O entusiasmo com que a pesquisadora Hisako Gondo Higashi fala do seu trabalho no Instituto Butantan, onde atualmente ocupa o cargo de diretora da Divisão de Desenvolvimento Tecnológico e Produção, é a mais perfeita tradução de uma vida dedicada ao desenvolvimento e fabricação de vacinas e soros. Hisako nasceu em Lins, no interior paulista, em 1943, descendente de imigrantes japoneses que trabalhavam na lavoura, e cresceu em São Paulo, para onde seus pais se mudaram pensando no futuro dos filhos. O primeiro contato com a centenária instituição paulistana se deu quando ela ainda era estudante de farmácia e bioquímica na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara. “Passava praticamente as minhas férias aqui, fazendo estágios curriculares na área de fisiopatologia com a doutora Linda Nahas”, relembra Hisako, chamada de Hisa pelos colegas do instituto.
Em 1967, quando se formou, foi convidada para fazer um estágio como bolsista na área de fisiopatologia. “Meu sonho na época, como o de todo estudante recém-formado, era trabalhar em pesquisa”, relembra. Mas uma mudança involuntária nos seus planos a conduziu para o laboratório de produção de toxóide tetânico (vacina antitetânica), onde precisavam de recém-formados. “Quando fui para a área de produção imaginava que seria uma tarefa rotineira e não queria isso”, diz Hisako. Olhando em retrospectiva as quatro décadas dedicadas à produção, com alguns intervalos em que, por necessidade de mudanças no próprio instituto, ocupou cargos burocráticos e esteve afastada do que mais gosta de fazer, a pesquisadora não tem dúvida: “Fiz uma boa escolha, porque produção não é rotina”. E ressalta que é preciso sempre estar atenta às tendências, estudar, estar em contínua renovação para poder acompanhar a evolução constante dos produtos. “Uma das coisas de que eu mais gosto é avaliar e planejar quais modificações podem ser feitas para otimizar a produção.”
Foi no laboratório de produção de toxóide tetânico que a pesquisadora efetivamente adentrou o universo das vacinas. Não a produção como é feita hoje, mas a de 40 anos atrás. “Praticamente eu e mais duas colegas montamos a produção da vacina tríplice bacteriana, ou DTP, no Butantan”, relata a pesquisadora. Na época o instituto produzia as vacinas contra tétano, difteria e coqueluche, ou pertussis, mas no Brasil ainda não havia sido feita a mistura das três. “Foi muito difícil, porque tivemos que partir praticamente do zero até chegar a uma formulação correta”, diz Hisako. “Mas foi uma grande conquista, porque contribuímos para a redução do número de vacinas aplicadas nas crianças”, diz. Em vez de três ou quatro injeções, elas passaram a receber uma única.
Depois disso participou da formulação da vacina dupla bacteriana, para adultos. Nesse laboratório, onde ficou durante 18 anos, Hisako foi protagonista de vários avanços científicos. Um deles, ainda na década de 1960, começou com um estudo realizado para os estudantes de odontologia que participavam do Projeto Rondon. Pelo projeto, iniciado em 1967, estudantes universitários passavam um período, durante as férias escolares, em regiões carentes do país, atendendo as populações locais. Como os estudantes de odontologia levavam os materiais para o mato, onde eram feitos os atendimentos, eles não tinham certeza se realmente conseguiam esterilizá-los com o aquecimento. Na época não havia produção suficiente de vacinas para atender o país inteiro nem programa de imunização e ainda ocorriam muitas mortes no Brasil em decorrência do tétano, doença causada por uma bactéria encontrada em vários tipos de solo. Por isso havia o risco de os materiais usados nos tratamentos dentários, como agulhas de anestesia e de sutura, ficarem contaminados com esporos do bacilo causador da doença. “Tivemos a idéia de esterilizar o material em panela de pressão, que nada mais é do que uma pequena autoclave doméstica”, diz Hisako.
Para avaliar se o processo era de fato eficiente e qual o tempo gasto na tarefa, a panela de pressão foi adaptada com manômetros para medir a pressão interna. Antes de serem esterilizados, os produtos eram contaminados com uma suspensão de bactérias com esporos do tétano. Com base nesse teste e em outros, foi estabelecida uma tabela de tempo e temperatura para esterilização dos instrumentos dentários utilizados nas campanhas do projeto. “Esse trabalho, um dos primeiros de que participei no Butantan, resultou em aplicação imediata”, relata a pesquisadora.
Na década de 1980, quando foi criado o controle nacional de produtos biológicos e imunobiológicos no Rio de Janeiro, Hisako deixou a área de produção de vacinas para dirigir o laboratório de produção de soros no Butantan, uma área estratégica na nova política do governo federal. Com a implementação do controle nacional, todos os imunobiológicos fabricados no país começaram a ser avaliados e muitos foram rejeitados. O rigor na fiscalização resultou na falta de soros e vacinas no país e na decisão do Ministério da Saúde de criar, em 1985, o Programa Nacional de Auto-Suficiência Nacional em Imunobiológicos. O objetivo era fazer com que o país voltasse a fabricar soros e vacinas de qualidade e em quantidade, para atender à demanda necessária dos programas públicos de imunização sem depender das importações. Os 17 produtores convidados, entre os quais o Butantan, receberam verbas para montar uma infra-estrutura adequada para a produção. Na época, o instituto fabricava soros e vacinas, mas apenas para atender à demanda paulista. “Venho colaborando, após a inserção do instituto no programa, como coordenadora, trabalho iniciado com a remodelação e a implantação de modificações no Butantan”, diz Hisako. O foco inicial das mudanças foi o laboratório de produção de soros, porque as vacinas podiam ser importadas, mas os soros antiveneno não, já que eram muito específicos.
Data dessa época a primeira planta edificada com equipamento em circuito fechado e garantia de processo asséptico. Outra modificação importante no processo foi a introdução de bolsas plásticas na coleta de sangue dos cavalos imunizados. Antes essa tarefa era feita a céu aberto, com grande risco de contaminação do material colhido. “A montagem desse laboratório nos deu know-how para montar os laboratórios de vacinas em circuito fechado”, diz a pesquisadora. As vacinas eram produzidas, até então, dentro de garrafas. As bactérias eram semeadas nas garrafas e depois filtradas, processo que exigia constante manipulação. “No caso do toxóide tetânico, para produzir 100 mil doses era necessário manipular de 60 a 80 frascos”, conta Hisako. Além do risco de contaminação do material, existia também o de acidentes no laboratório se algum desses frascos quebrasse. Hoje o Butantan tem um pólo industrial em circuito totalmente fechado desde o início até o final. O produto biotecnológico é uma fração da vacina ou do soro concentrado, que irá compor a formulação farmacêutica. Da formulação, segue para a área de envase, que conta com duas máquinas – cada uma com capacidade para 10 mil frascos de vacina/hora. Como cada frasco comporta dez doses, uma única máquina consegue envasar cerca de 1 milhão de doses por dia.
EDUARDO CESARO Butantan produz atualmente cerca de 160 milhões de doses por ano de antígenos vacinais – o princípio ativo das vacinas responsável pela indução da resposta imune do organismo. “Cerca de 85% dos antígenos usados no programa nacional de vacinação saem do Butantan”, diz Hisako. De 1985 a 1995, o Brasil tornou-se auto-suficiente na produção de vacina DTP (tríplice bacteriana), da dupla bacteriana para adultos, da antitetânica e de todos os soros que são distribuídos para a parte terapêutica. A contribuição do Butantan – e da pesquisadora Hisako – foi fundamental para que o país atingisse, no final da década de 1990, a auto-suficiência na produção das vacinas obrigatórias no programa de imunização. O Brasil também hoje é auto-suficiente na produção da vacina recombinante contra a hepatite B, um desenvolvimento interno da instituição paulistana. “A produção anual, de cerca de 25 milhões de doses, supre a necessidade do Ministério da Saúde”, explica Hisako. “Estamos caminhando para a auto-suficiência na produção da vacina contra a raiva.”
A pesquisadora, que já esteve em todas as linhas de frente do Butantan, além de cuidar da parte do desenvolvimento de produtos, que incluem pesquisas, formulações, ou seja, a parte científica, também atua como planejadora na parte industrial da produção. A construção de um prédio novo para a produção de hemoderivados, por exemplo, necessita de uma logística que só um profundo conhecedor de todo o sistema tem condições de elaborar. “A planificação precisa levar em conta desde a matéria-prima que será colocada na fermentação até o produto que vai para a prateleira”, diz Hisako. Sem contar que o prédio necessita de um sistema de dupla filtração do ar introduzido nas salas, a produção tem que seguir estritas regras de segurança e o produto final precisa ser fabricado em condições extremamente assépticas. “Durante a fase de produção, é preciso estar sempre renovando e introduzindo novas técnicas para melhorar a qualidade do produto final”, ressalta.
Isaias Raw, diretor presidente da Fundação Butantan, que trabalha com Hisako desde 1984, quando chegou ao instituto no meio da crise criada pela falta de soros antipeçonhentos, resume essa convivência: “Numa parceria de mais de 20 anos, em que nos reunimos todas as manhãs às 7 horas, reconstruímos o setor de produção. Hisa tornou-se a especialista, sem competição no país, capaz de projetar uma planta, escolher e adquirir os equipamentos, treinar técnicos, criando uma verdadeira escola que não existia no país”. Para Raw, a parceira Hisa tornou-se essencial e insubstituível.
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