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Ambiente

Contra o aquecimento global

Academias de ciências dos Estados Unidos defendem criação de programa de pesquisas para estudar viabilidade de medidas com potencial para resfriar a Terra

Imagem de satélite da erupção do vulcão La Sofrière em abril deste ano na ilha caribenha de São Vicente e Granadinas: cinzas atuam como aerossóis e reduzem a temperatura

Lauren Dauphin / U.S. Geological Survey / NASA EOSDIS LANCE / GIBS/Worldview

A chamada geoengenharia solar é uma expressão guarda-chuva usada para designar intervenções climáticas polêmicas, com efeitos intencionais e colaterais ainda não totalmente compreendidos pela ciência, mas que poderiam ser promovidas deliberadamente pelo homem para tentar resfriar o planeta. Esse conceito abarca diferentes técnicas que, em tese, poderiam atuar como forças contrárias ao aquecimento global. No final de março, as academias nacionais de ciência, medicina e engenharia dos Estados Unidos divulgaram um relatório conjunto em que se posicionam a favor da criação de um programa nacional de pesquisa em geoengenharia solar para estudar os impactos de três tipos de intervenções: injetar aerossóis (partículas sólidas ou líquidas) na estratosfera, acima de 11 quilômetros (km) de altitude; estimular a formação de nuvens marinhas, até 3 km acima dos oceanos; e tornar mais finas as nuvens do tipo cirrus, situadas entre 6 e 13 km de altitude.

A injeção de aerossóis na estratosfera e o estímulo à formação de nuvens sobre o mar poderiam aumentar a capacidade da Terra de refletir os raios solares, modificação que poderia causar um resfriamento temporário, em nível local ou até global. A terceira modalidade de intervenção atuaria por um mecanismo diferente. Formadas por cristais de gelo, as nuvens do tipo cirrus funcionam como um cobertor sobre a Terra. Dificultam o escape de calor de sua superfície e regulam a temperatura. Torná-las menos densas faria com que mais radiação térmica escapasse do planeta, tornando-o mais frio. Segundo o documento, essas linhas de pesquisa deveriam receber investimentos entre US$ 100 e 200 milhões nos próximos cinco anos.

Uma política a favor de mais pesquisa em geoengenharia solar não significa apoio à implementação de procedimentos para mudar intencionalmente o clima, enfatizam os autores do texto. Tampouco deve servir como pretexto para abandonar ou afrouxar metas de redução da emissão de gases de efeito estufa, cujo acúmulo gradativo na atmosfera é a causa primária do aquecimento global. Desde o final do século XIX, a temperatura média global subiu 1,1 grau Celsius (°C), o que está alterando o clima em todo o planeta. Se as emissões de gases de efeito estufa não caírem rapidamente, a Terra poderá aquecer até 4 ºC ao longo deste século, com possíveis consequências catastróficas para a humanidade (ver reportagem), de acordo com projeções do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).

“O programa de pesquisa deve se concentrar em ajudar a sociedade a tomar decisões mais conscientes”, diz, em comunicado para a imprensa, o biólogo ambiental Chris Field, diretor do Instituto Stanford Woods para o Meio Ambiente e presidente do comitê que escreveu o relatório. “À medida que continuamos a progredir lentamente no enfrentamento das mudanças climáticas, precisamos urgentemente entender toda a gama de opções disponíveis para aliviar seus danos. Com base em evidências das ciências sociais, ciências naturais e tecnologia, esse programa de pesquisa pode indicar que a geoengenharia solar não deve mais ser cogitada ou, ao contrário, concluir que ela justifica um esforço adicional.” O relatório não aborda outra vertente da geoengenharia climática, que estuda a retirada de gases de efeito estufa da atmosfera, sobretudo o dióxido de carbono, e seu armazenamento em diferentes pontos do planeta (no solo, nos oceanos ou nas plantas).

Os dois primeiros tipos de intervenção de que trata o documento são inspirados em fenômenos observados pelo homem na natureza. As cinzas de grandes erupções vulcânicas, como a do monte Pinatubo, nas Filipinas, em 1991, atuam como aerossóis na alta atmosfera e refletem a luz solar. Dessa forma, uma parte da radiação não chega à Terra, que fica mais fria temporariamente. A atividade do Pinatubo foi capaz de tornar o clima global 0,5 ºC menos quente por um ano. O segundo procedimento, o de estimular a formação de nuvens marinhas de baixa altitude, também se espelha em um fenômeno real. As partículas de poluição atmosférica produzidas por grandes embarcações que cruzam os oceanos funcionam como núcleos de condensação de nuvens. Ao longo do trajeto dos navios, formam-se nuvens brancas que tornam a atmosfera imediatamente acima da superfície dos mares mais alva em vez de azulada. Esse efeito aumenta a capacidade local de refletir a luz solar e esfria o planeta.

“Nosso nível de conhecimento científico sobre as três técnicas de geoengenharia solar é bastante limitado e distinto”, explica, em entrevista a Pesquisa FAPESP, a física Sarah Doherty, do Departamento de Ciências Atmosféricas da Universidade de Washington, nos Estados Unidos. “Conhecemos razoavelmente bem os efeitos da injeção de aerossóis e não tão bem o da criação de nuvens marinhas, mas entendemos muito pouco sobre como tornar as nuvens do tipo cirrus mais finas.” Doherty comanda uma iniciativa internacional, The Marine Cloud Brightening Project, que pretende realizar um experimento com o intuito de aumentar a quantidade de aerossóis sobre um trecho de oceano e estimular a formação de nuvens marinhas. Em vez da poluição dos navios, os aerossóis a serem usados serão partículas de sal marinho. Ainda não há data para o experimento ser feito. “Estamos trabalhando na fase de modelagem climática”, diz. Alguns experimentos similares já foram conduzidos na Austrália e na Califórnia, com resultados inconclusivos.

NASA’s Goddard Space Flight Center Nuvens marinhasNASA’s Goddard Space Flight Center

Além do risco de provocar uma série de efeitos colaterais climáticos indesejados, eventuais intervenções humanas no funcionamento da atmosfera hoje não são disciplinadas por organismos internacionais e multilaterais. “Não há nenhuma governança global instituída nessa área. Nada impede que o governo de um país ou um bilionário resolva financiar uma iniciativa sem nenhuma base científica. Se uma intervenção der errado, quem arca com as consequências?”, lembra Paulo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), especialista no estudo de aerossóis e membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG). “Precisamos de estudos sérios e abrangentes, que envolvam pesquisadores de todo o globo, não apenas dos países ricos.” O relatório das academias norte-americanas estima que 90% dos papers sobre geoengenharia solar foram produzidos nos Estados Unidos e na Europa. Em abril de 2018, Artaxo e mais 11 pesquisadores de países em desenvolvimento publicaram um comentário na revista Nature em que alertavam para os riscos de que as nações mais pobres poderiam ser as mais afetadas pelas mudanças climáticas e por eventuais intervenções no âmbito da geoengenharia solar.

Os estudos de modelagem climática que simulam a injeção de aerossóis na alta atmosfera indicam que esse tipo de intervenção talvez possa gerar temporariamente algum nível de resfriamento global, mas há grande incerteza sobre eventuais efeitos colaterais. Um dos temores é que uma quantidade extra de aerossóis possa danificar a camada de ozônio, que se encontra na estratosfera e protege a vida terrestre da radiação ultravioleta vinda do Sol. “A geoengenharia solar é muito controversa e pode ser usada como desculpa para manter em níveis altos as emissões de gases de efeito estufa”, pondera o climatologista Carlos Nobre, do Instituto de Estudos Avançados da USP. “Ela pode não só modificar o clima da estratosfera, mas alterar as circulações atmosféricas em escala global. Mesmo que reduzam um pouquinho a radiação solar que chega à superfície, essas mudanças de circulação podem, por exemplo, afetar o regime de chuvas, de forma semipermanente.”

Algumas instituições de pesquisa e universidades dos Estados Unidos e da Europa criaram recentemente iniciativas para pesquisar a geoengenharia solar. Esses esforços envolvem uma série de estudos com características distintas. Há trabalhos que averiguam fenômenos da natureza que alteram o clima. Existem estudos de modelagem que tentam reproduzir virtualmente intervenções sobre o clima. E há os experimentos de campo, mais controversos por definição. Afinal, são alterações de pequena escala, de caráter temporário, em uma região localizada do planeta para estudar possíveis efeitos locais e globais dessa intervenção.

PiccoloNamek / Wikimedia Commons infográfico Alexandre Affonso Nuvens do tipo cirrusPiccoloNamek / Wikimedia Commons infográfico Alexandre Affonso

O experimento de campo que mais desperta interesse é o Stratospheric Controlled Perturbation Experiment (SCoPEx), coordenado pelo físico-químico alemão Frank Keutsch, da Universidade Harvard, dos Estados Unidos. O projeto foi concebido para ser o primeiro ensaio com injeção de aerossóis na estratosfera, camada da atmosfera entre 7 e 50 km de altitude. Com a ajuda de um balão de alta altitude, um equipamento de injeção de aerossóis vai ser levado a uma altura de 20 km e soltar 2 quilos de partículas de carbonato de cálcio ao longo de 1 km de extensão. “Essa quantidade de partículas é ínfima. Equivale à poluição expelida por um jato comercial durante apenas um minuto de voo”, compara Keutsch, em entrevista a Pesquisa FAPESP. O voo inaugural do SCoPEx estava programado para ocorrer em meados deste ano no norte da Suécia, mas foi cancelado devido a protestos de grupos ambientais e de indígenas do país nórdico. Nesse primeiro voo, não haveria liberação de partículas. Seria feito apenas um teste para ver se os instrumentos estariam funcionando a contento. “O episódio nos ensina que temos de informar melhor as pessoas sobre os objetivos da nossa pesquisa”, comenta o pesquisador alemão, que terá de encontrar um novo lugar para realizar o experimento.

Para Keutsch, o uso da geoengenharia climática só pode ser cogitado se houver mais pesquisas que mostrem sua eficácia e segurança e, ainda assim, de forma complementar a outras ações. Ele gosta de usar uma analogia médica para destacar os limites e os perigos de a humanidade depender apenas desse tipo de intervenção para combater as mudanças climáticas. Diz que há o risco moral de o homem relaxar de seus tênues esforços para mitigar os efeitos das mudanças climáticas e apostar apenas na ação temporária de medidas paliativas. Como analgésicos que tiram a dor, mas não combatem sua causa, essas ações amenizam o problema sem, no entanto, atacar a sua origem. “O mundo precisa de uma cirurgia invasiva, de uma drástica redução nas emissões de gases de efeito estufa, não somente de morfina”, compara Keutsch. No melhor dos cenários, as intervenções de geoengenharia climática podem ser úteis para diminuir a dor enquanto a operação é feita.

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