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Anatomia

Danos da fome

Dieta pobre em proteína reduz o tamanho e o número de neurônios do sistema digestivo

ReproduçãoCandido Portinari, Menino do Tabuleiro, 1947, óleo sobre tela, arquivo gentilmente cedido pelo projeto portinari. reprodução autorizada graciosamente por João Candido PortinariReprodução

A fome é mais fome entre os povos pobres que entre os ricos. O prato dos 34 milhões de famintos dos países industrializados é mais farto que o dos 790 milhões de homens, mulheres e crianças que todos os dias acordam e se deitam de estômago vazio nas 98 nações mais carentes do mundo. O primeiro grupo consome em média 130 quilocalorias (um bife) a menos por dia que o indicado para a maioria das pessoas, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação. Essa energia faz falta, mas prejudica menos o corpo do que a carência imposta ao segundo grupo, que deixa de ingerir 450 quilocalorias diárias. Os danos da fome não são determinados apenas pelo teor de calorias consumidas. Estudos com ratos conduzidos em São Paulo mostram que a carência de proteínas prejudica o funcionamento do sistema digestivo, gerando um círculo vicioso em que a fome alimenta a fome.

Roedores mantidos sob uma dieta pobre em proteínas na fase crucial do desenvolvimento do sistema nervoso apresentaram redução no tamanho e no número de neurônios que controlam o funcionamento do intestino delgado, a porção do sistema digestivo responsável pela absorção de nutrientes. No Laboratório de Estereologia Estocástica e Anatomia Química (LSSCA) Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de São Paulo, a equipe do estereologista Antonio Augusto Coppi alimentou por seis semanas ratos com duas dietas distintas. Nos 21 dias da gestação e nos primeiros 21 dias de vida, um grupo consumiu a ração tradicional (com 20% de proteína), enquanto o segundo recebeu uma ração com idêntico valor calórico, mas só 5% de proteína.

As consequências da dieta pobre em proteínas impressionam. Houve uma redução de 63% no número de neurônios do gânglio celíaco dos animais que consumiram menos proteínas, em comparação com os tratados com a ração normal. Situado no abdômen, esse gânglio controla a motilidade gastrointestinal e, indiretamente, a absorção de nutrientes. Além de se encontrarem em quantidade menor, os neurônios restantes eram em média 24% menores (atrofiados) do que os dos ratos tratados com níveis normais de proteína. O gânglio celíaco encolheu 78%. “Os ratos que ingeriram menos proteínas eram caquéticos e tinham sinais de desidratação”, conta Coppi, que trabalhou com Patrícia Castelluci, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, responsável por criar o protocolo de desnutrição usado no estudo.

Publicados em dezembro de 2009 no Journal of Neuroscience Research, esses resultados preocupam. É que o mau funcionamento dos intestinos pode, nos casos mais graves, matar. Cavalos das raças mangalarga e paint horse, por exemplo, costumam nascer com um defeito genético que impede ou limita a formação adequada do gânglio celíaco e de neurônios do intestino. “Esses potros não absorvem nutrientes e morrem de cólica em três ou quatro dias”, explica Coppi.

Dogma antigo
A abordagem da equipe do LSSCA pode ajudar a desfazer um antigo dogma da biologia: o de que a carência de proteínas não diminui o número de neurônios do intestino. “Estudos anteriores usando modelos semelhantes de desnutrição proteica só reportaram a redução no tamanho dessas células”, diz Coppi. Ele atribui a diferença vista agora ao método de contagem de células usado em seu laboratório: a estereologia, que permite a análise quantitativa em três dimensões (comprimento, largura e espessura) das amostras de células ou tecidos. “Em geral os morfometristas usam técnicas que avaliam os perfis ou contornos das células em apenas duas dimensões”, conta. “Mas as células são tridimensionais e ainda podem se mover.”

Nas estratégias de contagem bidimensionais como a morfometria 2D calcula-se a área dos perfis das células de um tecido e o número de perfis no campo de visão do microscópio com base na forma aparente deles e na área total do órgão estudado. Um dos problemas é que no preparo das amostras células são cortadas com diferentes orientações e, por exemplo, uma célula esférica pode aparecer em duas dimensões com o formato de elipse e tamanhos variados. “Esse tamanho não corresponde ao tamanho real da célula”, afirma Coppi. Em seguida, projeta-se o número de perfis por área para a área total do órgão analisado. “Eles assumem erroneamente que a distribuição de perfis corresponde à distribuição real de células e que ela é constante em todo o órgão”, critica.

Usando a estratégia bidimensional, pesquisas anteriores avaliaram o efeito da restrição proteica sobre os neurônios da parede dos intestinos e mostraram redução apenas no tamanho celular. Esse resultado chegou a induzir interpretações bem diferentes: já se propôs até que essa privação favorecesse a proliferação de neurônios, pois se observavam mais células menores (supostamente mais jovens). “Isso deixa claro que o uso de métodos de contagem inadequados pode levar a conclusões desastrosas”, afirma Coppi, treinado em estereologia por Terry Mayhew, da Universidade de Nottingham, Inglaterra, e por Hans Gundersen, da Universidade de Aarhus, Dinamarca, dois dos pioneiros na aplicação da estereologia às ciências médicas e biológicas.

O Projeto
Inervação dos vasos cerebrais de roedores durante o desenvolvimento pós-natal. Possíveis modelos para o estudo do acidente vascular cerebral (avc) (nº 05/53835-6); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Co­or­de­na­dor Antonio Augusto Coppi Ribeiro – FMVZ/USP; Investimento R$ 305.527,35 (FAPESP)

Artigos científicos
GOMES, S.P. et al. Atrophy and neuron loss: effects of a protein-deficient diet on sympathetic neurons. Journal of Neuroscience Research. v. 87 (16).p. 3.568-75. Dez. 2009.
DE SOUSA, F.C. e DE MIRANDA NETO, M.H. Morphometric and quantitative study of the myenteric neurons of the stomach of malnourished aging rats. Nutritional Neuroscience. v. 12(4). p. 167-74. Ago. 2009.
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