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Bioética

Controvérsias da edição genética

Avanço de tratamentos médicos com Crispr demanda o estabelecimento de mecanismos de governança para garantir equidade de acesso

Helena Leopardi

As tecnologias de edição genética estão sendo desenvolvidas mais rapidamente do que é possível gerenciá-las? Com esse questionamento no horizonte, desde 2015 geneticistas, biólogos, bioeticistas e juristas têm se mobilizado para defender uma regulamentação global para o uso de ferramentas como a Crispr, que utiliza proteínas para cortar o DNA e promover alterações em pontos específicos de genes. Além disso, chamam a atenção para a necessidade do estabelecimento de mecanismos de governança que garantam equidade de acesso dos cidadãos a avanços científicos que podem, por exemplo, curar doenças raras, entre elas atrofia muscular espinhal (AME) que, em suas formas mais graves, leva bebês a óbito nos dois primeiros anos de vida.

Sigla de Conjunto de Repetições Palindrômicas Regularmente Espaçadas, o desenvolvimento da tecnologia Crispr rendeu o Prêmio Nobel de Química de 2020 à geneticista francesa Emmanuelle Charpentier e à bioquímica norte-americana Jennifer Doudna. Em 2012, elas atuaram em parceria para obter um sistema mais rápido e acessível de edição gênica (ver Pesquisa FAPESP nº 288). A despeito do progresso científico e tecnológico na área, pesquisadores consultados para esta reportagem observam que há um vácuo legislativo envolvendo técnicas de edição genética, entre elas a Crispr, mas consideram que a construção de um diálogo com estudiosos das ciências humanas e sociais pode contribuir para a superação desse desafio internacional.

Os debates bioéticos em torno da Crispr ganharam fôlego em 2018, quando o biofísico chinês He Jiankui, da Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul em Shenzhen, editou embriões saudáveis de gêmeas para torná-las imunes ao vírus HIV (ver Pesquisa FAPESP n° 274). O evento causou apreensão na comunidade científica em relação aos limites de intervenção no genoma de futuras gerações. “O acontecimento foi considerado o rompimento de uma das barreiras éticas mais importantes de nosso tempo: interferências genéticas em embriões, ou seja, na linha germinal humana, fronteira para além da qual não temos conhecimentos suficientes e tampouco o necessário amadurecimento civilizatório para manipulá-la”, sustenta Norton Nohama, bioeticista da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Segundo o pesquisador, os avanços tecnológicos trouxeram para os cientistas a responsabilidade de fomentar um debate que até então parecia tão longínquo que alguns consideravam desnecessário.

Na esteira desse processo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou, em 2021, documentos que fornecem as primeiras recomendações para orientar pesquisas com a edição do genoma humano. Intitulados “Humam genome editing: recommendations”, “Human genome editing: A framework for governance” e “Human genome editing: Position paper”, os relatórios levaram dois anos para serem elaborados e mobilizaram cientistas, pacientes, lideranças religiosas e povos indígenas. Ficou estabelecido que técnicas de edição do genoma humano devem funcionar como ferramentas para fomentar o desenvolvimento da saúde pública e terapias para doenças genéticas para as quais não há tratamento. Contendo nove recomendações, os relatórios orientam, por exemplo, sobre a necessidade de garantir que ensaios clínicos que utilizam tecnologias de edição do genoma humano sejam revisados e aprovados por comitês de ética antes de sua inclusão em registros nacionais e regionais e que esses registros contenham palavras-chave que assegurem sua correta identificação. A manipulação do genoma deve ser realizada somente em locais em que existam entidades capazes de fiscalizar a pesquisa.

Como parte das preocupações globais envolvendo a edição do genoma humano, no Brasil, pesquisadores da PUC-PR se preparam para lançar, em janeiro de 2023, um livro que traça um panorama das questões éticas envolvendo Crispr e os desafios da regulamentação. Um dos autores da obra, Nohama explica que pesquisas com DNA recombinante e transgênicos levaram ao desenvolvimento de normativas de biossegurança pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Técnicas como a Crispr passaram a ser classificadas como Tecnologias Inovadoras de Melhoramento de Precisão (Timp). “As ferramentas de DNA recombinante colocam pedaços de DNA de uma espécie em outra e permitem a criação de Organismos Geneticamente Modificados [OGM]. Já a Crispr faz procedimento similar com o DNA do próprio organismo”, diferencia Nohama. De acordo com ele, a União Europeia entende que a Crispr deve ser regulamentada em consonância à normativa adotada para OGM. O agrônomo Alexandre Nepomuceno, atual chefe-geral da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Soja que, na condição de especialista em biotecnologia e por indicação do Ministério da Agricultura recentemente assumiu seu 9° mandato na CTNBio, explica que no Brasil a Resolução Normativa nº 16, de 2018, estabeleceu requisitos técnicos para apresentação de consulta sobre as Timp, trazendo mecanismos de análise de biossegurança. “Por meio dessa resolução, a CTNBio analisa, caso a caso, pesquisas e produtos desenvolvidos por técnicas de edição gênica, incluindo aquelas desenvolvidas com Crispr. A comissão de biossegurança brasileira avalia se o produto final será considerado um organismo convencional, que poderia ter sido obtido por outras técnicas como o melhoramento clássico, por exemplo, ou se no produto final existe DNA de outra espécie, sendo nesse caso considerado um transgênico.” O pesquisador lembra ainda que a Lei n° 11.105/05 estabeleceu normas de segurança e mecanismos de fiscalização à produção, manipulação, armazenamento e pesquisa com organismos geneticamente modificados, e autorizou à CTNBio o desenvolvimento de normativas que permitam o Brasil manter sua biossegurança e também acompanhar a evolução tecnológica na área de biotecnologia.

Helena Leopardi

Por sua vez, a geneticista Daiane Priscila Simão, do parque tecnológico Cilla Tech Park, e outra autora da obra que está no prelo, explica que pesquisas com Crispr demandam autorização da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), que se preocupa em determinar se seus benefícios se sobrepõem a possíveis riscos. “Devido à complexidade da discussão e ao fato de as consequências de longo prazo serem pouco conhecidas, o processo tende a ser lento e repercutir no andamento de estudos científicos”, avalia. Ao concordar que alguns marcos regulatórios podem apresentar obstáculos para avanços científicos e clínicos, o biólogo espanhol Arcadi Navarro i Cuartiellas, da Universidade Autônoma de Barcelona e da Universidade Pompeu Fabra, ambas na Espanha, recorda o que diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos, publicada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948. O documento, ratificado por 169 países, estabelece no Artigo 27 que as pessoas têm o direito de se beneficiar dos avanços da ciência. A ideia, no entanto, muitas vezes está em conflito com argumentos de origem moral. “A Crispr tem o potencial para ser usada em aplicações eugênicas, caso da gestação de bebês supostamente mais belos e inteligentes, mas por outro lado permite criar terapias para enfermidades graves, até recentemente incuráveis. Seria uma irresponsabilidade não investir em seu desenvolvimento”, sustenta o biólogo, que também dirige o Centro de Regulação Genômica da Fundação Pasqual Maragall. Se os avanços científicos podem ter aplicações negativas e positivas, a legislação, observa ele, deve se desenvolver no sentido de impedir ou, quando não for possível, limitar eventual mau uso da técnica.

No Brasil, apesar de não ser permitido realizar intervenções genéticas em células germinativas ou embrionárias, a bióloga molecular e geneticista Mayana Zatz, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Centro de Pesquisas do Genoma Humano, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão financiados pela FAPESP, defende a importância de pesquisas em embriões que não serão implantados. Só assim seria possível, por exemplo, descobrir formas de corrigir mutações malignas naquele embrião e em gerações futuras, explica. Conforme a geneticista, um dos campos de pesquisa mais avançados não apenas no Brasil, mas também nos Estados Unidos, diz respeito à utilização de órgãos de porcos em humanos. “O genoma do porco tem 98% de homologia com o humano, porém há genes do animal que podem causar rejeição aguda no transplante de seus órgãos”, informa. Com a utilização da tecnologia Crispr, detalha, é possível identificar e silenciar genes responsáveis pela rejeição. “Já produzimos embriões de porcos com genes silenciados e, na próxima etapa, pretendemos inseri-los em uma porca para gerar filhotes que serão potenciais doadores de órgãos para humanos. Essa próxima fase depende de um diálogo estreito com comitês de ética locais e a Conep”, informa. Na avaliação de Zatz, o grande dilema da edição genética é que ela pode ter consequências imprevistas no longo prazo. Um dos riscos é a alteração, ao acaso, de outros genes além daquele que apresenta a mutação. Por causa disso, menciona a necessidade de a comunidade científica conhecer a situação das gêmeas chinesas nascidas em 2018, como forma de mensurar possíveis problemas envolvendo a edição do genoma humano.

Nohama defende que os desafios enfrentados no âmbito das regulamentações podem buscar subsídios em um campo emergente da bioética focado em lidar com o futuro como objeto de análise. “Correntes clássicas de pensamento bioético tomam o presente como objeto de estudo”, explica. Segundo ele, esses são os casos, por exemplo, da corrente utilitarista e da bioética de proteção. A primeira busca garantir que os avanços científicos atinjam o maior número de pessoas e tem embasado decisões de gestores de serviços de saúde; a segunda promove discussões para equalizar conflitos de interesse entre populações mais e menos favorecidas economicamente. De acordo com Nohama, as correntes clássicas posicionam o indivíduo no centro de suas reflexões. “Ocorre que os interesses ambientais, por exemplo, não são os mesmos do que os dos seres humanos. Quando colocamos o meio ambiente como elemento central de discussão, as prioridades mudam e o conceito de progresso científico pode não mais estar em primeiro plano”, pondera.

Por essa razão, argumenta Nohama, o debate ético sobre a Crispr demanda a inclusão do porvir como objeto de estudo. Para fomentar essa discussão, ele menciona a obra do filósofo alemão Han Jonas (1903-1993), que tem balizado reflexões sobre o impacto de terapias de edição genética no futuro da humanidade. Um dos fundadores da corrente de pensamento denominada bioética da responsabilidade, em seus estudos ele discute modelos de progresso. Nohama chama a atenção para o fato de o modelo atual de produção científica desenvolver-se de forma fragmentada, que faz com que os avanços da edição genética sejam analisados tecnicamente e não raras vezes relegando a um segundo plano suas implicações bioéticas. “Com essa separação, os problemas e as consequências dos avanços científicos são vistos como preocupações transitórias exclusivas da técnica, sobre as quais não é pertinente propor juízo de valor”, observa. “Ferramentas como Crispr envolvem riscos compartilhados por toda a humanidade. No entanto, seus benefícios podem não ser repartidos de forma igualitária para todos”, afirma Nohama. O bioeticista menciona levantamento da revista Nature indicando que durante dois anos, entre 2013 e 2015, em todo o mundo foram investidos US$ 600 milhões em pesquisas com Crispr. O mesmo estudo mostra que as solicitações de patente relacionadas à técnica estão em ascensão nos últimos oito anos. Somente em 2014, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) apresentou 62 pedidos de patente, o Instituto Broad, 57, e a empresa norte-americana de produtos agrícolas Dow Agrosciences 28. Nenhuma dessas solicitações envolveu patente de domínio público. “Como garantir equidade e universalidade de acesso a bens decorrentes dessas novas biotecnologias, se elas são apropriadas por uma economia de poder e alcance global, baseada na propriedade industrial e intelectual que tem como único valor o lucro?”, indaga o pesquisador da PUC-PR.

Zatz conta que tratamentos com Crispr para anemia falciforme, causada por uma mutação genética que provoca a deformação dos glóbulos vermelhos, podem chegar a custar US$ 1 milhão por paciente – a doença é prevalente na África, região menos privilegiada economicamente. “Diversos tratamentos para doenças genéticas raras têm um custo exorbitante. Por exemplo, uma nova terapia gênica para AME custa US$ 2,1 milhões. O valor é altíssimo porque as empresas que investiram em pesquisas querem ter lucro e, como são doenças relativamente raras, o número de pacientes a serem tratados é relativamente pequeno”, afirma.

O valor do tratamento é alto, entre outros motivos, porque é necessário remover células-tronco de pacientes, editá-las e depois reinseri-las em seu corpo. Com a proposta de avançar na resolução desse tipo de dilema, Zatz afirma que um dos eixos centrais do Human Genome Editing Summit, evento da Academia de Ciências Médicas do Reino Unido, das Academias Nacionais de Ciências e Medicina dos Estados Unidos e da Academia Mundial de Ciências, que será realizado em março de 2023 no Reino Unido, terá questões bioéticas como um de seus eixos centrais de discussão.

Artigos científicos
NOHAMA, N. et al. O impacto ambiental da edição genética no BrasilTemáticas: Processos, conflitos e desafios: As questões ambientais pela perspectiva das ciências sociais. v. 29, n. 5., 2021.

Livros
ROSANELI, C. F. e FISCHER, M. L. Bioética, saúde global e meio ambiente. Série bioética. v. 14. Curitiba: Editora CRV.
NOHAMA, N. et alCrispr e edição genômica:Técnica, bioética e controvérsias. Ponta Grossa: Atena Editora. No prelo.

Relatórios
Human genome editing: A framework for governance. World Health Organization; 2021.
Human genome editing: Position paper. World Health Organization; 2021.

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