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HISTÓRIA

Cristianismo negociado

Entre os séculos XVII e XVIII, jesuítas de missões da Amazônia espanhola tiveram que lidar com versões indígenas do catolicismo

Podcast: Francismar de Carvalho

 
     
A evangelização dos índios da Amazônia pelos europeus não se reduziu a uma absorção passiva do pensamento ocidental. As noções cristãs tiveram de ser traduzidas para as línguas ameríndias e adquiriram significados que os missionários não podiam controlar – mesmo porque muitas funções religiosas eram na verdade exercidas pelos nativos, dada a escassez de padres. A conversão não foi propriamente uma imposição unilateral e sim um “diálogo intercultural”, no qual os indígenas adaptaram o cristianismo a suas matrizes de pensamento. A amplitude desse intercâmbio intelectual vem sendo estudada pelo historiador Francismar Alex Lopes de Carvalho em seu estágio de pós-doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) desde 2013. A pesquisa abrange as missões de Maynas e Mojos, criadas nos atuais Equador e Bolívia por jesuítas a serviço da Espanha. O material ana-lisado pelo pesquisador, em grande parte inédito, foi localizado em arquivos e bibliotecas na Espanha, na Itália, em Portugal e nos Estados Unidos.

A primeira etapa do trabalho de Carvalho foi concluída e resultou na publicação, este ano, de um artigo na revista Varia Historia, editada pela Universidade Federal de Minas Gerais, e de um segundo aceito na revista Anuario de Estudios Americanos, da Escuela de Estudios Hispano-Americanos de Sevilha (Espanha). De acordo com o pesquisador, as missões de Mojos foram estabelecidas em 1682 e prosperaram devido à produção de cacau, sebo, cera, açúcar e tecidos. Reuniam 24.914 índios batizados em 1713. Já as de Maynas, criadas em 1638, não tiveram a mesma sorte. Atingidas por sucessivas epidemias, não conseguiam sobreviver sem subvenções da administração colonial. Produziam grãos, cacau e salsaparrilha, mas sempre em pequenas quantidades. Em 1719 somavam apenas 7.966 almas.

Carvalho interessou-se por esse diálogo intercultural entre europeus e indígenas ao elaborar sua tese Lealdades negociadas: povos indígenas e a expansão dos impérios ibéricos nas regiões centrais da América do Sul (segunda metade do século XVIII), defendida em 2012 no Departamento de História da FFLCH e publicada como livro pela editora Alameda em 2014. Nesse trabalho, ele observa que a conquista da Amazônia por portugueses e espanhóis se baseou numa política de cooptação dos líderes tribais, por meio da qual os caciques barganhavam vantagens materiais em troca do apoio aos colonizadores.

Finda a tese, ele passou a estudar de que maneira os indígenas da região se apropriaram do catolicismo – e constatou que as negociações entre europeus e nativos também se estendiam à esfera ideológica. Os índios assimilavam os conceitos cristãos, mas conferiam significados estranhos às noções originais, o que levou à emergência de um cristianismo híbrido.

Essa “barganha espiritual” começava nas “entradas missionárias” – prática que provavelmente remonta ao padre Manoel da Nóbrega em São Paulo no século XVI: ladeados por soldados, os jesuítas “convidavam” os índios a migrar para suas povoações; se eles não quisessem, “estariam sujeitos a uma ‘guerra justa’ movida pela tropa”, conta Carvalho. O objetivo dessas entradas era obrigar os nativos a aceitar “a fé pelo medo”, como esclareceu o cientista político José Eisenberg no livro As missões jesuíticas e o pensamento político moderno (UFMG, 2000).

O mesmo procedimento era aplicado na Amazônia. Contudo, como as fronteiras ali ainda eram fluidas, portugueses e espanhóis precisavam disputar a lealdade dos índios. O convencimento, portanto, tinha de ir além da mera violência. Pedro Puntoni, professor da FFLCH-USP e orientador da tese de Carvalho, observa que “o contexto da fronteira é decisivo” para explicar a negociação com os líderes tribais, que resultou na concessão de benefícios econômicos e certa autonomia administrativa às etnias.

Como eram poucos, os missionários repassavam aos índios diversas atribuições, como as tarefas de catequistas, sacristãos, músicos e fiscais da doutrina. A delegação dessas funções, quase todas de caráter espiritual, restringia muito o poder dos jesuítas para impor suas ideias. “Nas missões de Maynas”, explica Carvalho, “os missionários tiveram de lidar com interpretações alternativas que os índios faziam da doutrina cristã, as quais os padres não podiam evitar de todo, porque dependiam dos conceitos disponíveis nas línguas locais e de auxiliares nativos para fazer avançar a conversão”.

Página de rosto de um léxico da língua dos índios tucanos escrito por um jesuíta

NEW YORK PUBLIC LIBRARY Página de rosto de um léxico da língua dos índios tucanos escrito por um jesuítaNEW YORK PUBLIC LIBRARY

Essa resistência indígena ao pensamento europeu se manifestava aos missionários como obra do demônio. Daí a profusão dessa figura nos relatos dos jesuítas. Mas, como escreve o autor em seu artigo publicado na Varia Historia, tais menções não constituíam apenas uma rejeição aos indígenas e sim “uma tentativa de estabelecer pontes analógicas por meio das quais o diálogo intercultural e a negociação do universo do sagrado podiam fluir”.

Por que a figura do demônio adquiriu tal centralidade no diálogo intercultural? Segundo Carvalho, tudo começou porque muitos religiosos partilhavam da convicção de que, após a cristianização da Europa, “o demônio e sua horda infernal haviam se retirado para a América”. O Novo Mundo estava sob “a tirania de Satanás” – daí a obsessão em identificar traços demoníacos nas crenças exóticas.

“É nesse cenário de ‘demonização’ das deidades indígenas que os padres operaram uma metamorfose nas entidades espirituais que causavam danos na figura cristã do diabo”, diz Carvalho. Nessa metamorfose, porém, o conceito cristão experimentou mudanças relevantes. Os índios incorporaram o demônio cristão como uma divindade a mais em seu panteão ou simplesmente passaram a chamar de diabo certos espíritos malignos já conhecidos.

Os religiosos nem sempre podiam evitar deslocamentos no significado do termo “demônio” devido à estratégia linguística que eles adotavam. Para enaltecer as noções cristãs, diz Carvalho, “os jesuítas preferiam manter em espanhol os termos positivos e centrais para a Igreja, como Deus, sacramentos etc., e lançar mão das palavras nativas para descrever o negativo”. Tamanha sutileza, porém, acarretava consequências inesperadas, pois os missionários não podiam controlar os significados atribuídos às antigas entidades indígenas, nem tampouco impedir que os nativos usassem esses termos negativos para denotar os próprios espanhóis.

A tradução dos conceitos europeus para o pensamento tribal enfrentava outras limitações. Se os nativos aceitaram bem a ideia de demônio, o mesmo não se pode dizer da ideia de inferno. “O conceito parecia absurdo aos indígenas”, explica o pesquisador. “Como dar crédito à existência do inferno, um lugar onde seus antepassados, que não haviam conhecido o cristianismo, padeceriam eternamente juntos com os mais prestigiosos guerreiros e xamãs?”

As dificuldades dos jesuítas não cessavam aí: as tentativas de eliminar o papel dos xamãs como intermediários com o mundo espiritual também fracassaram. “Os missionários não podiam destruir completamente a crença comum no poder dos xamãs porque eles mesmos eram aceitos nas comunidades como xamãs mais poderosos, generosos e efetivos”, assinala Carvalho. “O missionário era visto como alguém que possuía a inusual capacidade de manipular forças espirituais. Por essa razão, era um provedor tanto de benefícios como de pragas e maldições.”

Vista do século XVIII de uma aldeia da missão de Maynas

OLIVEIRA LIMA LIBRARY Vista do século XVIII de uma aldeia da missão de MaynasOLIVEIRA LIMA LIBRARY

Em outras palavras: os padres eram respeitados pelos indígenas, em parte porque assumiram funções como a distribuição de bens e a intermediação com o mundo sobrenatural, que eram da competência dos xamãs. De acordo com Carvalho, os jesuítas não podiam, portanto, investir contra alguns dos esquemas de pensamento nativos que asseguravam a sua aceitação. Empenharam-se, assim, em relegar os feiticeiros indígenas ao ostracismo, salvo em alguns casos em que, por não se oporem ao Evangelho, podiam ser incorporados como auxiliares.

Nem sempre, contudo, os missionários eram bem-sucedidos em negociar sua inserção nas comunidades, e não foram raros os casos de sublevação e martírio de padres. Na dissertação A expressão da vontade: relações interétnicas e rebelião indígena nas missões de Maynas (1685-1698), defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em 2009, a atual doutoranda Roberta Fernandes dos Santos mostrou as dificuldades do padre Enrique Richter em estabelecer uma missão às margens do rio Ucayali. “Ao que parece”, sugere Carvalho a respeito desse episódio, “o padre teria rompido a negociação inicial que facultou sua aceitação pelos índios, ao não suprir os itens prometidos, ausentar-se por longos períodos e impor uma disciplina que não foi tolerada”. A rebelião culminou com o assassinato do jesuíta em 1695.

Mas é precisamente nessas situações de conflito que a “demonização” das crenças indígenas mostrava sua face positiva. No artigo “Contato, guerra e negociação: redução e cristianização de Maynas e Jeberos pelos jesuítas na Amazônia no século XVII”, publicado na Revista de História Unisinos em 2007, Fernando Torres-Londoño, professor do Departamento de História da PUC-SP, observa que a presença do demônio acabava por eximir os indígenas de qualquer “responsabilidade quando emergia o conflito”.

Na visão dos jesuítas, explica Carvalho, como as rebeliões podiam ser creditadas a Satanás, abria-se um canal de reconciliação com os revoltosos. “A rigor”, conclui o pesquisador, “atribuir ao demônio a responsabilidade pelos martírios e destruição das missões tornava os índios tão humanos quanto os europeus”.

Projeto
O governo dos índios: instituições municipais ibéricas e identidades indígenas nas missões de Maynas e Mojos (segunda metade do século XVIII) (nº 2012/06580-6); Modalidade Bolsa no País – Pós-doutorado; Pesquisador responsável Pedro Luís Puntoni (FFLCH-USP); Bolsista Francismar Alex Lopes de Carvalho (FFLCH-USP); Investimento R$ 160.172,31.

Artigos científicos
CARVALHO, F. A. L. de. Imagens do demônio nas missões jesuíticas da Amazônia espanhola. Varia Historia. v. 31, n. 57, p. 1-45. set.-dez. 2015.
CARVALHO, F. A. L. de. Estrategias de conversión y modos indígenas de apropiación del cristianismo en las misiones jesuíticas de Maynas, 1638-1767. Anuario de Estudios Americanos. No prelo.

Livro
Carvalho, F. A. L. de. Lealdades negociadas: povos indígenas e a expansão dos impérios ibéricos nas regiões centrais da América do Sul (segunda metade do século XVIII). São Paulo: Alameda, 2014. 596 p.

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