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CAPA

Crise na geração de recursos humanos

Pandemia reduz número de mestres e doutores em 2020 e demanda em baixa por títulos acende debate sobre o futuro do sistema que fornece pesquisadores e profissionais de alto nível para o Brasil

Danilo Zamboni

O sistema brasileiro de pós-graduação sofreu um abalo durante a pandemia que é inédito em sua história. A rede de 4,6 mil programas de mestrado e doutorado, responsável por parte significativa da pesquisa feita no país e pela formação de profissionais de alta qualificação, foi parcialmente comprometida com a suspensão de atividades presenciais nas universidades durante a emergência sanitária. Em 2020, 20 mil pessoas receberam título de doutor no Brasil, 18% menos do que os 24,4 mil formados em 2019, de acordo com dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). O número de novos mestres caiu quase 15% – de 54 mil em 2019 para 46 mil em 2020.

Os alunos que dependiam de experimentos de campo e do uso de laboratórios para levar adiante seus projetos foram mais afetados do que os que puderam trabalhar remotamente. Enquanto cursos de ciências biológicas tiveram queda de 29% nos formados, nos de ciências sociais aplicadas a contração foi de 10%. Essa brusca perda de fôlego interrompeu um ciclo virtuoso de crescimento que durava um quarto de século – em 1998, o país formava apenas 3,9 mil doutores e 12 mil mestres.

Dados preliminares apontam uma nova redução em 2021. É esperada alguma reação a partir deste ano, mas não há um consenso sobre a sua intensidade ou a viabilidade de retomar o ritmo de crescimento anterior. “A tendência é que venha uma recuperação lenta, uma vez que os efeitos da pandemia associados a políticas recentes de retração de apoio à ciência podem repercutir negativamente por um bom tempo”, afirma Renato Pedrosa, pesquisador do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (DPCT-Unicamp).

O agrônomo Marcio de Castro Silva Filho, pró-reitor de Pós-graduação da Universidade de São Paulo (USP), vê o tombo como um fenômeno previsível. “O fator determinante para a redução dos formados foi a prorrogação por até dois anos do prazo de conclusão de curso, já que muitos dos nossos alunos tinham dificuldades de levar adiante suas pesquisas com os laboratórios fechados”, diz. Segundo Castro, cerca da metade dos estudantes solicitou o adiamento. Em 2019, a USP formou 3.876 mestres e doutores. Viu esse contingente cair para 2.900 em 2020 e 2.878 em 2021, mas aguarda para 2022 a titulação de muitos dos que estenderam o prazo. “Não verificamos uma elevação na taxa de abandono”, explica o pró-reitor.

Alexandre Affonso

A perspectiva de que a queda seja interrompida é amparada por dois indicadores. As bolsas de doutorado concedidas pela Capes, que sustentam um terço dos matriculados no país, aumentaram em quantidade na pandemia. Estavam na casa das 44,5 mil em 2018, caíram para 43 mil em 2019, mas alcançaram seu melhor patamar em 2020, com 46 mil estudantes apoiados. O total de doutorandos também cresceu, alcançando 146,6 mil em 2020. Em ambos os casos, o desempenho é influenciado pela prorrogação de prazos e retenção de alunos.

Outras universidades colhem evidências de que a crise pode ter causas estruturais, que vão além da desorganização causada pela Covid-19. Desde 2014, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) costumava formar cerca de 1,5 mil mestres e mil doutores por ano – em 2020 e 2021, o contingente caiu por volta de 35%. Mas esse não foi o único indicador negativo. A química Denise Guimarães Freire, pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa da UFRJ, chama a atenção para o que parece ser um refreamento no interesse por esse tipo de formação. Isso porque também o número de ingressantes nos cursos stricto sensu da UFRJ teve decréscimo: de 4 mil em 2018 para 3,5 mil em 2021.

Entrevista: Denise Guimarães Freire
00:00 / 15:80

Freire atribui a mudança a um conjunto de fatores. Um dos principais seria a corrosão do valor das bolsas concedidas pelas agências federais Capes e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Atualmente, um bolsista de mestrado recebe R$ 1,5 mil mensais e o de doutorado R$ 2,2 mil. As bolsas foram reajustadas pela última vez em 2013 e a inflação acumulada desde então, medida pelo IGP-M, alcançou 117%.  “Antigamente, muitos jovens terminavam a graduação e optavam por fazer uma pós e entrar no mercado mais tarde, em condições mais favoráveis. Com as bolsas das agências federais tão depreciadas, a estratégia ficou inviável”, explica.

Ela enxerga também uma reversão de expectativas em relação à carreira docente nas universidades, que é o principal destino dos doutores – segundo dados do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), dois em cada três doutores empregados em 2017 trabalhavam no setor de educação superior. “Há uma percepção crescente de que ser pesquisador não vale mais a pena, pois as oportunidades ficaram escassas e falta financiamento. Isso certamente contribuiu para afastar a demanda mais qualificada”, afirma. “Isso é dramático, porque 80% da ciência produzida no Brasil tem a participação dos pós-graduandos. A pesquisa é sustentada em grande medida por essa mão de obra que se qualifica ao mesmo tempo que trabalha em projetos relacionados a ciência, tecnologia e inovação em universidades e instituições científicas.”

Alexandre Affonso

Na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a soma de matriculados no mestrado e no doutorado cresceu de 4,4 mil no primeiro semestre de 2020 para 6,6 mil no segundo semestre de 2021. Foi uma consequência da queda nas defesas de dissertações e teses: 1.759 em 2020 e 1.112 em 2021. De acordo com a pró-reitora de Pós-graduação da UFPE, Carol Leandro, os dados mascaram uma redução na demanda, sobretudo nas engenharias e ciências da saúde. “Há uma desmotivação. Vários programas tiveram de fazer dois processos seletivos por ano para não deixar vagas ociosas, inclusive alguns que receberam notas 6 e 7 na avaliação da Capes, que são as mais elevadas”, afirma Leandro, que é pesquisadora do Departamento de Nutrição da UFPE.

“Tem algo sério acontecendo”, completa a cientista política Rachel Meneguello, pró-reitora de Pós-graduação da Unicamp. A instituição teve um encolhimento no número de mestres e doutores formados, de 2.155 em 2019 para 1.847 em 2021, em parte devido à extensão de prazos concedida durante a pandemia. Agora, em 2022, contabiliza também 30% a menos nas matrículas no mestrado. Processos de seleção tiveram a procura limitada, indicando um possível processo de afastamento de profissionais dos programas de pós-graduação. “No meu programa, o de ciência política, costumávamos ter em média 80 candidatos todos os anos e dessa vez tivemos cerca de 40.” Há ligeiro aumento no total de doutorandos matriculados na universidade, mas Meneguello teme que isso resulte apenas do represamento de alunos na pandemia. “As bolsas não dão conta de sustentar uma dedicação de vários anos à pesquisa em um lugar caro para se viver como é Campinas.” Ela considera difícil reverter o quadro. “Mesmo que a produção do conhecimento volte a ser valorizada, dificilmente haverá recursos para corrigir tamanha defasagem constituída nesses últimos anos entre a produção de recursos humanos necessária e o financiamento aplicado em ensino e pesquisa.”

Sistemas de outros países também sofreram com a desordem causada pela Covid-19. Levantamento anual da National Science Foundation, principal agência de apoio à ciência básica nos Estados Unidos, mostrou que o total de títulos de doutorado concedidos no país caiu de 55.614 em 2019 para 55.283 em 2020. Parece muito pouco, mas esse contingente crescia a taxas médias de 3,1% ao ano desde 1957, quando o levantamento começou a ser feito, com fôlego especial nas áreas de ciências e engenharias, responsáveis por 77% dos títulos de 2020, ante 58% em 1979.

Entrevista: Abílio Baeta Neves
00:00 / 25:60

No caso brasileiro, alguns sinais de crise já se anunciavam antes da emergência sanitária. Um relatório elaborado no ano passado pelo ex-presidente da Capes Abílio Baeta Neves e por Concepta McManus, da Universidade de Brasília (UnB), analisou diferentes aspectos do desempenho da pós-graduação brasileira entre os anos de 2009 e 2020 e mostrou que, mesmo em um cenário de crescimento no contingente de formados, houve redução entre 2016 e 2019 em matrículas nos programas de notas mais elevadas – 6 e 7, aqueles com maior inserção internacional – e um incremento em taxas de desistência e de desligamento, com destaque para engenharias, ciências exatas e agrárias. Já os índices médios de abandono, de 12,4% no mestrado e de 11,6% no doutorado, eram mais expressivos naquele período em instituições particulares e nos cursos com notas menores. “Os motivos do abandono não são claros e necessitam de mais estudos”, afirma Baeta Neves. “Eu prestaria atenção nos fatores de conjuntura, como o arrefecimento da economia, e nos estruturais, como o valor das bolsas e o descompasso com as expectativas dos estudantes.”

Alexandre Affonso

Embora sublinhe o sucesso na expansão do sistema na última década e sua multiplicação por todas as regiões brasileiras, o relatório trouxe outros indicadores preocupantes. Um deles é um acentuado subfinanciamento. “Há muitos projetos de pesquisa na pós-graduação que são realizados sem nenhum tipo de financiamento ou de bolsa”, mostra Baeta Neves. Em 2020, mais da metade dos projetos de pesquisa na pós-graduação em geral não contava com qualquer tipo de apoio. A situação é mais crítica nas áreas de letras, linguística e artes (quase 70%) e ciências sociais aplicadas (60%). “Parece que estamos tirando leite de pedra”, diz Baeta Neves. O modelo de financiamento adotado no Brasil nas últimas décadas tem como foco o apoio a projetos, por meio de agências como o CNPq e as fundações estaduais, e a oferta de bolsas a estudantes que atuam nesses projetos, com destaque para a atuação da Capes. Pedrosa, da Unicamp, ressalta que essa situação pode variar regionalmente, a depender da capacidade de cada estado de investir em ciência. “Em São Paulo, houve ampliação na arrecadação tributária estadual e, em consequência, no orçamento da FAPESP. A não ser que a situação internacional se complique, isso deve preservar o financiamento a um conjunto robusto de projetos nos próximos tempos no estado.”

O sistema brasileiro de pós-graduação é uma construção das últimas seis décadas e se tornou um dos mais produtivos do mundo. Em 1965, um parecer do Conselho Federal de Educação organizou-o nos moldes vigentes até hoje, em duas modalidades – stricto sensu, voltada para carreira acadêmica, e lato sensu, para quem trabalha em empresas e outras atividades –, e estabeleceu as categorias de mestrado e de doutorado. Em meados dos anos 1970, a Capes criou um modelo de avaliação dos cursos, que dá notas e norteia a distribuição de verbas para os programas. Atribui-se à avaliação um efeito organizador e multiplicador do sistema, marcadamente nas universidades públicas.

A recente queda da demanda levantou outro tipo de indagação: qual a necessidade de seguir ampliando o número de mestres e doutores ano a ano? “Nosso sistema foi criado principalmente para formar docentes, mas hoje as universidades contratam cada vez menos”, explica Pedrosa. “O ensino superior privado ainda cresce, mas não sofre pressão para contratar doutores.” Em contrapartida, tem aumentado o interesse por mestrados executivos, os MBA, cursos lato sensu de curta duração que oferecem opções de ensino a distância (cujo número de matrículas cresceu 72% entre 2016 e 2019, segundo o Instituto Semesp), e os mestrados profissionais, monitorados pela Capes – mais de 62 mil matrículas em 2019, de acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), órgão do Ministério da Educação.

Comparações internacionais mostram que o Brasil forma menos recursos humanos de alto nível do que países desenvolvidos. Com 10,4 doutores titulados para cada grupo de 100 mil habitantes, o país tem desempenho superior ao do México (7,6), da Turquia (7,6) ou do Chile (3,8), mas está distante dos Estados Unidos (21,9), da Alemanha (34,4) e do Reino Unido (42,7). Há potencial para crescer em universidades mais novas e ainda em consolidação. “Em algumas áreas do conhecimento, a proporção de alunos por docente nos programas é baixa e a oferta pode ser ampliada”, diz Baeta Neves. “Pode, contudo, haver um limite para algumas regiões dado pela população que consegue alcançar a escolarização superior.” A pandemia é outro fator a agravar esse problema porque também atingiu o número de graduados. Em 2020, houve uma queda de 21% nos concluintes de universidades federais e 20% nos de estaduais em relação a 2019, segundo dados do Censo do Ensino Superior do Inep. Já no sistema privado, houve alta de 7,5%.

A cientista política Elizabeth Balbachevsky, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, afirma que o Brasil continuará necessitando de uma mão de obra com qualificação avançada e formação específica para atividade de pesquisa, embora essa procura varie de setor para setor. “Há áreas muito competitivas que necessitam desse tipo de profissional, como computação, tecnologia de informação, inteligência artificial. O agronegócio de ponta também tem demanda”, explica. Ela observa, porém, que muitas empresas brasileiras ainda têm como estratégia a reprodução de tecnologias já amadurecidas. “Para parte importante do setor empresarial, vale a lógica da imitação, em que no máximo é necessário ter competência em engenharia reversa. Não precisa contratar um pesquisador. Um bom engenheiro é suficiente.”

Os dados mais recentes sobre o mercado de trabalho de pós-graduados no Brasil são anteriores à pandemia e apontavam uma situação de emprego bem mais favorável do que a média da população. O último volume da série Mestres e Doutores, produzido pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), foi publicado há três anos e mostrou que 72,3% dos 230 mil doutores e 62,2% dos 570 mil mestres brasileiros estavam empregados formalmente em 2017 – esse patamar, porém, era cerca de 5 pontos percentuais inferior ao de 2012, quando a economia estava em crescimento. Em 2016, ano em que as taxas de crescimento do Produto Interno Bruto e do emprego no Brasil tiveram uma redução importante (-3,3% e -4,2%, respectivamente), foram positivos os índices de crescimento do emprego formal de mestres (6%) e de doutores (8,6%), segundo o estudo.

Alexandre Affonso

Uma das explicações para esse desempenho é o fato de uma expressiva parcela desses profissionais atuar na administração pública, onde o emprego é estável. Em 2017, a maior parte dos doutores trabalhava em universidades e órgãos estatais: 47,9% na esfera federal e 20% na estadual – só 9,6% estavam em empresas privadas. Já entre os mestres, havia maior participação na área privada: 22,7% estavam na administração federal, 19,8% na estadual e 22,2% em empresas privadas. Em 2017, a remuneração média foi de R$ 16 mil para doutores e R$ 10,8 mil para mestres – os salários mais altos foram registrados nas áreas de ciências sociais aplicadas e engenharias. “A absorção de pessoal pós-graduado não se limita ao emprego formal”, explica Sofia Daher, assessora técnica do CGEE que coordena essas publicações. “Em um estudo em andamento, observamos que 16,8% dos doutores se declararam sócios-proprietários de empresas, em um sinal de que parte deles é atraída pelo empreendedorismo.”

Entrevista: Sofia Daher
00:00 / 16:40

O sociólogo Simon Schwartzman, do Instituto de Estudos de Política Econômica, no Rio de Janeiro, chama a atenção para um aspecto que considera negativo na pós-graduação no país: a manutenção do mestrado, na prática, como pré-requisito do doutorado e, em consequência, uma permanência exageradamente longa dos estudantes na universidade. Em um estudo publicado recentemente em seu site na internet, Schwartzman mostrou que, nos Estados Unidos, 44,7% dos doutores se formam até os 30 anos, ante apenas 10,5% no Brasil (ver quadro).

Alexandre Affonso

“Em outros países, jovens brilhantes seguem direto para o doutorado e, depois de publicar dois ou três papers relevantes, já são pesquisadores formados”, afirma. As universidades brasileiras apenas excepcionalmente admitem alunos diretamente no doutorado. Nos países da União Europeia, o problema foi enfrentado com a abreviação do período de formação: a graduação dura de três a quatro anos, o mestrado, de um ano e meio a dois, e o doutorado leva de dois a quatro anos. Segundo Schwartzman, a formação tardia é vista como prejudicial em certas áreas do conhecimento. “Na matemática, por exemplo, está estabelecido que, se o pesquisador não fizer uma contribuição relevante até os 30 anos, não fará depois. Essa lógica já não vale para as ciências sociais.”

“O desenho da pós-graduação no Brasil é institucionalmente equivocado”, completa Balbachevsky. “Não é sustentável um modelo que mantém um jovem talento dentro da universidade durante tantos anos ganhando um salário mínimo.” Ela menciona um outro exemplo do modelo norte-americano: só uma minoria dos alunos recebe apoio para dedicação exclusiva à pesquisa. “A maioria das bolsas é para assistentes de pesquisa, em que o estudante se envolve com as atividades-fim da universidade, atuando na docência, ajudando a desenhar projetos de pesquisa e extensão. Eles têm uma formação rica e conseguem boa inserção no mercado.” Balbachevsky defende a manutenção dos programas de mestrado, mas não como pré-requisito para o doutorado. “O mestrado é uma resposta de qualidade que a universidade de pesquisa dá para o mercado de trabalho”, afirma.

A queda na demanda e no conjunto de formados corrobora um momento turbulento da pós-graduação brasileira. No ano passado, o processo de avaliação quadrienal dos programas, liderado pela Capes desde a década de 1970, sofreu uma inédita contestação na Justiça. A divulgação do desempenho dos cursos, que recebem notas de 3 a 7, está suspensa (ver Pesquisa FAPESP nº 309). Também por conta da pandemia, a discussão do Plano Nacional de Pós-graduação (PNPG) para o decênio de 2021 a 2030 até agora não foi feita e não se sabe quais metas terão de ser alcançadas nos próximos anos.

O relatório de Baeta Neves e McManus foi produzido quando o ex-presidente da Capes assumiu a Cátedra Paschoal Senise, criada pela Pró-reitoria de Pós-graduação da USP, e seu objetivo foi justamente trazer reflexões e propor inovações para o próximo PNPG. Uma questão de fundo levantada no documento é se os cursos não se descolaram das demandas da sociedade brasileira. Baeta Neves observa que mesmo o perfil do docente vem sofrendo uma transformação. “O professor não é só aquele indivíduo que se ocupa em dar aulas, responde por um certo campo do conhecimento e se dedica a estudos acadêmicos. Também se espera que ele transforme o conhecimento em valor econômico e social e produza inovações. Será que estamos tendo sucesso em adaptar os programas a essa realidade?”, indaga.

Entre as recomendações, o relatório aponta a necessidade de investir mais na qualidade dos programas do que em sua expansão, com a integração de docentes e pesquisadores de várias regiões, instituições e disciplinas, e apostar em formatos mais flexíveis e de duração menor, evidenciados pela demanda por cursos de MBA. O documento também vê a experiência recente com trabalho remoto como relevante para ampliar a cooperação internacional. “A pandemia precipitou uma nova realidade para a internacionalização das atividades acadêmicas e de pesquisa com foco na ‘internacionalização em casa’, bem como na formação de redes nacionais e internacionais”, diz o relatório.

Alexandre Affonso

Essa preocupação em ampliar a qualidade e a interface com o setor produtivo é compartilhada pelos dirigentes acadêmicos. Maria Valnice Boldrin, pró-reitora de Pós-graduação da Universidade Estadual Paulista (Unesp), defende que a discussão no novo PNPG deveria buscar uma aproximação maior com as necessidades das empresas. “Precisamos superar o modelo produtivista, que tem como enfoque indicadores como quantidade de artigos científicos, e buscar formas de ampliar o impacto, pensando na inserção no setor produtivo”, diz.

Castro Silva, da USP, considera que o sistema está saturado em algumas regiões e deveria buscar formatos novos. “Estamos muito atrelados a uma compartimentalização do conhecimento. Seria mais producente criar programas em rede, juntando competências de várias disciplinas e instituições, para enfrentar problemas complexos”, propõe. Meneguello, da Unicamp, concorda que houve dificuldades para acompanhar mudanças importantes na sociedade. “Precisamos refletir sobre o que aconteceu na pandemia, repensar currículos, oferecer cursos menos demorados e nos adaptar à demanda. Mas sem esquecer que uma das finalidades da pós-graduação é a manutenção da ciência básica, que é demorada”, afirma.

Mais vagas, menos recursos
Bolsas federais sem reajuste afetaram a expansão do sistema, diz presidente da ANPG

A presidente da Associação Nacional de Pós-graduandos (ANPG), Flávia Calé da Silva, de 37 anos, afirma que a crise no financiamento de bolsas de mestrado e doutorado foi gerada por uma falha do último Plano Nacional de Pós-graduação (PNPG), que vigorou entre 2011 e 2020. “O plano induziu a ampliação das vagas nos programas e atraiu uma grande quantidade de estudantes para o sistema, mas não se preocupou em estabelecer mecanismos para financiá-los adequadamente. Tanto que as bolsas de agências federais estão sem reajuste há nove anos”, diz.

A pandemia ampliou o rol de dificuldades. “Os estudantes foram para casa tentar concluir suas pesquisas, mas muitos não conseguiram. A acumulação do trabalho doméstico gerou uma queda generalizada de produtividade”, considera a presidente da ANPG, mencionando uma pesquisa do movimento Parent in Science, segundo a qual apenas 9,9% das alunas de pós-graduação que são negras e têm filhos conseguiram manter o andamento de suas teses e dissertações no período de isolamento social – entre as mães brancas, o índice foi ligeiramente melhor, de 11,6%.

Ela viveu essas dificuldades de modo expressivo durante a pandemia. Concluiu o mestrado em história econômica na USP em 2021, com bolsa do CNPq. Em seguida concorreu a um processo seletivo para o doutorado no mesmo programa, e foi aprovada. Durante a formação, teve um casal de filhos, uma menina hoje com quase 3 anos e um menino de 1 ano. “Atrasei a conclusão do mestrado em um ano e meio, porque tirei licença-maternidade e veio a pandemia. No ano passado, estava na maternidade quando terminei de escrever o projeto de doutorado”, conta.

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