No final de março, pesquisadores e autoridades de 129 países participaram em Medelín, Colômbia, da 6ª Plenária da Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), painel ligado às Nações Unidas que busca organizar o conhecimento científico e outras formas de conhecimento sobre a biodiversidade e os benefícios que ela fornece para a vida humana no planeta. Relatórios sobre degradação e restauração de áreas e a respeito da situação da biodiversidade em quatro regiões foram aprovados na plenária. A organização das informações teve a colaboração direta de 25 pesquisadores brasileiros, que até julho devem divulgar outro diagnóstico, esse específico sobre a situação do país, coordenado pelos biólogos Carlos Joly, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Fábio Scarano, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A bióloga Cristiana Simão Seixas, de 47 anos, teve um papel de destaque nesse grupo. Foi uma das coordenadoras do Diagnóstico das Américas do IPBES, documento que mapeou a velocidade da perda da biodiversidade no continente e seus impactos na qualidade de vida humana e sugeriu estratégias para refrear o processo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp, ela se envolveu nos últimos anos com um tema de pesquisa que está no cerne das preocupações da plataforma: as interações entre conservação da biodiversidade e desenvolvimento econômico e social. Criada na zona rural do interior paulista, ela se interessa pelo assunto desde que escolheu a graduação em biologia e o mestrado em ecologia, realizados na Unicamp, e passou a desenvolvê-lo em seu doutorado em Gestão Ambiental e de Recursos Naturais na Universidade de Manitoba, no Canadá, concluído em 2002. Na entrevista a seguir, ela expõe as conclusões do diagnóstico, explica a importância dos conhecimentos tradicionais e mostra por que é preciso contabilizar também os valores imateriais da biodiversidade.
O que foi avaliado no diagnóstico das Américas?
O foco do diagnóstico não foi simplesmente mostrar que estamos perdendo biodiversidade. Isso todo mundo já sabe. O objetivo foi apontar a velocidade desse processo e como a contribuição da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos para a qualidade de vida das pessoas vem mudando. A partir disso, levantamos cenários e as opções de políticas para tentar frear a perda.
Qual é a dimensão dela?
Os dados mostram que 95% das pradarias na América do Norte já se transformaram em áreas dominadas pela ação humana. O mesmo vale para 88% da Mata Atlântica, 70% dos Campos do Rio de la Plata, incluindo os Pampas, 50% do Cerrado, 17% da floresta amazônica e por aí vai. Em algumas regiões, a biodiversidade diminui muito rapidamente. Ainda assim, as Américas possuem 40% da chamada biocapacidade global, que é a possibilidade de prover serviços e benefícios para a humanidade. Isso é medido pelo potencial ecológico dos ecossistemas das Américas, pela contribuição de tecnologias e pela capacidade de absorver os dejetos da produção econômica. O continente tem 13% da população do mundo e 40% da capacidade global de produzir serviços para a humanidade. Ao mesmo tempo, temos 22,8% da pegada ecológica do mundo, o que é evidentemente desproporcional. A pegada ecológica é o impacto que a produção econômica e o desenvolvimento dos países causa nos ecossistemas. Ela continua crescendo na América do Sul, no Caribe, na América Central. Mas nos Estados Unidos e no Canadá, embora sejam responsáveis por dois terços da pegada ecológica do continente, a tendência é de diminuição. Esta é a boa notícia: é possível frear esse processo.
“Não há uma parte do mundo que seja intocada pela ação humana. Isso não existe nem no polo Norte”
Como fazer isso?
O diagnóstico mostra aqui e acolá iniciativas que estão conseguindo dar uma refreada em algumas áreas. É preciso aprender com os exemplos que estão funcionando. Há um crescimento econômico desordenado, expansão da agropecuária, da mineração e da poluição, além das mudanças climáticas. Mas também há iniciativas, ainda em pequena escala, de agricultura sustentável, práticas sustentáveis de manejo de água, de floresta, de pesca, de caça etc. Nesse sentido, temos muito o que aprender com populações tradicionais e indígenas. O diagnóstico aponta que as Américas são uma região não só altamente biodiversa mas também culturalmente diversa.
A que se deve a queda na pegada ecológica da América do Norte?
Não dá para dizer exatamente, mas há mudanças no comportamento humano e no padrão de consumo. A agricultura orgânica cresce, temos agroflorestas, menor uso de inseticidas e legislações que controlam resíduos industriais.
E na América do Sul? Qual o potencial para reduzir?
O aumento da nossa pegada ecológica tem a ver com muitas pessoas saindo da linha de pobreza e consumindo mais. Isso tem o lado bom, que é a questão socioeconômica. Tem um dado importante a analisar, o da reserva ecológica de cada país, que é a biocapacidade menos a pegada ecológica. Nos Estados Unidos, o balanço é negativo. No Brasil é bastante positivo e o potencial para promover um desenvolvimento sustentável é grande.
Como a diversidade cultural e a biológica andam juntas?
A proposta do IPBES é fornecer o melhor conhecimento disponível para a tomada de decisão. Isso depende da ciência e também de conhecimento das comunidades indígenas ou tradicionais. As populações que vivem em um ecossistema entendem como ele funciona. Há um sistema de valores e de conhecimento acoplado ao sistema biofísico. Essas populações podem ensinar a manejar ecossistemas de maneira sustentável, tirando o máximo proveito dele, sem destruí-lo.
Como é possível incorporar esse tipo de conhecimento ao diagnóstico?
Incorporamos esses exemplos na forma de estudos de caso. Por definição, esse conhecimento é local. Fizemos um esforço para coletar trabalhos etnográficos, antropológicos e etnobiológicos, que mostram, por exemplo, como populações indígenas vêm manejando a caça de forma sustentável por séculos. Também se mostrou que as populações indígenas no alto rio Negro criaram novas variedades de mandioca, por meio de manejo e cruzamentos.
Há outros destaques?
Não tem um que seja mais representativo. São casos únicos e cada um tem particularidades. O manejo da mandioca no rio Negro, na Amazônia brasileira, é um exemplo. Há relatos, agora comprovados com imagens de satélite, que muito do que achávamos que eram florestas intactas na Amazônia são na verdade áreas manejadas e desenhadas pelas populações que viveram ali em outras épocas, que exploraram, por exemplo, as castanheiras. O homem maneja esses ambientes há milhares de anos (ver reportagem à pág. 18). Não tem uma parte do mundo que seja intocada pela ação humana. Isso não existe nem no polo Norte.
Como foi reunir pesquisadores de áreas diferentes para produzir o diagnóstico?
É preciso compreender como funciona o IPBES. Em cada diagnóstico, abre-se uma chamada para pesquisadores e pessoas interessadas. Oitenta por cento dos participantes devem ser indicados por governos – no caso do Brasil, pelo Itamaraty – e 20% pela sociedade civil e setor privado. Aí, o IPBES faz a seleção final. Embora a proposta é que haja uma paridade entre pesquisadores de ciências humanas e ciências naturais, isso não foi possível. As indicações feitas eram predominantemente da área biológica. Assim, a grande maioria foi de biólogos, ecólogos, agrônomos, cientistas do clima e houve poucos economistas, sociólogos e antropólogos. Também se buscou reunir pessoas representativas dos diversos biomas e sub-regiões das Américas. Entretanto, não havia especialistas no Ártico. A solução foi convidar 50 autores contribuintes, especialistas que ajudam a escrever alguns parágrafos sobre um dado tema.
Como conciliar a preservação da biodiversidade com o desenvolvimento?
O diagnóstico deixa claro que as áreas protegidas são muito importantes para a conservação, mas insuficientes. E que estratégias de restauração são igualmente importantes para áreas degradadas, mas não devem ser a política principal. Precisamos pensar em como manejar de forma mais sustentável as áreas que já estamos explorando. É possível? Eu acredito que sim. Tem que ter força política e lidar com inúmeros interesses, mas o diagnóstico apresenta várias possibilidades. No caso da agricultura, há conhecimento sobre como aumentar a produtividade em uma área sem ter muito impacto. Outro ponto: é necessário gerar mais energia, já que a população está crescendo. Quais seriam as opções? Talvez seja preciso construir uma hidrelétrica, sim. Elas não devem ser vistas sempre como vilãs. Mas deve-se fazer hidrelétricas em áreas onde haja uma caída de água grande e com pouco impacto. Sempre há opções e, entre elas, uma combinação que gere menos perdas. É necessário colocar as diferentes opções e as perdas e ganhos no papel, mas não vale contabilizar só o valor econômico. Quando uma população indígena é deslocada da sua área, não perde só o ganha-pão. Vai perder cultura e conhecimento desenvolvidos localmente. Muitas populações deslocadas acabam desaparecendo. As Américas concentram 15% das línguas do mundo e quase dois terços delas estão sendo ameaçadas ou em risco de extinção. Há muita cultura deslocada por construção de barragens, exploração da minérios e conflitos de terras.
Como mudar comportamentos?
Não se vai longe sem promover uma conscientização maior. Se perguntar a uma pessoa quanto do bem-estar dela vem da natureza, ela provavelmente vai mencionar a alimentação. Na verdade, é a comida, a água, a roupa que veste, o ar que respira. O bem-estar de caminhar numa praça, num parque, numa mata, tudo vem da natureza. Com a vida nas cidades, as pessoas perderam essa percepção. Além disso, suas opções de consumo geram impactos na natureza sem que elas se deem conta disso. A questão não é parar de consumir, mas de ter um consumo consciente. Qual é o alimento que eu vou comprar? Conheço o impacto que ele teve na natureza? Vou comprar qualquer madeira para construir a minha casa ou apenas madeira certificada? Essas escolhas podem ajudar a minimizar o impacto. Outro foco é criar políticas que organizem melhor a paisagem. As plantas se dispersam, por exemplo, pelo vento ou com a ajuda dos pássaros. Precisamos pensar em corredores ecológicos para fauna e flora, em incentivar a ter mais polinizadores para aumentar a produção de culturas agrícolas. Um dos diagnósticos aprovados anteriormente pelo IPBES tratou da polinização. Baseado nele, a França criou uma política para colocar plantas silvestres à beira das estradas, porque elas atraem insetos polinizadores e isso ajuda a aumentar a produtividade da agricultura.
O peso do agronegócio na economia brasileira atrapalha essas estratégias?
Sou filha de produtor rural e não vejo as divergências entre o agronegócio e os ambientalistas como inconciliáveis. No diagnóstico brasileiro, fomos conversar com o setor produtivo, com indígenas, com organizações não governamentais. Tem muita gente no agronegócio que tem consciência ambiental e está produzindo de modo mais sustentável. Tem muito vilão também. O país precisa investir em mobilização de conhecimento. Já geramos muito conhecimento e agora temos de levá-lo aos tomadores de decisão e fóruns de debate. Como se leva isso ao agricultor familiar e às grandes empresas agropecuárias ou às mineradoras? Um tomador de decisão muitas vezes não se dá conta de que o bem-estar dele e de seus eleitores está ligado à natureza.
Por que a restauração de áreas degradadas não é considerada uma prioridade?
Se a restauração fosse a solução, poderíamos desmatar tudo para restaurar mais tarde. O prejuízo disso seria enorme. A restauração é necessária para áreas já degradadas. Mas, quando restauramos, não é possível recuperar 100% dos serviços e dos benefícios que a natureza provê nem a biodiversidade que existia antes. É possível restaurar a parte arbórea de uma mata degradada. Em relação à fauna, tanto a dos microrganismos do solo como dos pássaros e mamíferos, é outra conversa. Também não se consegue restaurar uma parte imaterial da degradação. Eu e minha família podemos ter uma relação com uma árvore porque ela foi plantada por meu bisavô. Se alguém tirar a árvore, pode-se até plantar outra no lugar, mas o valor relacional nunca vai ser o mesmo.
O que o diagnóstico diz sobre a competição entre bioenergia e alimentos pelo uso da terra?
Foi um tema inconclusivo. Tanto a expansão da cana-de-açúcar quanto a da produção de alimentos podem gerar prejuízo se não forem feitas de forma sustentável. O ponto é que sempre há ganhos e perdas – e não só para uma dada região, como também para lugares distantes onde esse produto vai ser levado. É preciso levar tudo isso em conta. Na questão da água é a mesma coisa. Gasta-se muita água para produzir alimento. A tensão é entre a segurança hídrica e a segurança alimentar. A água não teve valor econômico nas tomadas de decisão durante séculos. Só há pouco tempo, numa situação de escassez, é que se começou a valorar a água.
Que lacunas ficaram no diagnóstico?
Tem muito ainda a ser descoberto em termos de biodiversidade e de funcionamento dos ecossistemas. Os bancos de dados disponíveis sobre dados socioeconômicos baseiam-se em países, em divisões geopolíticas, enquanto as informações sobre biodiversidade se relacionam, geralmente, a bioma. Outra questão é que muitos estudos são feitos localmente, e sabemos muito pouco sobre o quanto as suas conclusões podem ser generalizadas. Temos também dificuldade em correlacionar os benefícios da natureza com qualidade de vida, incluindo seus valores econômicos e imateriais.
É trabalho para que ramo de pesquisa?
É um desafio para economistas, antropólogos, sociólogos. Pense nas áreas verdes urbanas, no quanto ter contato com a natureza aproxima as pessoas e faz com que se socializem. Isso traz bem-estar. Mas como se mede isso? Outra questão é compreender melhor a relação entre vetores indiretos da mudança da biodiversidade, como o crescimento populacional, o desenvolvimento insustentável, a falta de governança efetiva, a desigualdade, com os vetores diretos, como o desmatamento, a mudança climática, a fragmentação de hábitat, a sobre-exploração dos recursos. Podemos fazer políticas para frear o desmatamento, mas primeiro precisamos entender as causas. No fundo, esse processo se acelera porque há cada vez mais gente no mundo. As Américas têm 1 bilhão de habitantes e é esperado que chegue a 1,2 bilhão em 2050 e que o PIB do continente dobre no mesmo período. Qual será o impacto ambiental disso se não optarmos por um padrão de vida mais sustentável em termos de produção e consumo? Tal opção exige uma mudança comportamental em todos os níveis: do indivíduo às grandes corporações, passando, é claro, pelas instituições governamentais.