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Imunologia

Contra a barriga-d’água

Equipe de Minas apresenta novas perspectivas para uma vacina contra a esquistossomose

EDUARDO CESARNo Brasil, taxas elevadas de esquistossomose: desatenção com águas contaminadasEDUARDO CESAR

Em 1986, ao voltar ao Brasil com o título de doutor pela Universidade John Hopkins, Estados Unidos, Rodrigo Correa-Oliveira poderia ter preferido viver entocado em um dos laboratórios da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Belo Horizonte. Mas não. O biólogo mineiro que pode agora estar na pista de uma vacina contra uma doença que aflige o mundo subdesenvolvido tirou então a botina e o chapéu do fundo do armário, pegou o ônibus e dois dias depois desceu no Vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais pobres de Minas Gerais.

Durante semanas, disposto a entender melhor os mecanismos de transmissão da esquistossomose, percorreu as estradas poeirentas de Padre Paraíso, de Itaobim e de outros municípios que mal aparecem no mapa. Conversou com os moradores das comunidades rurais e revirou com uma pá emprestada o matagal das margens de córregos e lagos em busca de caramujos transmissores do verme Schistosoma mansoni, o causador da doença também chamada de barriga-d’água por causar um inchaço descomunal do fígado e do baço. Comum no norte de Minas, a esquistossomose acomete aproximadamente 12 milhões de pessoas no Brasil – no mundo todo cerca de 200 milhões de pessoas sofrem dessa enfermidade típica dos países menos desenvolvidos.

Vinte anos mais tarde, ainda com o hábito de viajar ao menos uma vez por mês para o Vale do Jequitinhonha ou para o Vale do Mucuri, Oliveira e pesquisadores da Austrália e dos Estados Unidos demonstraram que duas proteínas da superfície do Schistosoma mansoni acionaram os mecanismos de defesa do organismo de camundongos contra o verme. Se em testes com seres humanos também surgirem resultados positivos, essas proteínas – chamadas transpaninas – podem se tornar candidatas a uma vacina contra a esquistossomose, a ser adotada em conjunto com outras medidas de combate à doença, principalmente a ampliação da rede de esgotos e de água tratada, já que o verme de até 12 milímetros de comprimento por 0,4 de diâmetro se espalha por meio de fezes humanas contaminadas.

Segundo Oliveira, uma vacina se justifica porque a doença já se espalhou por vastas áreas do país, dificultando campanhas de eliminação de seus transmissores, os caramujos do gênero Biomphalaria. Além disso, o Schistosoma começa a mostrar resistência aos dois vermífugos mais usados, a oxamniquina e o praziquantel. Outro problema: “O tratamento por si só”, diz ele, “não é suficiente para evitar a reinfecção, principalmente em crianças”. Com abordagens distintas, grupos da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto Butantan trabalham em outras alternativas.

Resistência natural
Esse novo caminho rumo a uma vacina surgiu de uma hipótese que Oliveira formulou em 1985 depois de ler um estudo sobre pessoas cujo organismo apresentava mecanismos naturais de defesa contra a filariose, outra doença típica dos países pobres que faz as pernas incharem tremendamente. Como tanto a elefantíase quanto a esquistossomose são causadas por vermes do grupo dos helmintos, ele imaginou que o corpo humano poderia pôr em ação formas naturais de escapar também ao Schistosoma. O biólogo que começou a estudar imunologia em 1978, ainda nos tempos de graduação, saiu então pelos confins de Minas à procura de pessoas que tivessem entrado em contato com esse verme mas não apresentassem nenhum sintoma da doença. E as encontrou.

Em laboratório, depois de analisar os tipos e quantidades de anticorpos do sangue dessas pessoas, Oliveira descobriu que as respostas que apresentavam eram bastante diferentes das registradas após o tratamento com os medicamentos que matavam os vermes. Como ele descreve em 1989 na revista Transactions of the Royal Society of Tropical Medicine and Hygiene, o organismo das pessoas resistentes à esquistossomose combatia o verme por meio de uma intensa – e quase exclusiva – produção de anticorpos, acionados por moléculas de comunicação como as imunoglobulinas E e o interferon gama.

Foi também em 1989 que Oliveira encontrou uma das proteínas capazes de acionar a fenomenal produção de anticorpos nas pessoas que viviam entre caramujos contaminados. Elas também se contaminavam, mas sem saber conseguiam se livrar do verme. Mas essa proteína, a paramiosina, não era lá muito amigável em laboratório, e os pesquisadores não conseguiram avançar. Correram anos até que o biólogo de Minas propôs a Alex Loukas, do Instituto de Pesquisa Médica Queensland, da Austrália, que trabalhassem em conjunto para saber se outras proteínas, as transpaninas, poderiam intensificar a produção de anticorpos. Desta vez deu certo. De acordo com o estudo publicado em 18 de junho na Nature Medicine, do qual também participou Jeffrey Bethony, da Universidade George Washington, Estados Unidos, em indivíduos naturalmente resistentes a transpanina 2 (TSP-2) é facilmente reconhecida pelas imunoglobulinas. Nada acontece, porém, em pessoas nas quais a infestação progride. Em camundongos, a TSP-2 disparou uma série de respostas que levaram a uma redução de até 64% na quantidade de vermes; com outra transpanina, a TSP-1, caiu à metade a quantidade de ovos de Schistosoma. Outra informação animadora é que as duas transpaninas são recombinantes: podem ser produzidas em quantidades elevadas por meio de bactérias e depois purificadas.

Contra o amarelão
Oliveira e toda a equipe com que trabalhou sabem que é só o começo. Ainda é preciso mostrar, por meio de testes que devem ser feitos ainda este ano diretamente em sangue de seres humanos, que esses resultados podem ser repetidos – ou mesmo melhorados – e que vale a pena investir dinheiro e tempo nessa linha de pesquisa. Depois vem a etapa tecnológica, começando com o chamado escalonamento, por meio da qual se tenta ampliar em centenas de vezes a produção da potencial vacina. Essa não é, porém, uma estrada nova para Oliveira, que ganhou experiência dedicando-se ao desenvolvimento de outra vacina – contra a ancilostomose ou amarelão, outra doença de países onde ainda vivem pessoas que andam descalças em ambientes sujos.

Vencida a etapa laboratorial, a equipe da Fiocruz de Minas trabalha atualmente com grupos do Sabin Vaccine Institute, da Universidade George Washington e do Instituto Butantan na preparação de lotes experimentais de uma proteína que deverá em seguida ser testada em seres humanos com o propósito de eliminar os vermes Necator americanus e Ancylostoma duodenale. Esses parasitas causam anemias profundas em cerca de 800 milhões de pessoas no mundo por danificarem a parede do intestino e provocarem uma perda de até um copo de sangue por dia.

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