Em apenas dois minutos, uma célula do sistema imunológico imobiliza, envolve, engole e destrói uma partícula estranha ao organismo, como uma bactéria ou um parasita. O fenômeno é conhecido como fagocitose – do latim fagos (comer) ecitosis (célula) – e decorre de um tipo específico de flutuações na superfície da célula classificadas como grandes por formarem ondas semelhantes às do mar, com uma altura de alguns micrômetros (um micrômetro é a milionésima parte do metro), como provou uma série de experimentos recentes feitos por pesquisadores do Laboratório de Física Estatística e Biofísica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
O resultado altera um dos modelos teóricos proposto há quase 30 anos por pesquisadores norte-americanos para explicar a fagocitose, o modelo zíper, segundo o qual pequenas vibrações normais – também chamadas aleatórias, que permeiam toda a superfície celular e assemelham à de uma piscina em dia de pouco vento – provocariam o processo, usado pelas células no combate a agentes estranhos ao organismo, como bactérias e fungos. No futuro, a descoberta pode levar ao desenvolvimento de drogas mais eficientes no combate a infecções.
O caminho até essa conclusão foi longo. Primeiro, os pesquisadores mineiros desenvolveram uma técnica inovadora, descrita em um artigo científico em via de publicação, que permitiu observar e filmar detalhes dos dois tipos de movimento da superfície celular ao microscópio óptico. Chamada microscopia de desfocalização, altera o foco da imagem por distâncias inferiores a um micrômetro e assim permite ver e medir a curvatura da superfície celular, parâmetro importante para a avaliação da quantidade de energia gasta pelas células de defesa, como os macrófagos, para engolfar o patógeno.
Pinças de luz
O método só funcionou quando associado a outro, criado nos anos 70 pelo físico norte-americano Arthur Ashkin, dos Laboratórios Bell, nos Estados Unidos. Conhecida como pinças ópticas – feixes concentrados de laser capazes de prender e manter suspensos átomos, moléculas e células -, essa técnica, antes aplicada à física, foi adaptada a estudos em biologia nos últimos anos. Com auxílio dessas pinças de luz, o físico Oscar Nassif de Mesquita, da UFMG, e seu aluno de doutorado Ubirajara Agero conseguiram isolar um único macrófago de camundongo, sem o destruir, e alimentá-lo com partículas de zymosan, levedura usada em experimentos de fagocitose em laboratório.
Na análise desse fenômeno, apareceram tanto as ondas grandes quanto as pequenas – embora apenas as grandes participassem ativamente da emissão de prolongamentos para englobar a partícula. “Nosso objetivo era entender como as propriedades mecânicas da superfície da célula afetam o processo de fagocitose”, explica Mesquita, coordenador do trabalho, desenvolvido em colaboração com Catherine Ropert, do Centro de Pesquisas René Rachou, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em Belo Horizonte, e Ricardo Gazzinelli, que trabalha na Fiocruz e no Departamento de Imunologia e Bioquímica da UFMG. Ao medir o tamanho das ondas, os pesquisadores conseguiram calcular a energia gasta pelas células para gerar os movimentos. Enquanto as pequenas flutuações, que ocorrem em toda a superfície da célula, praticamente não gastam energia (a temperatura do corpo de 37° C é suficiente para produzi-las), as ondulações grandes consomem 100 vezes mais energia.
Perspectivas
Faltava, no entanto, a comprovação do novo mecanismo da fagocitose. Os pesquisadores acrescentaram ao meio de cultura dos macrófagos uma droga que altera a consistência do esqueleto das células e inibe a formação das grandes ondulações, a citocalasina D. Ao medir novamente a duração do processo, verificaram que o tempo gasto para aniquilar o invasor aumentou 60 vezes, de dois minutos para duas horas, confirmando a importância das grandes ondas para a fagocitose. “Esses resultados abrem caminho para o estudo de medicamentos que atuem na estrutura de sustentação das células e na produção de energia para aumentar a eficácia da fagocitose”, comenta Mesquita, que há três anos enveredou pela análise de sistemas biológicos e neste ano publicou dois artigos sobre o uso de pinças ópticas – um na revista Physical Review E e outro na Applied Physics Letters, ambas da Sociedade Americana de Física.
As pinças ópticas também vêm auxiliando a equipe mineira a estudar fenômenos biológicos na escala molecular, mais especificamente a elasticidade da molécula de DNA. Essa propriedade física garante ao material genético a capacidade de dobrar-se sobre si mesmo para caber no núcleo da célula, que tem uns poucos micrômetros – o DNA contido em uma única célula chega a quase 2 metros de comprimento se esticado.
Interação
Após isolar um único segmento de DNA com o auxílio das pinças, Mesquita e seu aluno Nathan Viana mediram a flexibilidade da molécula com um método criado por eles. Chamado espalhamento dinâmico de luz e descrito no doutoramento de Viana, concluído em maio, o método avalia a intensidade de um laser refletido por esferas de poliestireno ligadas ao DNA.
O experimento permitiu a validação da técnica que, ainda neste ano, deve ser empregada para analisar a interação do material genético com proteínas e com medicamentos, substâncias que alteram a elasticidade da molécula. Desse modo, os pesquisadores esperam compreender melhor o processo de replicação do DNA. Recentemente, a equipe começou a avaliar os danos causados em uma única molécula de DNA pela radiação ultravioleta, como a que causa as queimaduras solares. “Pretendemos ver a evolução ao longo do tempo dos danos provocados em um única molécula”, explica Mesquita. “Ainda não sabemos todas as possíveis implicações disso, mas creio que será importante para avaliar o risco de câncer de pele, causado pelo mesmo tipo de dano”.
Outra linha de pesquisa na qual a equipe do pesquisador investe é o estudo do transporte de água nas células renais, mais especificamente o processo de perda de água da célula para o meio externo, mais concentrado, por exemplo, em sal, a substância empregada no experimento. Em decorrência desse processo, chamado osmose, a célula começa a murchar e imediatamente ativa seu mecanismo de regulação de volume, de modo a voltar ao estado inicial – é a osmorregulação, outro mecanismo essencial.
Num trabalho em parceria com Robson dos Santos, do grupo de hipertensão do Departamento de Fisiologia da UFMG, Mesquita e sua aluna de doutorado Aline Duarte Lúcio mediram, com precisão maior que outros métodos, o volume de água perdido no processo, ao observar uma célula renal de cachorro isolada e suspensa no meio de cultura com o auxílio de pinças ópticas. Também calculou a velocidade da osmose, chamada pelos especialistas de permeabilidade, que se mostrou bem menor do que as estimativas anteriores: apenas 5 micrômetros por segundo – os trabalhos que haviam avaliado a osmose por observação indireta, em agrupamentos de células, estimavam essa velocidade entre 0,5 e 50 micrômetros por segundo. “Diminui-se muito a possibilidade de erro com a eliminação da interferência de outras células e do contato com a lâmina de vidro do microscópio, que deforma a célula e impede a medição direta”, comenta Mesquita.
Permeabilidade
Os pesquisadores acompanharam em tempo real a osmose e quantificaram, em função desse tempo, a permeabilidade da membrana da célula em relação à água, que se deve à criação de canais na membrana celular pela ação de proteínas especializadas, as aquaporinas. Nas experiências foram usadas quantidades variadas de NaCl (cloreto de sódio, o sal de cozinha) no meio externo para forçar a saída da água da célula, que murcha rapidamente, em alguns segundos, mas logo em seguida aciona o seu mecanismo de regulação de volume, o processo de osmorregulação, para retornar praticamente ao seu volume original, em cerca de dez minutos.
Essa fase é mais demorada porque o soluto – os compostos dissolvidos no interior da célula, entre os quais estão minerais como o potássio – tem de migrar para regiões específicas da célula, osmoticamente ativas, de modo a inverter o fluxo de água. A adição do hormônio vasopressina, produzido naturalmente no corpo e relacionado à hipertensão, aumenta a permeabilidade porque causa a migração de novas aquaporinas para a superfície da célula. O passo seguinte, comenta Mesquita, é realizar experimentos em células renais de dois grupos de animais, hipertensos e normais. Podem surgir daí mais detalhes sobre alterações nos mecanismos de transporte de água potencialmente úteis na busca de novas drogas para tratar pressão alta e problemas nos rins.
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