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Pneumologia

Combate à falta de ar

Mensageiro químico do sistema de defesa regula reações alérgicas associadas às crises de asma

LAURABEATRIZSó quem já acordou de madrugada com uma angustiante sensação de sufocamento ou viveu o incômodo das prolongadas crises de tosse após um pequeno esforço físico como subir de dois a três lances de escada conhece bem os transtornos que a asma impõe. Problema respiratório crônico que atinge de 150 milhões a 300 milhões de pessoas no mundo, a asma consome mais do que uma parcela importante dos recursos da saúde. Rouba a própria vida: estima-se que a cada ano 15 milhões de portadores de asma percam um ano de vida saudável. Descrita pela primeira vez em uma coleção de textos médicos egípcios de 3.500 anos, os Papiros de Ebers, a asma desafia ainda hoje os que se propõem a compreender os intricados mecanismos químicos que originam as crises súbitas de falta de ar.

Esse é um quadro que começa a mudar. Descobertas recentes de pesquisadores do Brasil e do exterior estão desvendando o papel desempenhado por moléculas mensageiras do sistema de defesa no controle da produção de substâncias alérgicas que disparam as crises de asma. É cedo para saber, mas compostos que simulem ou bloqueiem a ação de algumas dessas moléculas, as interleucinas, podem gerar alternativas para o controle dessa doença inflamatória crônica que vem se tornando mais e mais freqüente nos países ocidentais. De 1980 pra cá, a ocorrência de asma cresceu 60% nos Estados Unidos, onde o problema consome US$ 6 bilhões por ano em assistência médica e atinge 11% da população. É uma proporção semelhante à encontrada no Brasil. Calcula-se que 11,4% dos brasileiros tenham asma e um em cada três apresente alguns sintomas da doença, como respiração com dificuldade e com chiado.

Na Universidade Federal da Bahia (UFBA), o pneumologista Álvaro Augusto Cruz identificou o papel regulatório da interleucina-10 investigando a relação entre a ocorrência de determinados tipos de infecção e os sintomas da asma. São estudos para a avaliação de uma curiosa hipótese explorada pela alergista alemã Erika von Mutius: a hipótese da higiene. Na década de 1990 ela comparou as taxas de ocorrência de alergias e asma nas crianças da antiga Alemanha Ocidental com as das crianças da Alemanha Oriental. Sua expectativa era que esses problemas fossem mais freqüentes no lado comunista, com cidades mais pobres, sujas e aparentemente menos saudáveis.

Para sua surpresa, Erika encontrou o oposto e foi buscar a explicação para esse resultado na diferença de estilos de vida dos dois países antes da reunificação. Na Alemanha Oriental as famílias eram mais numerosas e desde cedo as crianças iam para as creches, onde se expunham mais a infecções causadas por vírus e bactérias. O contato com esse tipo de agente infeccioso geralmente aciona células do sistema de defesa que provocam uma forma de inflamação capaz de inibir o desenvolvimento de alergia, enquanto infecções causadas por vermes costumam disparar uma reação semelhante à alergia. Acreditava-se que esse equilíbrio funcionasse como uma balança de dois pratos, com as infecções que acionam respostas inflamatórias diminuindo os sinais da asma.

Interleucina
Nem sempre é assim. A equipe da UFBA constatou que pessoas infectadas com o vírus HTLV1 realmente apresentavam respostas alérgicas menos intensas do que as pessoas sem esse vírus no sangue. Mas, diferentemente das expectativas, a redução nas taxas de infecções – tuberculose e sarampo – não elevou os índices de asma, constatou o grupo coordenado por Dirceu Solé, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ao analisar a atividade imunológica de portadores do Schistosoma mansoni, o verme causador da esquistossomose, o grupo da Bahia também observou que a resposta alérgica era paradoxalmente menos intensa que o esperado.

Uma molécula mensageira do sistema imunológico, a interleucina-10, liberada em maior quantidade nas pessoas com S. mansoni, atenua a resposta alérgica. Aparentemente essa interleucina ameniza os sinais da asma, segundo estudo publicado no Journal of Infectious Diseases. Com as equipes de Edgar de Carvalho e Maria Ilma Araújo, da UFBA, e de Sérgio Oliveira, da Universidade Federal de Minas Gerais, Cruz procura justamente as proteínas do S. mansoni que estimulam a produção da interleucina-10, que, espera-se, possam auxiliar no controle da asma.

A essa busca somam-se avanços na compreensão do que é a própria asma. São mudanças de conceito que começam a reorientar a terapia dessa doença de modo a conduzir a uma prevenção mais eficaz das angustiantes crises de asfixia que deixam a sensação de que os pulmões estão prestes a serem esmagados. No Instituto do Coração (InCor) da Universidade de São Paulo, a equipe de Rafael Stelmach e Alberto Cukier comprovou que a melhor forma de prevenir as crises de asma é associar duas estratégias de tratamento usadas para combater problemas aparentemente distintos. Adotada no controle da inflamação que dispara a asma, a primeira estratégia consiste no uso de um antiinflamatório aplicado na boca por meio de um nebulizador e aspirado para os brônquios e os pulmões. A segunda é a aplicação desse medicamento no nariz com o objetivo de combater a rinite, inflamação do tecido que reveste esse órgão internamente.

Durante quatro meses a equipe do InCor submeteu 59 pessoas que tinham asma e rinite havia dez anos a três formas de terapia com o antiinflamatório beclometasona. Separados em três grupos, todos os participantes receberam dois tipos de frasco. Em um deles havia um composto para aplicação nasal e no outro uma formulação para ser nebulizada na boca, a chamada via pulmonar. Um grupo recebeu o antiinflamatório por via nasal e um composto inócuo (placebo) para ser aspirado pela boca, enquanto outro grupo consumiu placebo por via nasal e o antiinflamatório por via pulmonar. Só os integrantes do terceiro grupo receberam beclometasona por via nasal e pulmonar. Publicados em novembro passado na Chest, os resultados mostram que um mês após o início do tratamento os voluntários apresentavam menos sinais de asma e rinite, melhora que permaneceu estável nos três meses seguintes.

A análise dos prejuízos que a asma e a rinite causam no dia-a-dia revelou, porém, que quem consumiu o antiinflamatório por via nasal e pulmonar teve de recorrer menos vezes ao atendimento de emergência, perdeu menos dias de trabalho e acordou menos vezes à noite em conseqüência de crises do que os integrantes dos demais grupos.

Para Stelmach, asma e rinite precisam ser compreendidas como uma mesma inflamação que afeta áreas distintas do aparelho respiratório. Faz sentido. Afinal nariz, traquéia, brônquios e pulmões integram um mesmo sistema. “Deixar de combater a rinite pode prejudicar o controle efetivo da asma”, diz Stelmach.

Nem sempre se pensou assim. Sabe-se há cerca de três séculos que a sensação de asfixia típica da asma é provocada pelo estreitamento dos brônquios, os canais que levam ar aos pulmões. Mas os mecanismos químicos e biológicos que o disparam só foram identificados nos últimos 50 anos. A entrada no organismo de compostos estranhos – como proteínas de ácaros e de baratas encontradas na poeira domiciliar, componentes da fumaça do cigarro ou da poluição, ou mesmo medicamentos – ativa uma complexa cadeia de reações químicas. Essas reações acionam a produção de anticorpos e liberam histaminas, substâncias que provocam a contração dos músculos que envolvem os brônquios e geram sinais de alergia como inchaço, vermelhidão e produção de muco no interior dos brônquios.

Até a década de 1970 acreditava-se que esse fosse o único mecanismo por trás da asma, então vista como uma doença alérgica esporádica e, por essa razão, combatida apenas nos períodos de crise. Usavam-se medicamentos que provocam o relaxamento dos músculos ao redor dos brônquios – os broncodilatadores inalatórios, aplicados na boca por meio de nebulizadores conhecidos como bombinhas – ou de potentes antiinflamatórios hormonais, os corticosteróides administrados por via oral ou endovenosa. Com ação em todo o organismo, esses corticosteróides não devem ser usados por longos períodos porque podem causar hipertensão, diabetes e fragilidade óssea.

Nos últimos 20 anos o uso de um equipamento médico que permite observar o interior dos brônquios e coletar amostras do tecido alterou a compreensão da doença. Constatou-se que os brônquios dos portadores de asma se encontravam continuamente inflamados, e não apenas durante as reações alérgicas. Essa constatação alterou a forma de tratar a asma, hoje considerada uma doença crônica. Os broncodilatadores não foram abandonados. Continuam sendo usados nos momentos de crise. A mudança mais importante foi a adoção de corticosteróides inalatórios, que agem principalmente nos brônquios e nos pulmões e são inativados pelo fígado quando alcançam a corrente sangüínea.

“Praticamente não precisamos de novidades para tratar a asma”, afirma o pneumologista Carlos Fritscher, da PUC do Rio Grande do Sul. “Os medicamentos existentes são seguros e controlam a doença em 90% dos casos.” Se esses antiinflamatórios são bons assim, por que a asma continua uma das principais causas de internação no país” Na opinião de Fritscher, a resposta é clara: muitas pessoas não seguem o tratamento, que dura a vida toda, e usam os medicamentos apenas nas crises. Interessados em verificar se as pessoas com asma realmente seguem a prescrição dos médicos, Fritscher e José Miguel Chatkin realizaram um estudo com 151 portadores de asma moderada ou grave de 15 estados brasileiros.

Orientação por telefone
Cada participante recebeu o antiinflamatório fluticasona e o broncodilatador salmeterol em quantidade suficiente para 90 dias de tratamento. Os pesquisadores telefonaram para cada voluntário no primeiro dia, para orientar como usar os remédios, e, três meses mais tarde, para verificar se haviam consumido as doses prescritas. Apenas metade dos participantes seguiu as orientações corretamente, independentemente da escolaridade, do estado civil, da idade, do sexo e do número de vezes que já havia sido internado por causa da asma. O único fator que melhorou a adesão ao tratamento foi a gravidade da doença.

Não é assim só no Brasil. Na América Latina, onde a prevalência do problema é superior à média mundial, o índice de pessoas que se tratam corretamente é mais baixo ainda. Fritscher participou recentemente de um estudo que analisou o controle da asma em 11 países latino-americanos. Das 2.184 pessoas entrevistadas, mais da metade (56%) apresentava sintomas de asma e já havia sido hospitalizada por causa da doença. Mas só 6% utilizavam antiinflamatórios corticosteróides no momento da pesquisa, de acordo com os dados publicados na Revista Panamericana de Salud Pública. Esse mesmo estudo sugere que o principal problema é a desinformação da população. Quase metade das pessoas com asma persistente acreditava que sua doença estivesse sob controle, mas somente em 2,4% dos casos o problema podia ser considerado controlado do ponto de vista médico.
Não é tão complicado nem caro modificar essa situação. Bastam alguns telefonemas para reforçar as orientações, comprovaram Chatkin e Fritscher.

Eles distribuíram antiinflamatório e broncodilatador para três meses de terapia a 300 pessoas com asma, divididas em dois grupos: o primeiro recebeu dois telefonemas – um no primeiro e outro no último dia de tratamento – e o segundo foi acompanhado com uma chamada de reforço a cada duas semanas. Essa medida simples aumentou para 74% o índice de pessoas que se tratavam corretamente.

“O tratamento é a melhor forma de conviver com a doença”, comenta Ana Luisa Fernandes, pneumologista da Unifesp. Ela comprovou que programas educativos que ensinem a diferença entre antiinflamatórios e broncodilatadores – ou a maneira certa de usar esses remédios – reduzem as internações hospitalares. O resultado nem sempre é imediato. Ana Luisa avaliou 121 participantes desses programas e constatou que foram necessários ao menos dois meses de tratamento adequado para as pessoas com asma leve ou moderada começarem a controlar a inflamação.

Nos casos graves, com crises diárias de falta de ar não controláveis por antiinflamatórios inalatórios, esse tempo aumentou para quatro meses. Na Bahia Álvaro Cruz desenvolve um programa que vem aprimorando o controle da asma grave. Sua equipe atende 1.500 pessoas em cinco centros de referência do Sistema Único de Saúde (SUS) – quatro em Salvador e um em Feira de Santana. Quem adere ao programa recebe gratuitamente os medicamentos contra a asma e passa por consultas periódicas com médicos, enfermeiros e psicólogos. Já no primeiro ano de atividade plena essa estratégia reduziu em 40% as internações. Mesmo sendo mais completo que o atendimento normal do SUS, esse programa proporciona economia para o sistema público de saúde. Como há menos internações e consultas de emergência, economizam-se R$ 2.500 por paciente por ano.

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