Amazônia: calorão e chuva constante. Será? Não é bem assim. Durante a estação seca, entre junho e outubro, as nuvens se dissipam e as folhas das árvores mais altas – o dossel da floresta – recebem a insolação equatorial em cheio. Por um tempo essa camada funciona como um escudo protetor e os andares inferiores da floresta, ou sub-bosque, permanecem frescos e em certa penumbra. Nessa aparente bolha de proteção, camadas de vegetação reagem de maneira distinta e podem sofrer danos cuja extensão ainda não se entende bem. Para enxergar essa dinâmica, foi necessário levar para a floresta um equipamento chamado LiDAR (Light Detection and Ranging ou detecção de luz e medida de distância), que, ao emitir feixes de laser, produz um mapeamento detalhado do emaranhado de ramos e folhas. Os resultados estão descritos em artigo publicado hoje (17/2) na revista Nature Communications.
As análises mostram que a área vegetal – uma soma da superfície das folhas e dos troncos e ramos – no sub-bosque cai 5% antes da estação seca e se recupera até setembro. A recuperação é na verdade uma intensa produção de folhas novas, possível porque nesse momento as árvores com mais de 15 metros perdem cerca de 8% de suas folhagens e permitem que mais luz solar penetre a floresta.
Ao analisar as imagens obtidas pelo LiDAR em conjunto com registros de temperatura, o ecólogo Matheus Nunes, pesquisador na Universidade de Helsinque, na Finlândia, percebeu que as árvores mais altas reagem quando os dias atingem pelo menos 35 graus Celsius (°C). “Elas são mais sensíveis às altas temperaturas”, afirma, ainda sem poder precisar se o que leva à perda de folhas é a temperatura ou alterações na pressão do vapor-d’água no ar em consequência do calor. Em casos extremos pode acontecer a cavitação, uma falha no mecanismo hidráulico que leva água das raízes às folhas e pode causar a morte das grandes árvores, em consequência da falta de umidade no solo. As árvores do sub-bosque são diferentes e continuam a brotar no período seco.
“Passei sete meses dentro da floresta em uma fazenda a 100 quilômetros ao norte de Manaus”, conta Nunes. Ao longo desse período, entre abril e outubro de 2019, ele alternava semanas em que vivia na floresta, dormindo em rede sob uma cobertura simples que protege da chuva, mas não de animais visitantes – como insetos, mucuras (um tipo de gambá), bugios que gritam às 4h e onças que rugem por perto –, e outras em que voltava a Manaus para recarregar as baterias metafóricas e reais, além de baixar os dados no computador e começar as análises. Cabe lembrar que não basta um equipamento de última geração para entender a dinâmica da floresta. É preciso se embrenhar no mato, e o local de trabalho de Nunes era privilegiado.
A área é uma das parcelas preservadas há mais de 40 anos pelo Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais (PDBFF), fundado pelo biólogo norte-americano Thomas Lovejoy (1941-2021) com base no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), o esforço de pesquisa mais longevo desse tipo. O acúmulo de conhecimento ao longo de décadas permite que as perguntas científicas se desdobrem e se aprofundem.
O objetivo inicial de Nunes estava centrado exatamente no foco do PDBFF, que é entender os efeitos da fragmentação florestal – quando a floresta perde sua continuidade em consequência do desmatamento e sobram ilhas de vegetação com tamanhos variados. Usando o LiDAR instalado em um tripé, ele verificou que as plantas do sub-bosque na borda da floresta, já adaptadas à luminosidade mais constante que entra pela lateral e a temperaturas mais altas, não exibem a mesma sazonalidade. Mas as árvores do dossel começam a perder folhas três meses antes de a temperatura interna da floresta chegar aos 35 °C. O calor chega antes às áreas desmatadas.
“Esse estudo e outros vêm mostrando que os estratos da vegetação funcionam de maneira distinta”, resume o ecólogo José Luís Camargo, do Inpa, coordenador científico do PDBFF e coautor do artigo. Ele relaciona os resultados a outro estudo de que participou, feito pelo biólogo Alci Albiero-Júnior durante doutorado na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP). “Ele mostrou que as espécies de dossel e as do sub-bosque têm padrões de crescimento distintos, um efeito que pode ter relação com o que foi observado por Matheus Nunes.”
Albiero-Júnior, agora pesquisador em estágio de pós-doutorado na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), verificou que árvores de sub-bosque da espécie Theobroma sylvestre, mesmo gênero do cacau, têm o crescimento incrementado por pelo menos 20 anos após a criação de uma borda na floresta, de acordo com artigo publicado em julho de 2021 na revista científica Trees.
Em outro estudo, publicado em 2019 na Ecological Indicators, o biólogo descreve uma redução de 18% no crescimento das árvores de dossel depois de perturbações causadas por desmatamento – um efeito que pode durar mais de 10 anos. “Essa redução, indicada pela medição dos anéis de crescimento das árvores, dá um sinal claro de quando aconteceu a fragmentação”, conta Camargo, que, como coordenador científico, tem oportunidade de fazer conexões entre estudos feitos por grupos distintos e se empolga com o avanço na compreensão de como funciona a dinâmica da floresta.
Nunes ressalta que o ano em que fez seu trabalho é considerado típico, sem extremos climáticos. Mas o sexto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado em agosto de 2021, admite a possibilidade de que em 2050 partes da Amazônia cheguem a ter mais de 150 dias por ano com temperaturas acima de 35 °C. “Isso causaria um processo de estresse muito grande que pode levar a uma alta mortalidade de árvores”, alerta Camargo. “Em sinergia com os efeitos deletérios da fragmentação da floresta, o efeito pode ser desastroso.”
Artigos científicos
NUNES, M. H. et al. Forest fragmentation impacts the seasonality of Amazonian evergreen canopies. Nature Communications. On-line. v. 13, 917. 17 fev. 2022.
ALBIERO-JÚNIOR, A. et al. Amazon forest fragmentation and edge effects temporarily favored understory and midstory tree growth. Trees. v. 35, n. 6, p. 2059-68. 8 jul. 2021.
ALBIERO-JÚNIOR, A. et al. What is the temporal extension of edge effects on tree growth dynamics? A dendrochronological approach model using Scleronema micranthum (Ducke) Ducke trees of a fragmented forest in the Central Amazon. Ecological Indicators. v. 101, p. 133-42. jun. 2019.