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Boas práticas

Comportamentos que põem em risco a integridade científica

Pesquisadores propõem parâmetros para julgar casos em que a imprudência é a causa da má conduta

General Photographic Agency/ Getty Images

Um artigo publicado na revista Accountability in Research analisou as dificuldades para punir um tipo de má conduta em pesquisa previsto na regulação do sistema público de saúde norte-americano, mas que costuma gerar controvérsia na discussão de casos concretos: a imprudência. Ela ocorre quando um pesquisador, mesmo sem participação ou conhecimento em transgressões cometidas em um laboratório ou em um projeto sob sua responsabilidade, deixa de tomar cuidados para prevenir os desvios – e, ao descumprir essa obrigação, contribui para que a violação ética aconteça.

A principal dificuldade é determinar de modo inequívoco se o acusado fez tudo o que pôde para evitar o problema ou se agiu de forma descuidada, em situações que vão desde manipulações fraudulentas de dados praticadas por subordinados, mas que não foram devidamente verificadas pelo chefe antes de publicar os resultados, até episódios de plágio envolvendo estudantes que não receberam treinamento adequado em integridade científica de seus orientadores.

Há também outros entraves. Os autores do artigo – a pediatra Barbara Bierer, do Centro de Bioética da Escola de Medicina de Harvard, e três advogados do escritório norte-americano Ropes & Gray, especializado em temas regulatórios em áreas como ciência e saúde – observaram que o conceito de imprudência é interpretado de forma heterogênea por órgãos de financiamento. A National Science Foundation, principal agência de apoio à ciência básica dos Estados Unidos, classifica como imprudente um pesquisador que “utilizou dados e materiais sem o devido cuidado e/ou demonstrou indiferença frente ao risco de serem falsos, fabricados ou plagiados”. Já a Nasa, a agência espacial norte-americana, considera má conduta o “desrespeito imprudente a práticas aceitas”. De acordo com os autores do artigo, o padrão da Nasa dá um caráter subjetivo à avaliação de cada caso, pois “obrigaria um tomador de decisão a identificar o que é uma prática aceita e então determinar, por preponderância das evidências, que houve falsificação, fabricação ou plágio”.

O Escritório de Integridade Científica dos Estados Unidos (ORI), responsável por supervisionar estudos financiados com recursos federais, não tem uma definição oficial para imprudência, mas se debruçou várias vezes sobre o problema em processos de má conduta que julgou. Um caso rico em detalhes foi o do neurocientista norte-americano Christian Kreipke, que chegou a ser demitido em 2012 por má conduta da Wayne State University e do Veteran Affairs Medical Center, ambos na cidade de Detroit, Estados Unidos (ver Pesquisa FAPESP nº 271). Kreipke utilizou dados forjados em três pedidos de financiamento, além de dois artigos e dois pôsteres em que era listado como autor e foi proibido pelo ORI de receber financiamento federal por 10 anos. Ele recorreu a uma corte de apelações do governo dos Estados Unidos e teve o caso reavaliado por um juiz administrativo. Em sua defesa, disse que usou de boa-fé imagens produzidas por pesquisadores em quem confiava e que parte das acusações foi fabricada pela Wayne State University, de quem se diz vítima de perseguição política.

O juiz Keith Sickendick considerou que Kreipke foi imprudente com base em dois parâmetros. O primeiro é que ele tinha a obrigação de averiguar a validade dos dados que utilizou, mas agiu sem cautela. O segundo levou em conta o fato de Kreipke saber que sua equipe tinha problemas de organização. “Com base em seu conhecimento sobre o estado de seu laboratório e a situação do pessoal, foi imprudente presumir que os dados informados em pedidos de financiamento, artigos e pôsteres eram confiáveis”, informou o juiz.

Os autores do artigo analisaram esse e outros casos julgados pelo ORI e os adotaram como parâmetro para propor uma classificação de casos de imprudência. Eles sugerem fazer duas perguntas. A primeira é se o acusado verificou a veracidade das informações coletadas ou fornecidas por subordinados, como é sua obrigação. A segunda é se tomou medidas adequadas para garantir a integridade dos dados apresentados e para mitigar o risco de que fossem falsificados, fabricados ou plagiados. Se a primeira pergunta tem uma resposta objetiva, a segunda é sujeita a interpretações, e o artigo sugere que os julgadores analisem seis diferentes parâmetros para determinar se houve descuido.

A primeira condição é se, em um caso sob avaliação, já existia a percepção de um risco aumentado de má conduta por conta das práticas culturais do laboratório em que o episódio aconteceu ou das características do seu campo de pesquisa. A segunda é se, repetidamente, haviam sido permitidos, tolerados ou ignorados anteriormente comportamentos que poderiam levar a transgressões naquele ambiente. A terceira é se houve falha na utilização de ferramentas para confirmar a veracidade de dados, ou em sistemas para gerenciar, manter e armazenar registros de pesquisa, ou ainda no treinamento em integridade de estudantes e pesquisadores supervisionados. A quarta é se houve atenção adequada a práticas como revisão de dados brutos em reuniões ou a sua validação por vários membros do laboratório antes da submissão de resultados para a publicação. A quinta é se faltaram medidas corretivas em resposta a alegações anteriores relacionadas à falsificação, à fabricação ou ao plágio. E a sexta é se o ambiente organizacional era adequado, com reuniões frequentes, práticas de supervisão bem estabelecidas e procedimentos rigorosos para coleta, gestão e compartilhamento de dados.

Outro estudo publicado também na Accountability in Research por pesquisadores dos Institutos Nacionais de Saúde e da Universidade Estadual da Carolina do Norte chegou a conclusões convergentes ao analisar o julgamento do caso de Frank Sauer, professor de bioquímica da Universidade da Califórnia em Riverside, acusado de falsificar ou fabricar imagens em sete pedidos de financiamento aos Institutos Nacionais de Saúde e em três artigos científicos. Sauer primeiro se defendeu dizendo que os erros foram cometidos de boa-fé. Depois, deu outras explicações. Disse que os dados foram falsificados por um indivíduo que o culpava por ter perdido o emprego e também que foi hackeado por um grupo ativista alemão interessado em sabotar os resultados.

A investigação ocorreu em 2012. O ORI considerou Sauer responsável por manipular, reutilizar e rotular falsamente imagens de sua pesquisa em epigenética e o proibiu de obter financiamento federal até 2020. O pesquisador tentou reverter a decisão e levou o caso à corte de apelações. Em 2017, a juíza administrativa Leslie Rogall concluiu que, mesmo dando a Sauer o benefício da dúvida e considerando que ele pode ter sido vítima de sabotagem, o pesquisador agiu com imprudência ao não verificar a precisão dos dados que apresentou em diversos pedidos de financiamento. “A repetida publicação e a apresentação de documentos contendo informações totalmente falsas demonstram, no mínimo, uma indiferença à verdade”, afirmou Rogall.

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