores com renda mais alta, em detrimento dos mais pobres. Grande parte do debate do período da redemocratização tratou de como se poderia redefinir as competências do governo federal, de estados e municípios, para que esse sistema se tornasse universal, além de mais justo e eficiente. Ou seja, a discussão envolvia a apreciação de mudanças que implicavam a redefinição de funções entre entes federativos e a articulação entre eles para que as políticas de proteção social pudessem ser mais redistributivas e abrangentes. Foi por aí que eu acabei entrando na questão do federalismo. Um dos meus artigos mais citados até hoje é exatamente “Federalismo e políticas sociais”, de 1995, no qual discuto os obstáculos à transferência de responsabilidades entre níveis de governo.

Quais políticas sociais o Estado deveria ter para melhorar a qualidade de vida da população brasileira?
Hoje, o problema não é tanto criar políticas, mas aprofundar e complementar aquelas que já temos, além de financiá-las adequadamente. A partir da redemocratização do país, com a Constituição de 1988, vivemos um longo processo de reformas sociais. Montamos um sistema público de saúde universal e respeitável, o SUS; a educação passou a ser considerada um direito de todos e dever do Estado; e a educação básica, enfim, tornou-se universal. Com a estabilização da moeda, nos anos 1990, os governos Fernando Henrique [1994-2002] e Lula I e II [2003-2011] incluíram na sociedade uma população que vivia em condições muito precárias por meio de programas de transferência de renda, como Bolsa Família. Além disso, programas como Prouni [Programa Universidade para Todos] garantiram a uma parcela da população acesso ao ensino superior. Políticas de ação afirmativa permitiram que tenhamos hoje elites menos brancas. Ou seja, os progressos foram lentos, mas palpáveis. Atualmente, nosso maior desafio é diminuir as iniquidades e ineficiências existentes em cada área da política social. É importante também reduzir a regressividade da política tributária, que opera na contramão das políticas sociais que são redistributivas. O Brasil precisa dar um passo além nesse sentido, apesar da limitação fiscal sob a qual vivemos.

Por que foi para a USP?
Fiquei 13 anos na Unicamp, de 1974 a 1987, e esse período foi fundamental para minha formação como intelectual e articuladora de instituições acadêmicas. Porém, no final, sentia falta de desafio. Quando fui para a USP, as ciências sociais estavam se dividindo em três departamentos: Ciência Política, Antropologia e Sociologia. A formação do Departamento de Ciência Política foi liderada por José Augusto Guilhon Albuquerque e José Álvaro Moisés. Eles convidaram alguns pesquisadores de fora da USP, como Simon Schwartzman, que estava no Rio, e o argentino Guillermo O’Donnell [1936-2011], que considero o cientista político mais importante da América Latina. Da Unicamp trouxeram Maria D’Alva Kinzo [1951-2008] e eu. Por sugestão de Guillermo e com recurso da Fundação Ford, criamos, com Guilhon e Moisés, o Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais, em 1987. A USP tinha mudado muito e eu também. Já não era uma professora em começo de carreira e trabalhar com os meus ex-professores não era tão assustador como no passado. Weffort ficou por um tempo na liderança do departamento até ir para o governo Fernando Henrique Cardoso em 1995, como ministro da Cultura.

Não conheço lugar melhor do que a universidade, nem nada mais interessante do que o trabalho acadêmico

A senhora nunca pensou em trabalhar na área governamental?
Tive uma breve experiência como assessora de Paulo Renato, que entre 1984 e 1986 foi secretário estadual de Educação do governo Franco Montoro, em São Paulo. Mas não gostei muito: o mundo da política é muito hierarquizado; seu chefe realmente manda em tudo, até nos seus horários. Eu estava acostumada à liberdade que existe no mundo acadêmico. Além do mais, gosto de colocar as coisas para funcionar, porém gosto mais ainda de analisá-las, de entender como funcionam. Não conheço lugar melhor do que a universidade, nem nada mais interessante do que o trabalho acadêmico.

Como foi para o Instituto de Relações Internacionais [IRI] da USP?
Em 2000, eu era chefe do Departamento de Ciência Política quando o então reitor da USP, Jacques Marcovitch, montou uma comissão com professores de diferentes áreas do conhecimento, da qual vim a fazer parte, para criar um curso de graduação em relações internacionais. Fizemos um projeto multidisciplinar com matérias das áreas do direito, economia, história e ciência política. O bacharelado em relações internacionais começou em 2002 e desde então está entre os cinco cursos da USP com maior nota de corte no vestibular. O primeiro diretor do IRI foi o professor Walter Colli, do Instituto de Química, e fui vice dele. Depois assumi a direção, entre 2010 e 2013. Foi minha segunda experiência de projeto multidisciplinar, no qual coloquei toda minha experiência anterior. É sempre um desafio, pois os obstáculos administrativos e sobretudo os dilemas intelectuais são imensos. A organização em departamentos estruturados em torno de campos disciplinares, como costuma ocorrer nas universidades, dificulta bastante não só o trânsito dos estudantes, como a construção de projetos efetivamente interdisciplinares. A cultura acadêmica, os critérios de avaliação, as práticas de pesquisa são muito diferentes, mesmo entre disciplinas das humanidades.

Foi difícil migrar para as relações internacionais?
As relações internacionais são um campo da ciência política. Do ponto de vista da minha trajetória acadêmica, procurei fazer uma ponte entre as políticas públicas e as questões internacionais. Acabei encontrando um caminho ao juntar-me por volta de 2009 a um projeto colaborativo, sediado no México, e dedicado ao estudo da opinião pública sobre política externa e questões internacionais. Trata-se da pesquisa “Las Américas y el mundo”, na qual coordenei até recentemente o subprojeto “O Brasil, as Américas e o mundo: Opinião pública e política externa”, com financiamento da FAPESP.

O que tem feito atualmente em termos acadêmicos?
Nesse momento, estou transferindo a coordenação desse projeto a um colega mais jovem do IRI. Está na hora de passar o bastão, mas permanecerei como pesquisadora. Além disso, coordeno desde 2019 o Programa Internacional de Pós-doutorado do Cebrap, com a professora Vera Schattan Coelho. Costumo dizer aos jovens participantes que esse é um espaço para se libertarem dos orientadores, tomarem as rédeas da própria pesquisa e tornarem-se autores, sem medo e com ousadia, como deve ser uma trajetória acadêmica.

A entrevista acima foi publicada com o título “A crença no diálogo” na edição impressa nº 355 de setembro de 2025.

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