O Congresso Nacional derrubou um dos vetos impostos pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ao trecho da Lei Complementar nº 177 que proibia novos contingenciamentos dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), principal instrumento de fomento à ciência, tecnologia e inovação (CT&I) no Brasil. Nos últimos cinco anos, apenas uma fração dos valores disponíveis no fundo pôde ser executada. O restante era transferido para um fundo de reserva, ficando à disposição do governo para o pagamento da dívida pública e manutenção de superávit fiscal.
Com a derrubada do veto, daqui para a frente os recursos federais reservados para a ciência não poderão ser bloqueados. A notícia foi recebida com alívio pela comunidade científica e por parlamentares. “Esse é um dia histórico para a CT&I brasileira”, disse o senador Izalci Lucas (PSDB-DF), ao divulgar seu voto em sessão remota no Senado Federal na quarta-feira (17/03). “A derrubada do veto fortalecerá nosso sistema de ciência e tecnologia [C&T]. O Brasil precisa investir mais, a prioridade é a vacina contra o coronavírus. Não se faz vacina sem pesquisa, sem tecnologia, sem inovação. E, agora, nós teremos mais recursos para essa área tão importante para o desenvolvimento do país.”
A manobra foi sacramentada após acordo entre o colégio de líderes partidários e o governo federal, no âmbito do qual se decidiu pela derrubada do primeiro veto e a manutenção de um segundo, que impedia a liberação de R$ 4,2 bilhões bloqueados em 2020. Foram 71 votos pela derrubada do veto no Senado e 385 na Câmara dos Deputados. Ao todo, o sistema de C&T brasileiro deverá contar já neste ano com aproximadamente R$ 6 bilhões, sendo que R$ 2,3 bilhões poderão ser usados em operações de crédito e investimentos não reembolsáveis a empresas, instituições científicas e tecnológicas nacionais, públicas ou privadas, para a execução de projetos de desenvolvimento científico e tecnológico, aprimoramento de infraestrutura de pesquisa e formação de recursos humanos.
“Esse é um resultado extremamente importante para a comunidade científica, após vários meses de luta pela preservação do FNDCT. O Senado e a Câmara reafirmaram seu compromisso com a CT&I, o que já haviam feito no ano passado, quando aprovaram o projeto que deu origem à Lei Complementar nº 177 nas duas casas quase por aclamação”, destaca o físico Ildeu de Castro Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). “É importante agora ficar atento para que o governo não se valha de outros expedientes para impedir a liberação desses recursos, fundamentais nesse momento de pandemia.”
Bolsonaro vetou os dois trechos da lei em fins de janeiro ao sancionar o Projeto de Lei Complementar nº 135/20, que estabelecia mudanças no FNDCT. Aprovado no ano passado por ampla maioria na Câmara e no Senado, o projeto, de autoria do senador Lucas, transformou o FNDCT em um fundo financeiro cumulativo – o fundo hoje recebe receitas de diferentes setores da economia, mas tem natureza apenas contábil. Com a mudança, seus valores poderão ser alocados em fundos de investimento, gerando rendimentos que deverão ser usados no financiamento de atividades de CT&I. Outra novidade diz respeito ao reaproveitamento de saldos anuais não usados para reinvestimento, de modo que os recursos se acumulem ao longo dos anos – os valores não desembolsados hoje voltam para a União.
A imposição dos dois vetos ao PLP 135/20 seguiu uma recomendação da equipe econômica. Na decisão, publicada na edição de 13 de janeiro do Diário Oficial da União, o governo argumentou que, do modo como foram aprovados no Congresso, os dispositivos “contrariavam o interesse público”, pois colidiam com disposições legais existentes. Segundo essa visão, isso resultaria em um aumento não previsto das despesas e em um impacto significativo nas contas públicas, podendo levar ao descumprimento da Emenda Constitucional nº 95, que em 2016 instituiu por 20 anos o teto dos gastos públicos. O texto informava ainda que, ao obrigar a imediata execução dos recursos contingenciados em 2020, a medida forçaria o cancelamento de dotações das demais pastas já programadas para o exercício, atrapalhando a realização de projetos e ações planejadas pelas outras áreas do governo, elevando a rigidez orçamentária.
No entanto, alguns especialistas explicam que os dispositivos vetados não impactariam as contas do governo porque a dotação orçamentária prevista para o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) na proposta de lei orçamentária já computa o valor total arrecadado pelo FNDCT. Desse modo, o investimento feito com recursos do fundo não entraria no cálculo dos gastos que compõem o déficit primário, o que elimina o risco de violação do teto.
Diante da decisão do governo, representantes da comunidade científica e de diferentes setores da indústria logo começaram as articulações para derrubar os vetos. “Temia-se que a análise ficasse para abril ou maio, após o início do ano fiscal”, comenta Celso Pansera, ex-deputado e ex-ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações. “A lei, nesse caso, valeria à luz das alterações feitas pelo governo, e, mesmo com a derrubada dos vetos, as medidas só entrariam em vigor a partir do ano que vem.” Ele explica que, com isso, o esforço maior passou a se concentrar na derrubada do veto mais importante, o que impedia novos contingenciamentos do FNDCT no futuro. “Seria muito difícil derrubar o veto para desbloquear os recursos do ano anterior, de modo que concordamos com esse encaminhamento.”
Paralelamente, em março, a SBPC lançou um abaixo-assinado com outras entidades, como a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), contra o contingenciamento de verbas do fundo. O documento angariou mais de 130 mil assinaturas. No dia 16 de março, a SBPC o entregou ao primeiro vice-presidente do Senado, o senador Veneziano Vital do Rêgo (PSB-PB). Desde o início deste ano, a comunidade vem se articulando com os parlamentares para sensibilizá-los sobre a importância do FNDCT. “O desbloqueio dos recursos do fundo é fundamental para a manutenção dos programas nacionais de pós-graduação e o financiamento de bolsas de estudo e pesquisa”, alerta Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC).
Também em março, a SBPC divulgou um manifesto assinado por 11 ex-ministros de Ciência, Tecnologia e Inovações, entre eles José Goldemberg, Aloizio Mercadante, Marco Antonio Raupp e Aldo Rebelo, que ocuparam o cargo em diferentes momentos, entre 1991 e 2016, chamando a atenção para a necessidade de garantir recursos para a CT&I no Brasil em um momento de crise sanitária. “Sem ciência não há inovação. Sem inovação não há desenvolvimento”, dizia o texto. “O conhecimento científico e a educação devem ser colocados no centro das questões nacionais e revalorizados como alavancas para o crescimento econômico, reindustrialização e redução da pobreza.”
Na avaliação de Fernando Peregrino, presidente do Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica (Confies), as circunstâncias atuais evidenciaram a importância da manutenção de recursos governamentais para projetos estratégicos e foram fundamentais para convencer os parlamentares a derrubarem o veto. “O agravamento da pandemia no país reforçou o papel estratégico da CT&I na resolução de problemas de saúde e ajudou a sensibilizar os parlamentares sobre a importância do FNDCT, contendo a fuga de alguns votos e ajudando a angariar outros.”
Um ponto importante da articulação em prol do FNDCT envolveu a capacidade das entidades representativas do setor acadêmico e industrial de dialogar com parlamentares de todas as correntes ideológicas. “Abraçamos todos, com um diálogo muito racional e construtivo. As perspectivas para o Brasil, com isso, tendem a melhorar, sobretudo no que se refere ao combate à pandemia”, avalia Peregrino. A expectativa é que parte dos recursos seja liberada para financiar o desenvolvimento de vacinas brasileiras.
A edição 302, de abril de 2021, traz uma versão ampliada desta reportagem
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