EDUARDO CESAR Um grupo de pesquisadores do Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC) anunciou, em São Carlos, um novo processo e uma nova formulação de chip capazes de aumentar em 250 vezes a memória dos computadores. A novidade é importante porque poderá trazer grandes benefícios para os consumidores e para os rumos da indústria da informática e eletroeletrônica no âmbito nacional e, quem sabe, internacional. No Brasil, a produção de semicondutores, componentes essenciais para o funcionamento de todo tipo de equipamento eletrônico, é um dos quatro pontos das diretrizes da política industrial do país, anunciadas pelo governo federal em novembro e que devem ser confirmadas agora em março. Esses produtos são fabricados com silício e formam os famosos chips e demais dispositivos que, por sua vez, compõem os circuitos integrados e fazem o processamento e a guarda das informações de qualquer microprocessador, esteja ele na caixa eletrônica do banco, nos telefones celulares, no sistema de injeção de combustível de um carro, na TV ou nos computadores.
Os semicondutores estão, portanto, cotados para receber, ao lado de softwares, fármacos e bens de capital, incentivos governamentais e empresariais para um novo impulso de desenvolvimento. Até agora, a discussão sobre a produção desses componentes no Brasil se baseia, principalmente, na importação de tecnologia, com a montagem de fábricas aqui. Com essa perspectiva, a novidade anunciada em São Carlos pode esquentar o debate sobre a produção de semicondutores no país. Para chegar aos novos materiais que podem servir a uma nova geração de memória computacional,os pesquisadores do CMDMC, um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) financiados pela FAPESP, desenvolveram um processo simples e barato de deposição química com um forno de microondas caseiro que já rendeu o registro de uma patente. Também construíram um eletrodo (elemento condutor de carga elétrica) que poderá substituir a platina nos circuitos integrados. Todas essas conquistas já são alvo do interesse de uma empresa multinacional, cujo nome os pesquisadores envolvidos na negociação preferem não revelar.
Pequenos isolantes
Para entender o avanço das novidades apresentadas pelos pesquisadores é preciso entrar no mundo dos semicondutores e seus componentes. O primeiro grande sinal de que o novo material em forma de películas, chamadas de filmes finos, à base de titanato de bário e chumbo (PbBaTiO3), possui boas características para integrar um dispositivo de memória computacional está na sua alta constante dielétrica. Quanto maior essa constante, maior a quantidade de elétrons que podem ser arquivados na memória. Esse parâmetro mede quanto o material permite o deslocamento da carga elétrica através de sua superfície para outras camadas internas dos componentes. Na verdade, esses materiais são isolantes, incapazes ou ineficientes para conduzir uma corrente elétrica, ao contrário de um condutor em que a carga flui normalmente. Já os semicondutores, materiais formados por elementos químicos como silício, germânio ou compostos como arseneto de gálio, possuem uma condutividade elétrica intermediária, armazenando menos elétrons que um metal, porém proporcionando um controle mais fácil e ordenado dessas partículas. Num material dielétrico, a carga é deslocada para outro nível dentro dos dispositivos eletrônicos, conhecidos genericamente como chips (um sanduíche de material semicondutor e condutor intercalados por camadas de filmes dielétricos), na forma de descargas, também chamadas de indução, quando sua rigidez dielétrica é superada.
A constante dielétrica do filme de titanato de bário e de chumbo produzido em São Carlos é de 1.800, mais de 250 vezes a de um capacitor (dispositivo que armazena carga elétrica num espaço bem reduzido) usado em circuitos integrados. Os filmes atuais, à base de óxido de silício e de nitreto de silício, apresentam constante dielétrica igual a sete. Em outros produtos resultantes de trabalhos de pesquisadores do CMDMC, além de norte-americanos e japoneses, as maiores constantes dielétricas para esses materiais atingiram a marca de 700 com métodos sofisticados e custosos. “Os chips atuais com constante sete são capazes, por exemplo, de processar memória de 1 gigabyte (GB), enquanto com o material que desenvolvemos poderão chegar aos 250 GB”, anuncia o professor Elson Longo, coordenador do Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (Liec), do Departamento de Química da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e do CMDMC, chamado de Cepid Cerâmica, que é formado também pelo Instituto de Química (IQ) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares e pelo Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo.
“Atualmente, nas pastilhas dos semicondutores com 1 centímetro quadrado (cm²) de área é possível arquivar 1 megabyte (MB) de informações. Com a nova memória, será possível arquivar no mesmo espaço 250 MB”, diz Longo. “A alta densidade dielétrica, além de representar um avanço para o armazenamento de memória dos capacitores, é necessária para manter a concentração e o armazenamento da carga elétrica dentro dos padrões exigidos para as futuras gerações de memória de acesso aleatório dinâmico, chamadas de DRAM (do inglês Dynamic Random Acess Memory), que fazem o armazenamento de dados e de informações do software utilizado no momento do uso do computador, resultando também em um menor consumo de energia elétrica.”
Assim, a pesquisa que resultou nos filmes finos de titanato de bário e de chumbo faz parte de uma corrida mundial, com mais de 20 anos de percurso, para superar um dos problemas da microeletrônica: o tamanho da célula de memória. Essa peça está sendo reduzida a cada ano com o objetivo de aumentar o número desses dispositivos e proporcionar maior capacidade de arquivamento e processamento de dados para os computadores. Um caminho que vem da solicitação evolutiva dos softwares, cada vez mais variados, disseminados e sofisticados. A diminuição dos dispositivos de memória também facilita a miniaturização e a criação de novos equipamentos eletrônicos ou o aumento das funções desses aparelhos.
Desde os anos 1970, é permanente a procura pela multiplicação de memória e espaço dentro dos dispositivos semicondutores. A mais famosa predição sobre esse progresso da informática foi feita pelo engenheiro eletrônico Gordon Moore, um dos fundadores da Intel, principal fábrica de semicondutores, instalada nos Estados Unidos. Ele disse que o crescimento da indústria de computadores provocaria o aumento da capacidade de processamento dos chips, que deveria dobrar a cada dois anos. Delineada num artigo escrito por ele, em 1965, para a revista Eletronics, a previsão ficou conhecida mais tarde como a Lei de Moore. Durante esse tempo, a indústria eletroeletrônica tem seguido à risca essa evolução ou até com mais rapidez. O tamanho das memórias RAM, por exemplo, tem quadruplicado a cada três anos.
Ao mesmo tempo, está cada vez mais difícil manter a densidade de elétrons em capacitores, utilizando os atuais derivados do silício. O capacitor, um dos mais importantes elementos desse tipo de dispositivo, tem suas dimensões diminuídas a cada ano. No início dos anos 1990, a área desse componente era de 3,6 mm². Atualmente, é de 0,1 mm². A estimativa é de que essa área diminua até 0,04 mm² entre 2007 e 2010. Também diminui de tamanho e aumenta a quantidade de transistores (ampliadores de sinais elétricos) em equipamentos eletrônicos. Em processadores 8086, introduzidos no mercado em 1978, o número de transistores era de 29 mil unidades. Hoje, com o Pentium 4, a quantidade atinge o 42 milhões de transistores.
Choque da temperatura
Os tamanhos reduzidos desses componentes trazem um outro problema: o superaquecimento das camadas de óxido de silício. A indústria produtora desses dispositivos lançou-se há alguns anos numa busca incessante para que se evite, no futuro, em capacitores diminutos, a perda de corrente elétrica nos circuitos integrados, abalando, assim, a confiabilidade dos computadores e demais equipamentos eletrônicos. Altas temperaturas não são problema para os filmes desenvolvidos pela equipe coordenada pelo professor Elson Longo. “Os sistemas são confiáveis porque o titanato de bário e chumbo não degrada nas temperaturas que prejudicam os dispositivos atuais. Outra vantagem do novo filme é a sua condição ferroelétrica, que leva vantagem sobre os ferromagnéticos, usados atualmente, porque possuem baixa voltagem de operação, além de menor tamanho, baixo peso e alta velocidade de escrita e leitura, processo que estoca, apaga e imprime os característicos sinais digitais 0 e 1 nas memórias de um computador. “Grandes grupos industriais dos Estados Unidos, Europa e Ásia estão investindo milhões de dólares na obtenção de filmes finos ferroelétricos porque eles são compatíveis e de fácil integração com a atual tecnologia de produção de circuitos integrados que usam chips de silício e de arseneto de gálio”, diz Longo.
Mas a grande vantagem industrial do novo filme é seu processo de fabricação. A partir de uma solução orgânica de citrato obtida de ácido cítrico (existente em frutas como laranja e limão) é preparado um composto sólido e com estrutura química polimérica (semelhante aos plásticos) que leva bário, chumbo e titânio como ingredientes. Esse composto é levado a um forno simples com temperatura de até 300º Celsius para a retirada do material orgânico (carbono, principalmente). “Em seguida, utilizamos um forno de microondas doméstico para orientar a cristalização [essencial para se obter uma boa constante dielétrica] e produzir o filme de titanato de bário e chumbo”, explica Longo. É a primeira vez que se obtém esse composto por essa técnica. “Talvez a Nasa (a agência espacial norte-americana) e os militares dos Estados Unidos já estejam usando esse titanato em chips que necessitem de um estágio de estabilidade avançado. Porém ele não é fabricado industrialmente, talvez esteja sendo produzido em laboratório por métodos caros e complexos, e sem a constante dielétrica que obtivemos”.
Ao contrário das salas ultralimpas, sem nenhum tipo de material contaminante em suspensão, que formam unidades fabris de alta tecnologia ao custo de muitos milhões de dólares, a produção dos filmes de titanato de bário e chumbo poderá ser feita em qualquer ambiente sem nenhum cuidado especial. “Pelos métodos utilizados hoje, esses materiais ficam prontos em cerca de 40 horas. No sistema que desenvolvemos, são duas horas de queima no forno comum e mais dez minutos no microondas para obter o titanato”, compara Longo. A FAPESP financiou a patente sobre esse sistema, depositada em julho de 2003, antes, portanto, da publicação, em 12 de janeiro deste ano, de artigo científico na revista Applied Physics Letters, do Instituto Americano de Física, assinado pelo professor Longo e mais os pesquisadores Fenelon Martinho Lima Pontes, Edson Leite, Geovane Pimenta Mambrini e Márcia Tsuyama Escote, da UFScar, e mais o professor José Arana Varela, da Unesp. O mesmo método foi usado para produzir outra inovação do grupo de pesquisadores: um eletrodo de niquelato de lantânio (LaNiO3). Esse material substitui a camada de platina no sanduíche que forma o chip.
Do mesmo modo verificado no titanato de bário, o niquelato foi produzido de um composto, agora formado por níquel e lantânio, que garante as propriedades estruturais do material antes de ir para o forno, ao contrário dos filmes atuais que passam por vários processos de deposição química ou física. Isso significa que a matriz, chamada de precursor polimérico, já possui a memória química que tem a estrutura necessária para se tornar um material semicondutor ou condutor. “Fazemos o material em forma de estrutura polimérica e depois, quando queimamos, fica somente o esqueleto, que é a placa condutora ou dielétrica”, diz Longo. “Outro ponto importante é que esses materiais são compatíveis entre si na estrutura química e molecular, facilitando a integração desses filmes num mesmo dispositivo que, normalmente, também possuem ouro como condutor, outro elemento compatível quimicamente.”
Bilhões mundiais
As novidades apresentadas pela equipe do professor Longo não devem diminuir de imediato a dependência brasileira de importação de semicondutores, que, em 2003, atingiu US$ 1,7 bilhão, segundo a Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee). Desse total, US$ 1,2 bilhão foi de compras de países do Sudeste Asiático, como Taiwan, Cingapura e Hong Kong. “O Brasil não tem condições sozinho de bancar fábricas de semicondutores que necessitam de alguns bilhões de dólares para serem instaladas”, diz Longo. “Mostramos com o nosso trabalho que o Brasil tem competência para desenvolver inovação, além de formar pessoal com ótima qualificação para esse setor.” A produção dos filmes de titanato de bário e chumbo e do eletrodo de niquelato de lantânio com a técnica desenvolvida pelo Cepid Cerâmica poderá ser realizada tanto no Brasil como no exterior, conforme a negociação, se resultar positiva, indicar.
Esse é um mercado bilionário que estuda muito bem os novos passos. Não é para menos. No ano passado, as vendas mundiais do setor de semicondutores atingiram US$ 166,4 bilhões, 18,3% maiores que em 2002, segundo a Associação da Indústria de Semicondutores (SIA) dos Estados Unidos. A previsão de crescimento de vendas, formulada por essa entidade para este ano, é de 19%. Um mercado atraente numa atividade, cada vez mais, fundamental.
Os projetos
1. Filmes Finos para Memória de Computadores; Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids); Coordenador Elson Longo – Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos; Investimento R$ 1.200.000,00 anual para todo o Cepid
2. Aparato e Método para Cristalização de Filmes Finos Utilizando Forno de Microondas Doméstico (nº 02/11415-2); Modalidade Programa de Apoio à Propriedade Intelectual; Coordenador Elson Longo – Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos; Investimento R$ 6.000,00