Canibalismo, estresse e baixa reprodução em cativeiro. Esse roteiro de horrores quase eliminou o matrinxã (Brycon cephalus) do círculo dos cinco peixes de água doce mais utilizados comercialmente no Brasil, principalmente em estabelecimentos conhecidos como pesque-pague. Uma grande ajuda para a solução desse problema veio com os resultados dos estudos do biólogo Gilson Luiz Volpato, professor do Instituto de Biociências de Botucatu e do Centro de Aqüicultura, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Ele conseguiu uma solução simples e surpreendente para o problema, colocando papéis celofanes coloridos sobre as incubadoras de 60 ou 200 litros usadas na criação das larvas de matrinxã, promovendo um ambiente colorido aos peixes.
A coloração azul da água, por exemplo, acalmou os pequenos matrinxãs, fazendo diminuir em 15% o índice de canibalismo. A cor verde aumentou em 50% a reprodução dessa espécie em cativeiro. Das nove fêmeas utilizadas no estudo, oito se sentiram tranqüilas com o ambiente esverdeado e efetuaram a desova. Se não bastasse a melhor disposição feminina, os machos também apresentaram maior volume de sêmen. No grupo utilizado como controle, com luz ambiente normal, apenas quatro de nove fêmeas reproduziram. “Este dado é muito importante, pois todos os cuidados metodológicos foram tomados”, afirma Volpato.
O estudo foi realizado durante dois anos em parceria com a empresa Fish-Braz, de Botucatu, que vinha tendo problemas com a criação desse peixe. O projeto intitulado Coloração Ambiental como Facilitador da Reprodução e Redutor de Canibalismo em Matrinxã fez parte do Programa de Inovação Tecnológica Universidade-Empresa (PITE), da FAPESP.
Situação dramática
As soluções do estudo diminuem um hábito arraigado dessa espécie de matrinxã, originária de vários rios da Bacia Amazônica. Esse peixe exibe índices de canibalismo impressionantes. Na incubadora, ele não precisa nem de inimigos. Algumas horas após a desova, as larvas já são altamente vorazes, podendo chegar a um índice de 92% a 99% de perdas por canibalismo. Simplesmente, uma larva devora a outra. Isso numa fase de vida em que não medem mais do que sete milímetros. Esse comportamento, pelo que se descobriu, não dura mais do que duas semanas, mas sua fase mais intensa está nos primeiros cinco dias.
Na década de 80, esse peixe esteve ameaçado de extinção na natureza. Além da natural voracidade infantil, outros fatores também contribuíram para esse problema. O matrinxã é uma espécie reofílica, ou seja, que migra na época da reprodução. Assim, a construção de represas impede ou atrapalha essa migração. Mas há outros fatores, como a destruição da mata ciliar, que induz ao assoreamento e reduz lagoas marginais onde as larvas se desenvolvem e algumas conseguem escapar vivas. A poluição crescente dos mananciais também mata diretamente os peixes, quando a qualidade da água é reduzida. A pesca predatória, que diminui os espécimes adultos, também pode ter contribuído para esse processo, pois o matrinxã passa a apresentar bons índices de reprodução somente a partir do terceiro ano de vida.
Pior, como é comum nas espécies reofílicas, somente com o processo de migração os matrinxãs conseguem atingir naturalmente o amadurecimento das gônadas e completar seu processo reprodutivo. Assim, pescados precocemente ou envenenados nas águas poluídas, a salvação da espécie, como de muitos peixes de água doce, acabou ficando nas mãos de pesquisadores e piscicultores. Eles passaram a reproduzir esse peixe de forma induzida, processo no qual a reprodução é estimulada pela injeção de extrato de hipófise de carpa, o que viabiliza a propagação artificial da espécie.
Mesmo assim, os resultados demoram e dependem de conhecimentos mais aprofundados sobre vários aspectos do comportamento da espécie, como relata o pesquisador Paulo Sérgio Ceccarelli, autor da dissertação Canibalismo em Larvas de Matrinxã, concluída em 1997 no Instituto de Biociências da Unesp sob orientação do professor Volpato.
Retorno comercial
Parte dos obstáculos à criação comercial rentável foi contornada com a adoção de criações consorciadas, nas quais as larvas de matrinxã conviviam e se alimentavam de larvas de outras espécies, de custo mais baixo e perfeitamente administrável em termos de rentabilidade. No início da década de 90, a criação consorciada com larvas de pacu começou a se tornar uma prática comum nas pisciculturas. Contudo, as dificuldades permaneceram porque, ao lado da indução hormonal, estão o restrito período de desova da espécie na região Sudeste do Brasil e a alta taxa de canibalismo nos primeiros dias de vida. As possibilidades de retorno comercial, contudo, fazem com que os criadores sejam insistentes. “Tudo o que se produz é vendido”, explica Volpato, principalmente para o segmento popularmente chamado de pesque-pague, ao qual se destina mais de 80% da produção. Somente no Estado de São Paulo existem cerca de 1.500 pesque-pague.
Na comparação com as demais espécies de água doce, os preços pagos por lotes de mil alevinos (forma jovem vendida com 2 a 4 centímetros) favorecem a criação comercial do matrinxã. Enquanto para essa espécie o milheiro custa de R$ 200,00 a R$ 450,00, dependendo da época e região, peixes como o pacu são vendidos de R$ 70,00 a 120,00. Além disso, a pesca do matrinxã é emocionante. “Parece que ele reage de um jeito que dá mais prazer aos pescadores”, diz Volpato.
Essa reação corporal é diferenciada desde as primeiras horas após a eclosão das larvas. Com pouco mais de 6,5 mm de comprimento, pesam ao redor de 2,30 miligramas, têm narinas e olhos bem desenvolvidos, abertura da boca em sentido vertical, correspondente a 15% da extensão total do corpo, e tubo digestivo completamente formado. Seu nado é em sentido horizontal, mas com surtos freqüentes de abertura exacerbada e fechamento da boca, dizem os pesquisadores. Como mostra a dissertação de Ceccarelli, tal grau de contorção do corpo e da articulação da mandíbula, mais a possibilidade de grande dilatação do ventre, possibilita a ingestão das presas com alguma facilidade.
Dinâmica do bote
A capacidade de predar é, nos matrinxãs, intra e interespecífica, isto é, come indivíduos de sua e de outras espécies. O comportamento predatório foi estudado com cuidado por Ceccarelli. Apresenta uma seqüência constante: fixação, perseguição, aproximação, bote, mordida, apreensão e ingestão. Para um matrinxã, tamanho não é documento. Devora um concorrente pouco menor ou do seu próprio porte. “Tal padrão comportamental pode estar associado também à dinâmica motora do bote, o que atribui ao peixe maior velocidade e, por conseqüência, maior poder de surpreender as presas”, lembra Ceccarelli.
O estabelecimento dos parâmetros corretos que diminuem o canabalismo e aumentam a reprodução do matrinxã teve início em estudos anteriores financiados pelo Conselho Nacional de Desenvilvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com outras espécies de peixes. A ideia de colorir a água também baseou-se em outros estudos não-científicos de cromoterapia. Volpato definiu as cores azul, verde, vermelho e branco (transparente) para os experimentos, por serem as que poderiam interferir com o “bem-estar” dessas larvas. No projeto junto à Fapesp, a hipótese de Volpato era que uma pequena perturbação no “bem-estar” dessas larvas faria com que reduzissem a agressão direcionada às irmãs e, com isso, reduziria o canibalismo nessa fase. E o pesquisador procurou reduzir o “bem-estar” por meio de alterações na coloração do ambiente de criação dessas larvas, que são as incubadoras. Num primeiro teste, Volpato observou que a coloração azul fez com que a taxa de sobrevivência fosse de 15%, contra umaporcentagem de cerca de 7% nas outras condições.
No início dos trabalhos do projeto de inovação tecnológica, o professor Volpato teve de deparar com outra característica desses peixes de água doce. “O matrinxã morre facilmente se manejado de forma inadequada, principalmente se a manipulação ocorre em temperatura fora da faixa de conforto térmico da espécie, por volta dos 26º C”, informa. O problema enfrentado por Volpato foi que o lote de reprodutores comprados morreu entre o transporte e o manejo de separação em viveiros. “Restaram apenas duas fêmeas e alguns machos.”
A pesquisa pôde ser levada em frente porque a Fish-Braz rapidamente financiou a reposição dos reprodutores. Outros problemas surgiram, como é comum nas pesquisas, e o Centro Nacional de Pesquisa de Peixes Tropicais (CEPTA), ligado ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em Pirassununga, também auxiliou muito para a conclusão do estudo.Mas o projeto de Volpato e da Fish-Braz junto à Fapesp também investigou a coloração do ambiente na melhoria da indução hormonal da reprodução do matrinxã. Como o estresse é um fator que inibe a procriação, o pesquisador procurou encontrar alguma coloração ambiental que produzisse um efeito calmante nas fêmeas.
Água verde é melhor
Volpato verificou que indivíduos jovens de matrinxã criados na coloração verde são mais agressivos quando transferidos a um novo ambiente, comparativamente aos mantidos nas cores amarelo, azul, vermelho e branco. Mas o pesquisador não achou que o verde aumentou a agressividade, mas sim que as outras cores é que reduziram a agressão. Achou que, no ambiente novo, os animais que haviam estado na coloração verde se ajustaram rapidamente e, assim, passaram a lutar em defesa de seu novo território. Essa ideia foi fortalecida, pois o pesquisador viu que o crescimento dos animais no ambiente de cor verde foi quase três vezes maior que nos demais.
Larvas de pacu
Com esses resultados, estimula-se uma área incipiente na piscicultura, que é o uso de técnicas “alternativas”(coloração ambiental) na modulação do comportamento dos peixes. Volpato acredita que, no caso do canibalismo, a técnica proposta (ambiente azul), embora ainda em caráter experimental, possa ser associada a outras técnicas já existentes (consorciação com larvas de pacu ou curimbatá) para melhorar a produção. No caso da reprodução, otimizam-se os reprodutores e garante-se maior sucesso na safra. Além disso, é uma técnica simples e que pode ser usada mesmo nas pisciculturas mais modestas. Pode também direcionar melhor os fabricantes de incubadoras e tanques na escolha da coloração desses recipientes. Volpato adverte que seus estudos mostram o efeito da coloração, mas ainda não se sabe o quanto é, de fato, a cor ou a intensidade luminosa o principal responsável pelos efeitos.
Para se ter uma ideia da importância desses estudos, o retorno monetário na safra de um único viveiro de piscicultura produzindo alevinos (jovens) de matrinxã gira em torno de R$ 25.000,00 (uma piscicultura pequena deve ter cerca de dez viveiros desses). Assim, os pequenos percentuais de incremento tecnológico na produção são significativos.
Entender a natureza
Outro ponto positivo, visto por Volpato no projeto com a Fapesp, é que a Fish-Braz está muito empolgada com o desenvolvimento dos trabalhos e até pretende criar, dentro da empresa, um setor específico para a pesquisa científica.Em outro importante estudo a ser publicado por Volpato junto com sua doutoranda, Luciana Jordão, ele trata de outra espécie, o pacu, em situações de estresse. Ele mostrou que esses peixes reconhecem um predador apenas pela visão e, ao se afastarem dele, liberam na água substâncias químicas que sinalizam o perigo aos outros membros do grupo.
O entendimento desses mecanismos naturais dos peixes, tanto do pacu como do matrinxã, propicia que tecnologias eficazes sejam criadas para a solução de problemas cruciais da piscicultura nacional.
Perfil
Gilson Luiz Volpato graduou-se em Ciências Biológicas na Unesp de Botucatu. O mestrado e o doutorado foram feitos na Unesp de Rio Claro. Seu pós-doutorado realizou-se no Fish and Aquaculture Unit, da Agricultural Research Organization, de Bet-Dagan, Israel. É o responsável pelo Laboratório de Fisiologia do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências Biológicas da Unesp de Botucatu.