Estudar e alterar o código-fonte de um software é um trabalho que seduz cada vez mais os usuários de sistemas informatizados, tanto no meio científico como nas empresas. Essa tendência acaba de ser confirmada durante o Fórum Internacional do Software Livre (Fisl) 9.0, que aconteceu em abril em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Reunindo mais de 7,4 mil pessoas de 21 países, o encontro atraiu empresários, profissionais da área, estudantes e professores. A atração dos softwares livres é mesmo o código-fonte, que traz as instruções para o funcionamento do programa, aberto e passível de modificações e adaptações, enquanto os chamados programas proprietários têm o código fechado e prevêem cobrança de licença pelo uso. Já longe de ficar restrito a pequenos grupos, muitas empresas, como mostrou o evento, também revelaram grande interesse nesse sistema como Google, Telefônica, Intel, Sun Microsystems e Yahoo Brasil.
Não há contradição em usar o software livre para fazer dinheiro, dizem os empresários que circularam pelos stands do Fisl. Para o diretor sênior de estratégias para governo da Sun Microsystems nas Américas, Luiz Fernando Maluf, a opção pelos sistemas abertos é um modelo de negócio. “Posso provar matematicamente que funciona”, diz, dando como exemplo o programa aberto Java, criado pela Sun e que conta hoje com cerca de 30 milhões de desenvolvedores espalhados pelo mundo. A seu ver, a Sun não atingiria o patamar atual – a companhia conquistou o terceiro lugar no mercado global de servidores – se tivesse optado por obter lucro em cima de registro de patentes. Ele explica que o envolvimento de tanta gente com o programa reduz o custo do desenvolvimento e acelera a chegada de um produto ao mercado.
O modelo em questão, baseado na venda de serviços e não mais em patentes, explica o trabalho de sedução feito por grandes empresas na busca por talentos principalmente no Brasil. A Google, por exemplo, criou o Google Summer of Code, um programa de estágio internacional que reúne cerca de 1.500 estudantes, de graduação e pós-graduação, e 2 mil orientadores de quase cem países para trabalhar em projetos envolvendo código livre e aberto. Os projetos selecionados pela Google são sugeridos por empresas ou entidades do mundo inteiro. Na última competição, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) foi a segunda universidade em inscrições do mundo, com uma das melhores taxas de aceitação. Dos 29 candidatos da universidade, 10 tiveram seus projetos aceitos. Para o professor Ricardo Anido, do Instituto de Computação da Unicamp, o Brasil tem a capacidade de se posicionar bem numa fatia de mercado mais nobre do que a simples geração de código. Mais do que programadores, os brasileiros têm qualificação para agregar mais conhecimento ao projeto, oferecendo soluções mais completas. “Competir em preço com Índia e China é difícil. Mas podemos oferecer melhor qualidade”, avalia.
A capacidade brasileira no desenvolvimento e na disseminação dos softwares livres ficou evidente na Fisl. “O papel de liderança do Brasil nessa área é fruto de uma parceria bem-sucedida entre o governo, a indústria e a comunidade de desenvolvedores”, disse o presidente da Linux International, Jon “Maddog” Hall, uma associação sem fins lucrativos que promove softwares livres. Para ele, a queda dos preços dos computadores destoa do alto custo de softwares e o Brasil é exemplar ao desenvolver soluções em larga escala com programas de código aberto, diminuindo custos. Ele cita a Caixa Econômica Federal (CEF) como um dos exemplos mais emblemáticos. Quem paga contas ou vai fazer uma aposta usando terminais instalados nas Casas Lotéricas da CEF usa o sistema operacional Linux. “Saber isso não faz diferença”, diz o gerente de tecnologia da informação Júlio Schneiders Neto, da Caixa. Para ele, o importante para o usuário é perceber que o uso do código aberto deixou os terminais mais ágeis e aumentou a qualidade das transações nos momentos de pico. “Antes de migrarmos para o código aberto uma transação durava em média 8 a 10 segundos. Agora a média fica entre 3 e 4 segundos”, conta Schneiders Neto. “Só com licenças coorporativas, que deveriam ser pagas pelo uso de softwares proprietários, economizamos cerca de R$ 10 milhões desde 2006.”
CENPRACiência barata
O Fórum de 2008 também se destacou pela presença de pesquisadores que optaram pelo software livre e levaram seu trabalho para o domínio público. Um dos exemplos bem-sucedidos é um software usado para fazer imagens médicas tridimensionais, o InVesalius. O programa foi criado em 2000, quando já existiam softwares proprietários comerciais que permitiam a reconstrução tridimensional de imagens de tomografia computadorizada. “Em 2002, quando vi o programa, percebi que ele representava um avanço pela facilidade na obtenção de imagens em 3D, na evolução nos diagnósticos, nos planos de tratamento e na realização de cirurgias”, diz o cirurgião-dentista Francisco Roland, pesquisador associado ao Centro de Pesquisas Renato Archer (CenPRA), da cidade de Campinas, onde o software foi concebido.
No caso do InVesalius, a equipe do Cenpra rebateu as críticas feitas aos softwares livres de que ele sai barato por estar aquém da qualidade dos softwares proprietários. Ele foi comparado com o Vitrea, cuja licença de uso está na casa dos milhares de dólares. “Após análise estatística dos dados verificamos que o desempenho do módulo de craniometria 3D do InVesalius 2.0 não apresentou diferenças estatísticas, tanto nas medidas lineares quanto nas angulares, quando comparadas ao padrão e nem ao Vitrea 3.8.1.1”, conta Marcelo Sales, pesquisador do Labi3D da Radiologia da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP). Ambos permitem que cirurgiões realizem planejamentos mais detalhados, facilitando o diagnóstico de casos complexos. O InVesalius pode ser baixado no portal do Software Público Brasileiro (www.softwarepublico.gov.br). Além do uso na saúde humana, o código aberto dele permitiu que fosse adaptado para outras áreas, como veterinária, arqueologia e paleontologia. “A tendência é que, com o tempo, a qualidade do InVesalius, a exemplo de outros softwares livres, torne-se superior à dos softwares proprietários, porque a comunidade de colaboradores aumenta e constantemente aprimora o código”, diz a engenheira de computação Tatiana Martins, programadora do InVesalius.
Os softwares livres não são desprovidos de problemas. “Alguns deles podem desanimar o usuário porque ainda têm interface gráfica pobre, o que dificulta a interação do usuário com o programa”, lembra Wellington Martins, professor do Departamento de Computação da Universidade Católica de Goiás, que falou sobre o projeto BioPerl, utilizado para a implementação das fases de processamento em projetos Genoma. Martins considera que os softwares livres se revelam estratégicos e que, no caso dos estudos genômicos, vários deles já são considerados padrões na área.
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