MIGUEL BOYAYANAinda hoje os pediatras acordam no meio da noite para tratar a febre que não baixa, a tosse que não cessa ou a dor de ouvido que não deixa a criança dormir — nem seus pais. Desde o aparecimento dessa especialidade médica na Europa do século 18, a pediatria voltou-se quase exclusivamente ao combate da desnutrição, das verminoses e das infecções que continuam a matar a cada ano milhões de crianças no mundo todo. Agora, uma transformação em curso no quadro dos problemas de saúde das crianças e dos adolescentes está obrigando os pediatras a reverem seu papel. Além de acudir de madrugada pais aflitos com a infecção dos filhos, eles terão de se preocupar também em evitar que seus pequenos clientes desenvolvam as chamadas doenças crônico-degenerativas — problemas que surgem na infância, avançam silenciosamente durante décadas e só vão se manifestar 40 ou 50 anos mais tarde, afetando a qualidade de vida dos adultos. Esse redirecionamento da ação do pediatra é o que especialistas brasileiros estão chamando de nova pediatria, uma correção de rumos necessária para cuidar de crianças que possivelmente chegarão aos 100 anos e se tornarão os idosos do século 22.
“O pediatra está habituado a lidar com problemas agudos”, comenta Magda Carneiro Sampaio, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). “Mas quem atende hoje uma criança em seu consultório deve ficar atento aos problemas de saúde que ela pode desenvolver no futuro”, afirma a pediatra pernambucana. Especialista em doenças imunológicas, Magda consolidou há um ano a idéia dessa pediatria voltada para a prevenção em um ambicioso projeto: Uma nova pediatria para as crianças que viverão 100 anos ou mais.
Em parceria com o pediatra João Guilherme Bezerra Alves, do Instituto Materno Infantil de Pernambuco, ela reuniu esforços de cerca de 200 especialistas de quatro instituições brasileiras que atualmente investigam a origem e a evolução de cinco grupos de doenças crônicas que surgem na infância e vêm se tornando cada vez mais comuns: os problemas cardiovasculares, as alergias, os distúrbios nutricionais, os transtornos de comportamento e as doenças crônicas de origem genética, que muitas vezes podem ser evitadas durante a gravidez. O objetivo é encontrar formas de prevenir esses problemas — ou modos mais eficazes de combatê-los — e permitir que as crianças cresçam sem contratempos maiores que um braço quebrado ou um hematoma no joelho.
Essa nova postura da pediatria, que começa a surgir também na Europa e nos Estados Unidos e exigirá dos pediatras conhecimentos mais profundos de genética, epidemiologia e das doenças da terceira idade, é uma resposta à transformação que a humanidade viveu ao longo do século 20. Desde o surgimento da nossa espécie há 150 mil anos, jamais o ser humano viveu tanto quanto hoje, conseqüência da melhoria das condições de vida proporcionada pelo acesso ao saneamento básico, aos medicamentos e às vacinas. Em geral quem nasceu no início do século passado tinha poucas chances de passar dos 50 anos. Uma criança de hoje, porém, muito provavelmente chegará, em países desenvolvidos como o Japão ou a França, aos 90 ou 100 anos de idade, próximo do limite da longevidade humana, que, acredita-se, é de cerca de 120 anos.
Mesmo em nações mais pobres como o Brasil a situação não é muito diferente. A expectativa de vida dos brasileiros na década de 1950 era em média de 47 anos e atualmente é de 71 anos. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, nesse período em que boa parte das pessoas migrou do campo para a cidade a população do país triplicou: atualmente são 185 milhões de brasileiros. A proporção de pessoas com 65 anos ou mais também aumenta continuamente desde 1980 e hoje está em quase 11 milhões — de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), há 600 milhões de idosos no mundo, dois terços vivendo em países em desenvolvimento.
Transição nutricional
Um dos efeitos imediatos desse aumento de longevidade é percebido no sistema de saúde pública: tornam-se mais comuns as doenças crônico-degenerativas, como os problemas cardiovasculares, a osteoporose ou o câncer, muitas vezes associadas às condições em que se envelhece. Simultaneamente, a população brasileira atravessa uma fase de mudanças que complica mais o quadro. Estudos da equipe do epidemiologista Carlos Augusto Monteiro, da USP, reunidos no livro Velhos e novos males da saúde no Brasil, revelam que nas duas últimas décadas o perfil nutricional do brasileiro encontra-se em transição: a desnutrição diminuiu entre adultos e crianças, em especial no Sudeste, ao passo que a obesidade aumentou, resultado do crescimento do consumo de proteínas de origem animal e de açúcares. Outro agravante é o sedentarismo aparentemente elevado entre as crianças e adolescentes, que, ao lado do consumo de calorias superior aos níveis indicados pela OMS, integra o american way of life adotado em quase todo o Ocidente, Brasil inclusive.
Um levantamento com alunos de 10 a 19 anos de escolas públicas e particulares de Campina Grande, Paraíba, mostra que só um quarto dos garotos e um décimo das meninas realizam mais de três horas de atividade física por semana. Em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, uma das cidades mais ricas do país, um terço dos homens e metade das mulheres entre 23 e 25 anos não praticam exercícios com freqüência. “Se a criança desenvolve o gosto por esporte desde pequena, é maior a chance de que continue fisicamente ativa na idade adulta”, comenta Magda.
Convidada a retornar ao Instituto da Criança no ano passado, depois de dedicar 15 anos à investigação de doenças que debilitam o sistema de defesa das crianças, Magda imaginou que era hora de agir para tentar mudar o cenário que se descortina. “É preciso fazer os pediatras entenderem que as medidas de prevenção tomadas nos primeiros 20 anos de vida podem ser decisivas para o futuro dessas crianças”, afirma. Por que tão cedo? Por uma razão nem sempre óbvia: “Essa é a fase da vida mais crítica para a prevenção eficaz de muitas doenças”, explica Magda. Além dessas alterações em hábitos e estilo de vida, pesou na decisão de Magda de propor uma redefinição de rumos na pediatria a descoberta recente de que muitas doenças comuns nos adultos têm suas raízes na infância.
Uma das correntes de pesquisa em saúde mental, por exemplo, acredita que alguns transtornos psicológicos como ansiedade e depressão podem surgir na infância ou adolescência e se agravar no decorrer da vida. Em entrevistas com pais de 959 alunos de escolas públicas e particulares no Distrito de Saúde do Butantã, que inclui cinco bairros da capital paulista, as pediatras da USP Sandra Grisi e Ana Maria Escobar constataram que as principais queixas sobre a saúde dos filhos são de suspeita de distúrbios psicológicos e alergias crônicas. Um quarto dos pais disse acreditar que suas crianças tinham dificuldade de prestar atenção ao que fazem, enquanto 21% afirmaram que os filhos pareciam sofrer de ansiedade, proporção semelhante à de casos de alergia. Esses números não indicam que essas crianças realmente tenham algum distúrbio psiquiátrico. Mas são um sinal de que é bom prestar atenção, pois o que se passa com elas pode ser mais que uma saudável agitação.
Diante desses dados as equipes de Sandra Grisi e Maria Cristina Kupfer, do Instituto de Psicologia da USP, trabalham no desenvolvimento de um teste que poderá ajudar na identificação dos problemas de saúde mental a partir dos primeiros meses de vida. Trata-se de um questionário, atualmente em avaliação em São Paulo, Belém, Rio, Curitiba e Brasília, que o pediatra deve aplicar a pais e bebês para detectar se a criança apresenta sinais de transtornos psicológicos, uma das principais causas de perda de anos de vida saudável, segundo a OMS. Outro grupo de problemas de saúde que começam muito cedo e prejudicam a qualidade de vida do adulto são as doenças alérgicas, como a asma, que nos últimos anos estão se tornando mais comuns entre crianças e adolescentes no mundo todo. Em estudos conduzidos na cidade de São Paulo, Dirceu Solé e Charles Nasptiz, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), constataram que quase 12% da população sofre de asma e uma em cada três pessoas apresenta sinais do problema. A fim de compreender melhor os fatores que desencadeiam essa forma de alergia que provoca intensa falta de ar e impede o desenvolvimento adequado dos pulmões, a equipe do pediatra Joaquim Carlos Rodrigues e da epidemiologista Regina Cardoso acompanha há quase três anos no Instituto da Criança, ligado à FMUSP, a saúde de quase 300 crianças filhas de mães com asma.
Mas o exemplo mais contundente de doença com raiz na infância é o da aterosclerose, o acúmulo de placas de gordura nos vasos sangüíneos responsável pelo bloqueio da chegada de oxigênio e nutrientes ao coração, no infarto, ou ao cérebro, no acidente vascular encefálico (AVE). Considerados as principais causas de morte no mundo, o infarto e o AVE tiram a cada ano a vida de 17 milhões de pessoas, um terço dos óbitos do planeta. Os custos desse problema em um país como o Brasil são elevados. Em 2002 as doenças cardiovasculares levaram à internação de 1,2 milhão de pessoas e à realização de 50 mil cirurgias para restabelecer o fluxo normal de sangue para o coração, a um custo aproximado de R$ 281 milhões, segundo estimativas publicadas nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia pelos epidemiologistas Denizar Araújo e Marcos Bosi Ferraz, da Unifesp.
Até pouco tempo atrás acreditava-se que a aterosclerose fosse um problema exclusivo de adultos com hábitos de vida pouco saudáveis, que jamais trocariam uma partida de futebol pela tevê por uma caminhada no parque ou a picanha do almoço por uma fatia de carne mais magra. Mas um estudo publicado na década de 1980 no Journal of the American Medical Association mudou essa idéia. Jack Strong, da Universidade do Estado de Louisiana, Estados Unidos, analisou as artérias do coração de soldados norte-americanos mortos na Guerra da Coréia em 1952 e constatou: embora se tratasse de indivíduos jovens e aparentemente saudáveis, entre 45% e 77% deles já estavam com as coronárias parcialmente entupidas. Trabalhos mais recentes confirmaram esses resultados e mostram que esse problema começa ainda mais cedo, na infância. Estudos feitos no Japão, onde o consumo de gordura é menor que no Ocidente, apontaram que 50% das crianças com 1 ano de idade e todas com 10 anos apresentavam artérias cardíacas com as lesões iniciais da aterosclerose.
“O problema é que essa enfermidade avança sem alarde até a idade adulta e, em um terço dos casos, sua primeira manifestação é um infarto fatal”, afirma o cardiologista Francisco Fonseca, da Unifesp, um dos editores da Primeira diretriz de prevenção da aterosclerose na infância e na adolescência, elaborada pela Sociedade Brasileira de Cardiologia. Publicado em português na edição de dezembro de 2005 dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia e em inglês na edição deste mês do International Journal of Atherosclerosis, esse documento orienta os pediatras a investigarem desde cedo a saúde cardiovascular das crianças, em especial daquelas cujos pais ou avós sofrem de problemas cardíacos. “O médico de uma criança com história de doença cardíaca na família deve orientar os pais a estimularem o filho desde cedo a ingerir pouco açúcar e gordura e a praticar exercícios”, afirma Magda. “Os hábitos, em geral adquiridos cedo na vida, são a segunda natureza dos seres humanos. É difícil alterá-los mais tarde”, justifica a pediatra.
Após as primeiras evidências da origem infantil da aterosclerose, o epidemiologista David Barker, da Universidade de Southampton, na Inglaterra, propôs uma idéia que ainda não é consenso entre especialistas, mas indica um quadro mais preocupante: os problemas cardiovasculares começariam durante a formação do feto. Essa suspeita surgiu da observação de que regiões pobres da Inglaterra com elevadas taxas de mortalidade infantil no início do século 20 apresentavam índices de doenças cardiovasculares superiores à média nas décadas de 1970 e 1980.
Com base nessas informações, Barker formulou a teoria da programação fetal, segundo a qual o organismo do bebê submetido a condições anormais na gravidez, como a falta de nutrientes por defeitos da placenta ou pela desnutrição da mãe, sofreria adaptações fisiológicas e pouparia energia durante a privação. Uma conseqüência no longo prazo é a propensão ao acúmulo de gordura em épocas de fartura e o provável desenvolvimento posterior de obesidade, fator de risco para o aumento do colesterol, o diabetes e as doenças cardiovasculares.
Heloisa Bettiol e Marco Antonio Barbieri, da USP em Ribeirão Preto, buscam nos últimos anos indícios que confirmem associação entre o desenvolvimento de obesidade na idade adulta e a nutrição inadequada no útero — um problema relativamente comum, identificado em 19% das 2.839 crianças nascidas em Ribeirão em 1994. A avaliação da saúde de 519 garotos logo após o nascimento e, mais tarde, aos 10 e aos 18 anos, mostrou a Heloisa e Barbieri que apenas aqueles com sinais de alimentação insuficiente durante a gestação e excesso de peso aos 10 anos continuaram com peso superior ao ideal na idade adulta. Além de defeitos genéticos, outra provável causa da restrição do acesso aos nutrientes no útero é o consumo de cigarro na gravidez.
Se há dúvidas sobre a influência do desenvolvimento intra-uterino na saúde do adulto, dá-se por certo que certas características do bebê no nascimento podem indicar problemas futuros. As crianças com baixo peso ao nascer, menos de 2.500 gramas, ou prematuras, que não completam 37 semanas de gestação, correm risco maior de desenvolver obesidade. A comparação das condições de saúde de 6.746 crianças que nasceram em Ribeirão entre junho de 1978 e maio de 1979 com a de 2.846 nascidas em 1994 sugere que a principal razão dos nascimentos com peso inferior ao desejável ou menos tempo de gestação que o normal foi o aumento dos partos cirúrgicos, que permitem a pais e médicos anteciparem a chegada do bebê. Resta saber como esse peso mais baixo ao nascimento, ainda que adequado à idade gestacional, afeta o desenvolvimento da criança e do adulto.
No Rio Grande do Sul, o grupo da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) coordenado pelos epidemiologistas Bernardo Horta e César Victora observou que certas fases da infância têm peso maior que outras na determinação da saúde do adulto. No acompanhamento de 6 mil pessoas nascidas em Pelotas em 1982, a equipe de Victora avaliou a pressão sangüínea e os níveis de colesterol de 750 jovens em quatro momentos da vida: no nascimento, aos 2, aos 4 e aos 15 anos. Resultado: as crianças que engordaram além do normal para a idade nos dois primeiros anos de vida não apresentaram na adolescência pressão sangüínea mais elevada nem níveis de colesterol mais altos que as demais. Já o ganho de peso acima do recomendado entre o segundo e o quarto ano de vida mostrou-se relacionado com a piora dos níveis desses fatores de risco para doenças cardiovasculares. Em ambos os casos, o peso da criança ao nascimento não afetou os indicadores de saúde. “Aparentemente há períodos críticos que influenciam o surgimento de problemas de saúde futuros”, explica Horta.
De qualquer modo, não são só as condições de vida ao nascer e na infância que determinam a saúde do adulto. “Essas doenças crônicas são provocadas por múltiplos fatores”, lembra Horta. “A ocorrência de um ou mais fatores não significa que a criança necessariamente desenvolverá a doença mais tarde, mas é um sinal de que ela corre mais risco”, explica o epidemiologista da UFPel. Felizmente, em geral é longo o caminho entre a exposição aos fatores de risco e o desenvolvimento dos problemas de saúde, o que permite a intervenção dos pediatras para reduzir os danos. A melhor saída, na opinião de Magda, é não acreditar na sorte e seguir alguns dos sábios conselhos que antigamente os filhos recebiam dos pais: manter uma dieta equilibrada; praticar atividades físicas; e evitar o fumo e o consumo de álcool. Nada complicado demais, mas que exige esforço e disciplina, além de bom senso dos pais para saber quando é hora de buscar ajuda médica.
Os Projetos
1. Da saúde perinatal à saúde do adulto jovem; Modalidade Projeto Temático (nº 00/09508-7); Coordenadores Heloisa Bettiol e Marco Antonio Barbieri – FMRP/USP; Investimento R$ 684.371,94 (Fapesp)
2. Leitura da constituição e da psicopatologia do laço social por meio de indicadores clínicos (nº 03/09687-7); Modalidade Projeto temático; Coordenadora Maria Cristina Kupfer – Instituto de Psicologia/USP; Investimento R$ 478.965,20 (Fapesp)