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Carta da editora | 171

De tragédias, medos e riso

Parte nada desprezível das piores imagens de dor e desespero que transbordaram da mídia na sequên­cia das chuvas intensas que caíram sobre São Paulo, Rio de Janeiro e tantas outras cidades brasileiras nestes primeiros meses do ano está inapelavelmente ligada – e cansados estamos todos de sabê-lo – à precariedade material da vida de vastas parcelas da população urbana no país. Aos riscos extremos, se preferirmos, inerentes aos modos como se inserem no tecido urbano, chamem-se os aglomerados de suas moradias favelas, invasões, cortiços ou outra denominação qualquer. São todas formas frágeis de habitação a clamar há décadas por políticas públicas eficientes e que se estendem por gigantescas áreas vulneráveis a qualquer evento meteorológico ou climático um tanto mais forte. Outra parte das cenas pós-chuvas que se reproduziram à náusea nestes meses para a opinião pública brasileira pode estar relacionada ao excesso de concreto, à falta de áreas verdes, às dificuldades de circulação de ar em cidades como São Paulo, por exemplo, provocadas pela implantação de prédios muito altos e muito próximos uns dos outros – a uma mudança climática, enfim, não necessariamente produzida pelo aquecimento global, mas gerada por um fenômeno local.

Importante, entretanto, é enfatizar que os chamados eventos extremos de curta duração – dos quais as citadas chuvas são um exemplo – devem se intensificar nos próximos anos, segundo os estudiosos do tema. E muitos deles estão empenhados não apenas em compreender melhor tais fenômenos, como em oferecer sólidas ferramentas científicas para embasar políticas públicas capazes de enfrentá-los num novo patamar. Nesse quadro é que se insere o projeto “Identificação das vulnerabilidades das megacidades brasileiras às mudanças climáticas”, objeto da bela reportagem de capa desta edição, a partir da página 16, assinada pela editora assistente de tecnologia Dinorah Ereno. Trata-se de um amplo estudo articulado com o programa internacional Megacidades, realizado no âmbito da Rede Brasileira de Pesquisas em Mudanças Climáticas e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas sob a coordenação do climatologista Carlos Nobre e, até recentemente, também do demógrafo Daniel Joseph Hogan, falecido precocemente no último dia 27 de abril. O primeiro fruto do projeto é o mapa de vulnerabilidades da Região Metropolitana de São Paulo, a ser apresentado em breve às autoridades governamentais, que, entre outras indicações, mostra as áreas de maior risco de deslizamento de encostas e inundações hoje e sua projeção para 2030, se nada se fizer em relação ao modelo até aqui adotado de expansão urbana em São Paulo, com a ocupação desordenada de áreas periféricas, entre outros problemas.

Gostaria de destacar ainda brevemente nesta edição, primeiro, a reportagem de abertura da seção de ciência, elaborada pelo editor Ricardo Zorzetto, na qual ele trata de um estudo que propõe, com base em experiências com modelos animais, que o caminho percorrido pelo medo no cérebro não é único e que, a depender da situação que gera esse sentimento primário, diferentes circuitos celulares são acionados (página 46); também a reportagem de abertura das humanidades, na qual o editor Carlos Haag trata de novos estudos que vão trazendo à luz a lógica da repressão da ditadura brasileira de 1964 a 1985, por meio dos documentos dos próprios arquivos policiais da repressão, como os relatórios elaborados por agentes responsáveis por prisões e torturas (página 80); e por fim, na seção de política científica e tecnológica, a reportagem do editor Fabrício Marques que dá uma visão extremamente fiel da Conferência Paulista de Ciência, Tecnologia e Inovação, uma preparação das mais importantes para a Conferência Nacional que acontecerá em Brasília de 26 a 28 deste mês de maio.

Depois de tantos temas densos, às vezes graves, permito-me sugerir aos leitores que concluam a leitura da revista pelo conto de Vanessa Barbara, na página 96. Além de muito bom, é hilariante, tanto que me peguei, ao lê-lo, rindo quase tanto quanto o faço a cada vez que revejo Peter Sellers, impagável, em Um convidado bem trapalhão.

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