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Ronaldo Brito Roque

Controle remoto

Júnior suci sem título, 2010Quando o controle remoto se popularizou, no final dos anos setenta, Macaulay não se interessou pelo produto. Achava que levantar para mudar de canal era no mínimo um bom exercício, e não valia a pena pagar o dobro numa televisão, só para ter o prazer de comandá-la a distância. Mas, com o tempo, o preço caiu bastante, e o número de canais só aumentou. Mac, como o chamava sua mulher, acabou cedendo, e aderiu à moda sem maiores dificuldades. Desde então, seu entusiasmo pela tecnologia não parou de crescer. Quando o microcomputador surgiu, nos anos oitenta, ele foi um dos primeiros compradores. Também foi pioneiro quando os telefones celulares começaram a tocar nos restaurantes e cinemas, no final dos noventa. Em 2004 fez um curso de webdesign e, quando se aposentou, em 2009, trabalhava criando aplicativos para smartphones.

Na velhice, havia se tornado um entusiasta de novas tecnologias, e assinava revistas especializadas, que tratavam desde livros digitais até viagens intergalácticas. Foi por meio delas que descobriu o que era criogenia e, para desespero de Zelda, nunca mais conseguiu pensar em outra coisa.

Com toda sua empolgação, entretanto, não convenceu sua mulher. Depois de inúmeras discussões ficou decidido que os dois não falariam mais no assunto, para evitar aborrecimentos. Afeita a seitas esotéricas e ideias orientais, que Macaulay via como mera superstição, Zelda defendia decididamente seu direito a morrer em paz. Argumentava que ou haveria vida após a morte – e essa seria um pouco melhor – ou haveria o descanso eterno, sem nenhum espaço para saudade. As duas opções seriam melhores que acordar num mundo assombrado por androides e infestado de aparelhinhos irritantes.

Macaulay respeitou o direito da mulher e Zelda também respeitou a decisão do marido, e guardou com cuidado o telefone da equipe de criogenização. Um dia Mac sentiu uma palpitação e lembrou à esposa:

— Quando minha hora chegar, não vá esquecer de chamá-los, hem!

Depois tomou seu comprimido para pressão, e ficou estranhamente taciturno. Sua mulher logo se preocupou:

— O que foi, querido? Por que esse silêncio todo?

Mac resmungou um pouco, depois desabafou:

— Zelda, você vai casar de novo?

— O quê?!

— Quando eu for criogenizado, você vai arrumar outro marido?

A mulher ficou até lisonjeada.

— Ora, o que é isso, Mac! Eu tenho sessenta e quatro anos, você acha que eu ainda penso nessas coisas!

— Sei lá, de repente você encontra um velho que nem você, que goste dessas bobagens orientais.

— Ora, Mac, não seja bobo!

No dia seguinte Macaulay estava vendo televisão, e de repente o controle remoto parou de funcionar. As pilhas se esgotaram, e ele teve que se levantar para mudar de canal. Mas seu coração, muito desgastado, não suportou o pequeno trajeto. A dor no peito foi até fraca, se comparada às outras que vieram após a queda. O maior transtorno, contudo, foi a perda da fala. Nos momentos finais, Zelda parecia bem mais consternada que ele havia esperado, e Macaulay temeu que ela tivesse perdido o telefone da equipe. Mas seu medo não duraria muito. Logo ele mergulharia numa calma profunda, sem sonoridade, sem luz, sem nada que pudesse deixar uma lembrança.

Quando acordou, a primeira coisa que viu foi um teto branco. Depois foi notando que ele não era branco, seus olhos é que estavam se acostumando à iluminação. Percebeu que estava num hospital, e lamentou que tivesse apenas passado por mais um infarto. Uma voz de mulher o saudou:

— Bom dia, senhor Smithson. Em breve uma de nossas enfermeiras falará com o senhor.

Ele ficou mais aliviado. Pelo menos era um hospital moderno, com dispositivos eletrônicos que sabiam que ele tinha acordado. A enfermeira era linda, e Macaulay quase não entendeu o que ela dizia, de tanto que ficou vidrado no movimento suave e ritmado dos seus lábios. Quando ela parou de falar, ele arriscou um comentário engraçadinho.

— Ah, minha querida, se eu tivesse apenas uns dez anos a menos, não saía daqui sem o seu telefone.

A resposta da garota acelerou seu batimento cardíaco, que ele podia acompanhar num pequeno monitor ao lado da cama.

— Senhor, devo avisá-lo que sou uma androide. Neste panfleto o senhor encontrará informações sobre minha companhia. Caso tenha interesse, poderemos fabricar uma androide com noventa e nove por cento de semelhança com a senhora Smithson, inclusive no sotaque e nos hábitos mentais.

Em seguida a beldade abriu um pequeno armário, e informou:

— Esses são os pertences que a senhora Smithson considerou que seriam de interesse pessoal do senhor. Aqui está o cartão de outra companhia, que poderá reconstruí-los, caso algum deles venha a se desfazer.

Ainda em estado de choque, Macaulay perguntou:

— Quando ela morreu?

— O senhor se refere à senhora Smithson?

— Claro que me refiro à minha mulher, sua máquina estúpida. De quem mais eu estaria falando?

— Me desculpe, senhor. Eu precisava confirmar. Ela morreu em 2021. Fará exatamente 218 anos no dia 23 de outubro de 2239.

Ele ia perguntar quanto tempo ficou dentro da câmara de criogenização, mas as palavras simplesmente não saíram da sua boca. Pela primeira vez lhe ocorreu que o futuro talvez não fosse tão hospitaleiro quanto ele tinha pensado. Ficou alguns segundos contemplando seus objetos pessoais, que eram um laptop, um chapéu de caubói, algumas fotos de Zelda e um controle remoto de televisão.

Os dias seguintes foram de descobertas paradoxais. Quanto mais Macaulay conhecia coisas novas, mais lhe parecia que o mundo, no fim das contas, continuava o mesmo. Havia mais jardins, as pessoas trajavam estranhos macacões de plástico. Óculos inteligentes – chamados smartglasses – substituíram a televisão, os jornais e quase tudo relacionado à informação. Mas continuava a haver pobres e ricos, e o velho logo descobriu que precisaria voltar a trabalhar.

Depois de alguns meses de treinamento, ele não teve dificuldade em se adaptar, e se tornou inspetor de qualidade numa fábrica de petbots (eram robôs que acompanhavam as pessoas, filmando e gravando tudo que elas faziam, para consulta pessoal ou para servir de prova em caso de processos judiciais). Sua maior dificuldade era esquecer o passado. Quando ficava sozinho, punha-se a olhar suas fotos antigas, e como não lembrava muito bem dos seus sentimentos, começou a pensar – e até mesmo a acreditar – que tinha sido feliz.

A Zelda das fotos tinha seios firmes e um sorriso encantador. Não lembrava em nada a mulher rabugenta e entediante que havia se tornado mais tarde. Ele mesmo parecia contente entre os amigos, tinha um riso modesto e franco, um rosto descontraído, parecia um homem realizado. O futuro, por outro lado, era apenas um conjunto de rotinas maçantes que intensificavam sua sensação de solidão e vazio. Um dia recordou os argumentos de sua mulher sobre a morte, e se pegou pensando que, no final de contas, ela podia até ter razão. Morrer não seria mais fácil que se cercar de atividades cada vez mais complexas para conservar a vida?

Daí para a tentativa de suicídio foi apenas um passo. Se Macaulay ainda está vivo é porque ressuscitar uma pessoa agora é tão banal quanto acender um fósforo. Depois de muita terapia e alguns órgãos substituídos, ele acabou consentindo em tentar de novo. O psicanalista lhe explicou que ele tinha uma forte tendência a idealizar o passado como um estado paradisíaco, sem conflitos e contrariedades. Parece que Macaulay fazia agora com o passado o que, no passado, fizera com o futuro.

Foi também durante a terapia que ele descobriu uma forma criativa de lidar com essa tendência. Começou a escrever romances de época, que logo cativaram a todos pela riqueza de detalhes históricos. No futuro, familiarizados com os comandos por movimento de íris, todos adoram ouvir uma boa história sobre controles remotos. O próprio exemplar de Macaulay valeria uma fortuna, se ele quisesse vendê-lo. Mas o velho garante que nunca se desfará do objeto. Depois de duas ressurreições, ele começou a acreditar que certas coisas têm, para além de sua função imediata, um imensurável valor sentimental.

Ronaldo Brito Roque cursou as faculdades de arquitetura e letras, sem concluir nenhuma. Trabalha atualmente como tradutor e professor de inglês. Publicou, em 2011, seu primeiro livro de contos, Meias palavras (Editora Torre).

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