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Saúde pública

Contra-ataque à febre amarela

Médicos identificam indicadores da gravidade da doença, detalham seu impacto no organismo, aprimoram as formas de tratamento e reduzem a mortalidade de 67% para 5%

A troca de plasma é uma das principais medidas para tratar pessoas com febre amarela em estado grave

Léo Ramos Chaves

Em janeiro de 2018, quando doentes com febre amarela começaram a chegar um após outro para serem tratados no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FM-USP) e no Instituto de Infectologia Emílio Ribas (IIER), os médicos não sabiam o que fazer diante de uma doença que reaparecia com força na capital paulista depois de décadas.

A progressão da febre amarela era muito rápida. Os pacientes chegavam acordados e conversando, em seis horas respiravam com dificuldade, em 12 horas entravam em coma e em 24 horas morriam. No estágio final da doença, havia uma intensa eliminação de sangue pela boca, pelo nariz, pelas fezes e pelos chamados sítios de punção, orifícios perfurados por agulhas para aplicação de soro ou medicamentos.

Quase um ano e meio depois, os médicos apresentaram o que aprenderam com a epidemia mais recente de febre amarela silvestre no estado de São Paulo em cinco artigos científicos publicados em maio e dois em julho. Três deles tratam de indicadores da gravidade da febre amarela. A partir deles, as equipes médicas podem fazer a triagem dos pacientes com mais precisão, encaminhando os que merecem mais atenção para internação e para as unidades de terapia intensiva (UTIs).

Entrevista: Ho Yeh Li
     

Os danos do vírus no organismo, antes conhecidos apenas por meio do exame de macacos ou de poucos casos de pessoas que morreram por causa da doença, tornaram-se mais conhecidos e se mostraram mais amplos do que se imaginava. Além de causar lesões no fígado, no baço, nos gânglios linfáticos e nos rins, como já havia sido descrito por equipes dos institutos Evandro Chagas (IEC), de Belém, e Adolfo Lutz, de São Paulo, a infecção viral, como agora ficou claro, permite a ação de bactérias e a liberação de toxinas que causam danos aos pulmões, ao intestino e ao pâncreas. “O vírus da febre amarela induz sepse [infecção generalizada]”, afirma o patologista Amaro Nunes Duarte Neto, médico assistente da USP, com base em autópsias de 78 pessoas que morreram em consequência da doença.

As conclusões desses trabalhos serviram para aprimorar as formas de tratamento, que antes consistiam apenas em medidas para aliviar os sintomas, com reposição de água e sangue. As descobertas ajudaram a reduzir a mortalidade: de janeiro a junho deste ano, das 39 pessoas com a doença atendidas no HC, apenas duas morreram, o que representa uma taxa de letalidade de 5%. No ano passado, a letalidade foi de 27,6% no IIER, que atendeu os casos menos graves, e de 67% no HC, com os casos mais graves.

A febre amarela é causada por um vírus do gênero Flavivirus, o mesmo da dengue e da zika. Em uma das duas formas da doença, a silvestre, o vírus chega às pessoas por meio de picadas das fêmeas dos mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes, que se tornam potenciais transmissores quando picam macacos infectados. Os macacos – principalmente bugios (Alouatta spp.), saguis (Callithrix penicillata) e macacos-prego (Sapajus nigritus e S. libidinosus) – são chamados de amplificadores dos vírus, por facilitarem sua multiplicação e transmissão. Os seres humanos, definidos como hospedeiros acidentais, podem ser infectados ao entrar em áreas de mata com animais infectados e mosquitos transmissores. A febre amarela urbana, a outra forma da doença, é causada pelo mesmo vírus, mas transmitida pelos mosquitos do gênero Aedes e o ser humano é que cumpre o papel de hospedeiro e amplificador da doença, carregando o vírus que, por meio dos insetos que picaram infectados, pode chegar a outras pessoas. Não há casos registrados de febre amarela urbana no Brasil desde 1942.

Definida como uma doença viral aguda, já que seus sintomas aparecem e se agravam em poucos dias, a febre amarela causa inicialmente febre, dores musculares, dor de cabeça, perda de apetite, prostração, náusea e vômito, que aparecem à medida que o vírus causador da doença se instala no organismo. Os sintomas iniciais desaparecem geralmente em quatro dias e as pessoas infectadas nem sabem que se contaminaram, já que os primeiros sinais podem ser confundidos com os de outras doenças, como a dengue, ou um mal-estar passageiro. De 10% a 15% dos casos evoluem para a forma grave e podem ser fatais: a pele e os olhos ficam amarelados e a urina escura, a febre reaparece, as dores abdominais e os vômitos se intensificam, começam as diarreias e as hemorragias. A morte pode chegar em até 11 dias após os primeiros sintomas.

A epidemia recente de febre amarela silvestre foi a mais intensa já registrada no Brasil. A Organização Mundial da Saúde registrou 778 casos em seres humanos no país, com 262 mortes, de 2016 até o início de 2017. O total passou para 1.376 casos e 483 mortes de 2017 até o final de 2018 – e pela primeira vez o vírus chegou a regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo.

Em 2018, o Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE) da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP) registrou 505 casos, com 176 mortes, resultando em uma letalidade de 35%. De janeiro a junho de 2019, houve 66 casos e 12 mortes, em todo o estado, de acordo com o Boletim Epidemiológico da Febre Amarela de 3 de junho.

CDC Public Health Image Library O vírus da febre amarela ampliado 234 mil vezesCDC Public Health Image Library

Nos últimos meses, o vírus deslocou-se para o sul. O Boletim Epidemiológico de 13 de junho da Secretaria de Estado da Saúde do Paraná registrou 17 pessoas com a doença e uma morte, de um morador de Morretes, da região litorânea, de julho de 2018 a junho deste ano. O caso mais recente de febre amarela foi de um morador de Quatro Barras, na Região Metropolitana de Curitiba.

A vacina, produzida a partir de vírus atenuado, é a forma mais eficaz de prevenção contra a doença, que, historicamente, reaparece em média a cada sete anos, à medida que as populações de macacos que servem de hospedeiros do vírus se refazem, reiniciando o ciclo de propagação do vírus.

Indicadores do risco de morrer por febre amarela
Dois estudos, um na Lancet Infectious Diseases e outro na American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, reiteraram e detalharam a importância de dois indicadores conhecidos há décadas: a idade do paciente e o nível da enzima aspartato aminotransferase (AST), cuja elevação reflete os danos produzidos pelo vírus no fígado. No primeiro estudo, o risco de morrer por febre amarela aumentou 28% a cada cinco anos de vida e, no segundo, 10% a cada ano, acentuando-se a partir dos 50 anos.

Do mesmo modo, de acordo com o artigo da Lancet, níveis de AST acima de 3.500 unidades por litro (U/L) reduziram a chance de sobrevivência a 50% – o valor normal dessa enzima é de até 40 U/L. O outro estudo identificou um limite menor de AST, de 1.841 U/L, para o risco de morte, com base na análise da evolução do estado de saúde de 72 pacientes atendidos no IIER, em estado menos grave que os do HC.

A equipe de pesquisadores responsável pelo artigo na Lancet identificou outros dois indicadores da gravidade da infecção pelo vírus da febre amarela. O primeiro é a taxa de neutrófilos, um tipo de células brancas do sangue. “Foi uma descoberta inesperada”, comenta o infectologista Esper Kallas, da FM-USP, principal autor desse trabalho, fundamentado na análise das informações sobre 51 pacientes atendidos no HC e 25 no IIER. Segundo ele, taxas acima de 4 mil neutrófilos por mililitro (mL), embora dentro da faixa considerada normal (1.800 a 7.500 por mL), se mostraram associadas ao risco mais alto de morte.

Níveis mais altos de neutrófilos, segundo Kallas, parecem refletir o esforço do organismo em combater infecções bacterianas secundárias, que emergem à medida que o fígado danificado pelo vírus deixa de filtrar o sangue com microrganismos e toxinas que vêm do intestino, ou mesmo ser um indicador da resposta exacerbada do organismo contra o vírus.

O segundo indicador da gravidade da doença é a quantidade de vírus em circulação no organismo. Nem sempre essa relação é direta: ela determina a gravidade de outra doença viral, a dengue, mas não influencia a evolução da zika, também viral. No caso da febre amarela, uma contagem de vírus acima de 126 mil cópias por mL de sangue agrava severamente as possibilidades de sobrevivência.

De acordo com esse trabalho, todos os 11 pacientes com neutrófilos e carga viral acima desses patamares morreram. A mortalidade foi de 29% entre os 14 doentes que apresentaram a taxa de neutrófilos acima de 4 mil por mL e de 38% entre os 24 que tinham a carga viral alta. Para Kallas, a associação entre a alta carga viral e a gravidade da doença justifica a busca por antivirais que possam ser usados para reverter o quadro clínico.

Liderado pela médica epidemiologista Ana Freitas Ribeiro, coordenadora do Serviço de Epidemiologia do IIER e professora da pós-graduação da Uninove, esse trabalho identificou outro indicador da gravidade da febre amarela, a concentração de creatinina, resíduo do metabolismo muscular filtrado pelos rins – o aumento dos níveis dessa substância no sangue indica insuficiência renal. O valor normal é de até 1,2 miligrama por decilitro (mg/dL) para mulheres e 1,3 mg/dL para homens.

Valores de creatinina maiores que 1,3 mg/dL implicaram maior risco de morte por febre amarela. Como as variáveis se somam, o risco de morte de uma pessoa de 40 anos de idade com níveis de creatinina de 2,4 mg/dL e AST de 3 mil U/L ao chegar ao hospital seria de 10,2%, enquanto o de uma pessoa com 60 anos, com os mesmos valores de creatinina e AST, seria de 45,7%.

Em pacientes internados em UTI, o risco de morte pode ser avaliado também por meio de outros dois indicadores: taxas de uma enzima produzida pelo pâncreas, a lipase, acima de 147,5 U/L (o normal é até 50 U/L) e do fator de coagulação V abaixo de 56,5%, ainda dentro do valor considerado normal (de 50% a 70%). O estudo que levou a essas conclusões foi feito com 94 pessoas tratadas na UTI do HC, coordenado pela infectologista Luciana Vilas Boas Casadio, da FM-USP, e publicado na revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. “A carga viral já estava alta em todos os pacientes desse grupo”, diz a médica infectologista Yeh-Li Ho, coordenadora da unidade de terapia intensiva (UTI) de moléstias infecciosas do HC da USP e uma das autoras desse estudo.

“Já se suspeitava de possíveis alterações nos níveis de lipase pancreática, mas infelizmente o pâncreas era pouco avaliado, mesmo em casos fatais de febre amarela, o que dificultou a obtenção de dados mais consistentes”, comenta o virologista Pedro Vasconcelos, ex-diretor do IEC e professor na Universidade do Estado do Pará, que não participou desses trabalhos. Do mesmo modo, segundo ele, desde a década de 1970, durante a epidemia de febre amarela em Goiás, avaliava-se a variação do fator V nos casos graves dessa doença, mas os estudos não prosseguiram. “Esses preditores de prognóstico, associados a outros, constituem poderosos indicadores para guiar as equipes das UTIs”, diz ele.

O patologista Juarez Quaresma, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) e pesquisador do IEC, que também não participou desses artigos mais recentes sobre febre amarela, reconhece a importância dos novos indicadores e acrescenta: “No futuro, os protocolos de atendimento a pacientes em estado grave deveriam incluir marcadores inflamatórios, como a interleucina 10 e o TNF-α [fator de necrose tumoral alfa], que podem induzir lesões nos vasos sanguíneos que poderiam contribuir para a hemorragia observada nos pacientes graves”.

“A epidemia foi uma oportunidade única de entender melhor uma doença que conhecíamos apenas por relatos de casos esparsos”, diz Ribeiro. De janeiro a abril de 2018, o IIER recebeu 76 pessoas com o diagnóstico confirmado de febre amarela e o HC, 97, que moravam em Mairiporã, Atibaia, Cotia, Nazaré Paulista, Guarulhos, cidades da Baixada Santista, Registro e São Bernardo do Campo.

Ao analisar os casos tratados no IIER, Ribeiro, com sua equipe, verificou que as pessoas com febre amarela poderiam piorar mais facilmente se tivessem outras doenças – as chamadas comorbidades. “Muitos eram usuários ou ex-usuários de drogas”, ela observou. Pouco mais da metade (52%) dos pacientes que morreram e 27,5% dos que sobreviveram consumia álcool ou drogas com frequência. A maioria (80,6%) era homem, com idade média de 42 anos e mais de oito anos de escolaridade (55,9%).

Em síntese, observa a médica do IIER, “quanto menor a idade e melhor o estado geral de saúde, maior a chance de sobreviver à febre amarela”. No HC, os pacientes com diabetes apresentaram uma mortalidade de 80%, como relatado em um artigo publicado na revista científica Journal of Travel Medicine.

Em busca dos prováveis locais de infecção, Ribeiro lembra-se de ter perguntado a um músico que morava em Atibaia que não havia tomado vacina contra a febre amarela e estava no pronto-socorro do IIER: “O senhor vai muito a matas?”. A resposta: “Doutora, o meu quintal é a Mata Atlântica”. O homem, infectado, morreu em dois dias.

A investigação sobre as formas de contágio indicou falhas na campanha de vacinação. Foi o caso, por exemplo, de um homem de 60 anos que morava em Mairiporã, usava uma bomba contra asma – aparelho que libera medicamentos para aliviar os sintomas – e foi a vários postos de saúde para tomar a vacina. Não lhe aplicaram, por usar a bomba, que na verdade não seria uma restrição. “A equipe dos postos de vacinação ficou com medo de dar vacina, mas o risco de o homem contrair a doença era maior que o de efeitos colaterais indesejados”, conta Ribeiro. Segundo ela, casos como esse eram relatados imediatamente para as equipes que cuidavam da vacinação. O homem também morreu.

Ribeiro relata um achado inédito: a detecção do vírus da febre amarela no leite materno, coletado de uma mulher que amamentava um bebê de 6 meses. A mulher de 33 anos, que trabalhava como caseira em uma chácara no bairro do Tremembé, na zona norte da cidade de São Paulo, não havia tomado a vacina por estar amamentando e contraiu febre amarela. O bebê teve febre, que desapareceu em poucos dias, sem nenhum sinal específico da doença. “Ainda não conhecemos o risco de transmissão do vírus pelo leite materno”, reconhece a médica do IIER. A mulher se recuperou e voltou para casa.

Reprodução Observations sur la fièvre jaune, faites à Cadix, en 1819 / Etienne Pariset and André Mazet (Paris, 1820) Ilustração de 1820 retrata os quatro estágios de desenvolvimento da febre amarela na face de um mesmo indivíduoReprodução Observations sur la fièvre jaune, faites à Cadix, en 1819 / Etienne Pariset and André Mazet (Paris, 1820)

A devastação do vírus no organismo
“Sabíamos muito pouco sobre a ação do vírus da febre amarela no organismo humano”, comenta o patologista Amaro Nunes Duarte Neto, médico assistente da USP. Ele coordenou as 78 autópsias de pacientes com febre amarela realizadas no Serviço de Verificação de Óbitos da USP

As autópsias registraram uma intensa desorganização do sistema de defesas do organismo. Ao se instalar no baço e nos gânglios linfáticos, o vírus causa uma redução das populações de linfócitos, um tipo de célula branca do sangue; na medula óssea, o agente causador da febre amarela retarda a maturação das células de defesa. “Pelo menos no fígado”, diz Duarte Neto, “o vírus manipula o sistema imune e induz produção de citocinas anti-inflamatórias como a interleucina 10 e o TGF [fator de transformação do crescimento] beta, que suprime as defesas do organismo”.

Em um artigo publicado na Histopathology, Amaro e outros pesquisadores da USP apresentaram um fenômeno que já tinha sido observado em dengue, mas ainda não na febre amarela. Em consequência da intensa ativação do sistema de defesas, os macrófagos, um tipo de célula que normalmente inicia a resposta contra microrganismos, envolve e destrói linfócitos e células vermelhas do sangue, a chamada hemofagocitose.

Além dos danos diretos no fígado, baço, linfonodos, medula óssea, cérebro e coração, o vírus abre caminho para infecções secundárias. “A destruição do fígado cessa a filtração de bactérias e toxinas que vêm do intestino pelo sangue e, desse modo, caem diretamente na corrente sanguínea e se espalham pelo organismo”, diz ele. A amônia, um dos resíduos do metabolismo bacteriano, que deixa de ser retida pelo fígado, pode atacar os neurônios e outras células do sistema nervoso central e causar a chamada encefalopatia hepática.

“A alteração da microcirculação sanguínea leva à lesão pulmonar e pode ser induzida tanto por citocinas quanto por infecções bacterianas secundárias”, comenta Quaresma, com base em estudos feitos por ele na USP e no IEC desde 2003. “Os danos nos pulmões são possivelmente a causa imediata da morte dos pacientes em estado grave.”

Das 78 autópsias realizadas na USP, 17 foram feitas primeiramente por meio de uma técnica minimamente invasiva, guiada por ultrassom, com a retirada de amostras de fígado, coração, pulmão e rim, como parte do projeto Plataforma de Imagem na Sala de Autópsia, coordenado por Paulo Saldiva. Segundo Duarte Neto, a autópsia minimamente invasiva e a convencional apresentaram os mesmos resultados, indicando a possibilidade de simplificação dos procedimentos de confirmação de diagnóstico em pessoas que morreram com febre amarela, como detalhado em um artigo publicado em julho na PLOS Neglected Tropical Diseases.

Novas estratégias de tratamento
De janeiro a junho de 2018, sete pessoas tratadas no HC receberam um fígado novo como forma de deter o avanço do vírus da febre amarela. Quatro morreram por causa de hemorragias intensas e três sobreviveram. O cirurgião da FM-USP Luiz Augusto Carneiro D’Albuquerque, chefe da Divisão de Transplantes de Fígado e Órgãos do Aparelho Digestivo do HC, considerou relevante a taxa de sucesso, de 43%, por se tratar de uma aplicação experimental desse tipo de cirurgia.

Esse procedimento nunca havia sido tentado antes em pessoas com febre amarela por duas razões. A primeira é que os pacientes geralmente morriam antes da chegada do órgão a ser transplantado, como acontecera em janeiro de 2017. A segunda é que os médicos temiam o risco de reinfecção, já que se tratava de uma doença sistêmica, e o vírus poderia atacar o fígado transplantado. Se fosse viável, porém, pensavam os médicos, o transplante seria uma estratégia de tratamento para os casos mais graves.

Confirmando a suspeita de infecção do fígado transplantado, as autópsias indicaram que o vírus da febre amarela migrou de outros órgãos e se instalou no fígado novo de cada uma das quatro pessoas que morreram depois do transplante, como descrito no artigo da Histopathology. “O vírus da febre amarela não é como o das hepatites, que se instala só no fígado. O fígado novo não resolveu a infecção viral em outros órgãos”, relata Duarte Neto.

“Como os pacientes morreram em até 13 horas após o transplante, a infecção pelo vírus da febre amarela foi surpreendentemente rápida”, observou Vasconcelos. “Parece que existem locais em que o vírus da febre amarela se mantém fora do alcance da resposta imune e serve de fonte de infecção para o fígado transplantado.”

Em setembro do ano passado, quando os casos de febre amarela cessaram temporariamente, as equipes do Departamento de Moléstias Infecciosas e de Hematologia do HC se reuniram para avaliar os tratamentos adotados nos meses anteriores. Aprimoradas, as medidas foram aplicadas a partir de janeiro deste ano e ajudaram a reduzir a mortalidade. Das 39 pessoas com febre amarela vindas do Vale do Ribeira, sul do estado de São Paulo, onde a epidemia se concentrou em 2019, que chegaram ao HC até maio deste ano, apenas duas morreram.

A estratégia de tratamento adotada no HC da USP consiste principalmente em troca de plasma, a porção líquida do sangue, para reduzir a carga viral e a intensidade da resposta do sistema de defesa do organismo, e repor os fatores de coagulação, e, desse modo, evitar as hemorragias, como detalhado no artigo da Journal of Travel Medicine. Inspirada em médicos do Rio, que haviam adotado essa medida para tratar pacientes com febre amarela, a troca de plasma se mostrou uma técnica de custos menores, mais simples e com menos efeitos colaterais que o transplante de fígado. Assim, à medida que os pacientes sobreviviam, o transplante deixou de ser indicado.

Em 2019, as equipes da UTI de moléstias infecciosas e da hematologia do HC da USP aumentaram a periodicidade da troca de plasma: não mais uma vez por dia, como no ano passado, com a aplicação de cerca de 30 bolsas de plasma, mas duas vezes por dia, com metade do volume por vez. “Fazer esse procedimento com frequência maior evitou que os pacientes tivessem hemorragias entre uma troca e outra, como antes”, observou a infectologista Yeh-Li Ho. Além disso, segundo ela, foi possível atender mais pacientes, já que a duração do procedimento era menor.

Outra mudança: em vez de parar a troca de plasma após três dias, as equipes médicas cessaram o procedimento gradativamente, “até o fígado restaurar suas funções”, comenta a médica. Como resultado, diz Yeh-Li Ho, “conseguimos cortar a evolução da doença e reduzir a letalidade”. Um dos sinais de que essa estratégia havia funcionado foi a normalização dos níveis de lipase, evitando o agravamento da pancreatite. “Neste ano não tivemos nenhum caso de pancreatite grave em pacientes com febre amarela.”

No início deste ano, sob a coordenação do médico intensivista Jaques Sztajnbok, uma equipe do IIER empregou a troca de plasma para tratar um homem de 43 anos, morador do Vale do Ribeira, depois de as medidas anteriores, que incluíram hemodiálise, transfusão de células vermelhas do sangue e infusão de plasma, não terem contido o sangramento contínuo e disfunção múltipla de órgãos. A estratégia de troca de plasma uma vez por dia funcionou: após o terceiro dia, o sangramento cessou e o paciente se recuperou, como detalhado em um artigo publicado em julho na revista científica American Journal of Tropical Medicine and Hygiene.

No HC da USP, juntamente com a troca de plasma foi empregada também a hemodiálise – filtragem do sangue – intermitente ou contínua, para compensar os danos do vírus no rim. As equipes do HC concluíram que esse procedimento deve ser iniciado quando se nota a acidose metabólica, detectada pelos níveis abaixo do normal de bicarbonato no sangue, e não de acordo com a alta da ureia, o critério tradicional.


Como medida complementar, adotou-se o uso de três tipos de medicamentos: anticonvulsivantes para evitar o agravamento dos eventuais danos causados pelo vírus no cérebro, indicados quando a amônia, eliminada pelo fígado atingido, começasse a subir para níveis acima do normal; antibióticos, não mais de modo preventivo, como no passado, mas apenas quando necessário; e redutores da acidez gástrica. “Todos os pacientes que passaram por esses procedimentos se recuperaram bem”, observa Yeh-Li Ho.

A infectologista também verificou que se trata de uma doença enganadora, porque os pacientes que pareciam bem, animados e conversando, poderiam estar com os níveis de enzimas do fígado e outros indicadores anormais. Segundo ela, por se tratar de uma doença de evolução rápida, a febre amarela distingue-se de outras hepatites virais fulminantes e exige acompanhamento contínuo: “Fazer exames laboratoriais duas vezes por dia é fundamental para planejar o tratamento”.

Paulo Cesar Alexandrowitsch/ HC-FM-USP Hemodiálise, usada no tratamento de pessoas com febre amarela no HC da USPPaulo Cesar Alexandrowitsch/ HC-FM-USP

Ho atribui a redução da mortalidade por febre amarela neste ano também a outra mudança: os moradores do Vale do Ribeira atendidos no hospital regional de Pariquera-Açu, a 220 quilômetros da capital, eram enviados para o HC e começavam a ser tratados quando apresentavam os primeiros sinais da doença – febre, dores no corpo, náusea e icterícia –, sem esperar que os sintomas se agravassem.

Para Kallas, é preciso examinar a redução da mortalidade com cautela. “A melhoria no tratamento ajudou, mas ainda não sabemos se os casos deste ano foram mais brandos que os do ano passado”, diz.

Segundo Yer-Li Ho, médicos de São Paulo, do Rio e de Minas Gerais que participaram do atendimento a pacientes com febre amarela discutiram as novas estratégias de tratamento no início deste ano, com base na experiência dos dois hospitais paulistas que receberam o maior número de casos. Em seguida, a pedido da Organização Pan-americana de Saúde (Opas), enviaram ao Ministério da Saúde uma proposta de tratamento que, se aprovada, poderia ser aplicada em todo o país.

Médicos abatidos pelo vírus
Logo no início do primeiro surto de que se tem notícia no Brasil, o único médico do Recife, cujo nome não foi registrado, morreu acometido pelos efeitos do vírus em seu organismo. Ocorrido na capital pernambucana no final de 1685, causou a morte de cerca de 600 pessoas nas duas primeiras semanas. O vírus foi provavelmente transportado por marinheiros de um barco que vinha de São Tomé, na África, com escala em São Domingos, nas Antilhas, onde a doença já tinha se espalhado.

Em 1899, durante o surto mais violento de febre amarela em Campinas, que matou cerca de 5 mil dos 15 mil moradores, morreu João Guilherme da Costa Aguiar, aos 42 anos. Nascido em Itu e formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, foi um dos quatro médicos que permaneceram na cidade para atender os doentes – outros 22 foram embora junto com os moradores ricos que fugiam da cidade.

O oncologista paulistano Drauzio Varella contraiu febre amarela em 2004, durante uma viagem de pesquisa ao rio Negro, na Amazônia. Três dias depois, um domingo, de volta à cidade de São Paulo, começou a sentir febre, que chegou a 40 graus, calafrios e dor nas costas. Os colegas médicos o internaram no hospital e os sucessivos exames de sangue indicaram uma hepatite severa e o diagnóstico de febre amarela.

“Ele teve coma hepático, estava muito mal, e achava que ia morrer”, rememora Kallas, que coordenou a equipe de médicos, ao lado do hepatologista Flair Carrilho, professor da FM-USP. Varella, então com 61 anos, teve também pneumonia nos dois pulmões, insuficiência renal e queda dos fatores de coagulação – enfim, “todos os sintomas, exceto hemorragia”, conta Kallas. Segundo ele, apenas quatro pessoas com febre amarela foram hospitalizadas no Brasil em 2004. Varella foi o único que sobreviveu. Aos poucos os exames de sangue indicaram uma lenta recuperação, que demorou meses para se completar.

Kallas atribuiu o resultado, primeiramente, à sorte. Além disso, “todos que trataram dele se dedicaram muito e trocavam ideias a todo momento”, diz ele. Pesaram também seus hábitos de vida saudáveis, que incluíam corridas constantes – no domingo anterior à internação tinha corrido 18 quilômetros e subido pela escada os 14 andares do prédio em que morava. “Se tivesse outras doenças”, diz Kallas, “certamente a recuperação seria bem mais difícil.”

Restabelecido, Varella reconheceu que foi um erro não ter tomado uma dose de reforço da vacina contra a febre amarela ao viajar para uma área de risco de transmissão do vírus causador da doença. Ele descreve esse episódio no livro O médico doente (Companhia das Letras, 2007).

Projetos
1. Metagenômica viral de dengue, Chikungunya e Zika vírus: acompanhar, explicar e prever a transmissão e distribuição espaço-temporal no Brasil (nº 16/01735-2); Modalidade auxílio regular a projeto de pesquisa; Pesquisadora responsável Ester Cerdeira Sabino (USP); Investimento R$ 445.187,99
2. Diversidade genética e filodinâmica dos arbovírus emergentes e reemergentes (DENV, ZIKV e CHIKV) nas regiões Nordeste e Sudeste do Brasil, 2014-2016 (nº 16/08204-2); Modalidade bolsa de doutorado; Pesquisadora responsável Paolo Marinho de Andrade Zanotto (USP); Bolsista Marielton dos Passos Cunha; Investimento R$ 148.954,26

Artigos científicos
KALLAS, E. G. et al. Predictors of mortality in patients with yellow fever: an observational cohort study. Lancet Infectious Diseases. 16 mai. 2019.
RIBEIRO, A. F. et al. Yellow Fever: Factors Associated with Death in a Hospital of Reference in Infectious Diseases, São Paulo, Brazil, 2018. American Journal ou Tropical Medicine and Hygiene. 28 mai. 2019.
DUARTE-NETO, A. N. et al. Yellow Fever and Orthotopic Liver Transplantation: new insights from the autopsy room for an old but reemerging disease. Histopathology. 14 mai. 2019.
CASADIO, L. V. B. et al. Lipase and factor V (but not viral load) are prognostic factors for the evolution of severe yellow fever cases. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. v. 114, e190033. 20 mai. 2019.
HO Y.L. et al. Severe yellow fever in Brazil: clinical characteristics and management. Journal of Travel Medicine. (on-line). 31 mai. 2019.
DUARTE-NETO AN. et al. (2019) Ultrasound-guided minimally invasive autopsy as a tool for rapid post-mortem diagnosis in the 2018 Sao Paulo yellow fever epidemic: Correlation with conventional autopsy. PLoS Neglected Tropical Diseases. v. 13, n, 7, e0007625, 22 jul. 2019
SZTAJNBOK, J. et al. Severe Yellow Fever and Extreme Hyperferritinemia Managed with Therapeutic Plasma Exchange. The American Journal of Tropical Medicine and Hygiene (on line). 15 jul. 2019.

Livros
FIORAVANTI, C. H. O combate à febre amarela no estado de São Paulo. São Paulo: CVE-SES-SP, 2018.
FRANCO, O. A história da febre amarela no Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde, 1969.
VARELLA, D. O médico doente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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