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GENÉTICA

Defesa natural contra Chagas

Alteração genética capaz de proteger da doença se espalhou há cerca de 7,5 mil anos entre povos nativos da Amazônia

Células cardíacas (vermelhas) com gene PPP3CA menos expresso são infectadas por menor quantidade de protozoários Trypanosoma cruzi (pontos verdes)

Gabriela Venturini / Universidade Harvard

A maioria dos indivíduos Arara, Gavião, Karitiana, Suruí e de outras oito etnias da Amazônia trazem em seus corpos uma característica genética particular que aparentemente os protege da doença de Chagas. Ao menos oito em cada 10 pessoas dessas populações são portadoras de uma sutil alteração no genoma que tem o potencial de reduzir a capacidade de o protozoário Trypanosoma cruzi – o parasita unicelular causador da enfermidade – invadir as células do organismo e provocar a doença. Encontrada em uma proporção bem menor dos habitantes de outras regiões do mundo, essa variante, como chamam os biólogos, teria contribuído para a adaptação humana ao ambiente inóspito da maior floresta tropical contínua do planeta. Sua presença há milhares de anos nessas populações também oferece uma explicação adicional para uma questão ainda não compreendida por completo: o fato de a doença de Chagas, que afeta 6 milhões de pessoas na América Latina, um terço delas no Brasil, ser menos comum entre os habitantes da Amazônia.

A equipe da geneticista Tábita Hünemeier, da Universidade de São Paulo (USP), identificou a alta ocorrência dessa variante – uma alteração pontual na vizinhança do gene PPP3CA, que o tornaria menos ativo – nos povos da Amazônia ao analisar cerca de 600 mil trechos do genoma de 118 indivíduos de 17 etnias nativas do Brasil e comparar com o material genético de populações originárias da América do Norte, Ásia, Europa e África. Ela é encontrada em ao menos 80% das pessoas que integram as etnias nativas do Brasil, mas em apenas 10% dos europeus e em 25% dos asiáticos. Na África, onde são comuns outras enfermidades causadas por protozoários, como a malária e a doença do sono, a frequência é de 59%.

Os resultados do trabalho, publicado em 8 de março na revista Science Advances, sugerem ainda que essa mutação teria se tornado comum entre os grupos originários da Amazônia há cerca de 7,5 mil anos, cerca de três milênios depois de os primeiros seres humanos modernos terem chegado à região. Modelos formulados com base em dados arqueológicos e genéticos indicam que o Homo sapiens alcançou a América do Sul entre 15 mil e 13 mil anos atrás, mas só se embrenhou pela floresta depois de ter se dispersado pela costa do Pacífico e parte da cordilheira dos Andes.

Alexandre Affonso

“Como a floresta é um ambiente hostil, com elevada concentração de patógenos, decidimos procurar no genoma dos povos originários da Amazônia sinais de que seus antepassados distantes pudessem ter passado por algum tipo de pressão evolutiva para se adaptar à região”, conta Hünemeier. “Esperávamos encontrar com frequência mais elevada genes ou alterações genéticas que oferecessem proteção contra vírus ou bactérias, mas não contra protozoários”, relata a geneticista, que atualmente passa uma temporada como pesquisadora visitante na Universidade Pompeu Fabra, na Espanha.

Analisando o material genético das diferentes etnias brasileiras, a bióloga Kelly Nunes, uma das autoras principais do artigo, verificou que a mutação próxima ao PPP3CA apresentava sinais de ter sofrido seleção natural e ter se tornado cada vez mais comum entre os habitantes da região por favorecer a sobrevivência naquele ambiente. O mais importante desses sinais é o fato de, nas diferentes etnias originárias da Amazônia, ela estar sempre acompanhada de um mesmo conjunto de genes – na linguagem dos geneticistas ela e os genes vizinhos formam um haplótipo. “Caso esse haplótipo não tivesse passado por seleção, seria esperado que os genes que o integram variassem de forma aleatória de uma população para outra”, explica Nunes, que faz um estágio de pós-doutorado no laboratório de Hünemeier na USP.

Estudos anteriores sugeriam que o gene PPP3CA poderia contribuir de alguma forma para a entrada do Trypanosoma cruzi nas células. Transmitido pelas fezes de triatomíneos, insetos mais conhecidos como barbeiros, o protozoário penetra no local da picada quando a pessoa se coça e, em seguida, se espalha pelo sangue. No interior das células, o parasita se multiplica rapidamente e, em questão de dias, gera uma quantidade tão grande de cópias (da ordem de dezenas de milhares) que as faz explodir.

Christophe Simon / Getty ImagesMulher da etnia Gavião, um dos povos nativos da Amazônia portadores de variante gênica que reduz a infecção pelo parasita da doença de ChagasChristophe Simon / Getty Images

No laboratório do cardiologista brasileiro Alexandre Pereira, na Universidade Harvard, Estados Unidos, a bióloga Gabriela Venturini realizou um experimento para ajudar a desvendar a função do PPP3CA na doença de Chagas. Ela desativou parcialmente o gene em células cardíacas humanas (cardiomiócitos) e as cultivou com exemplares do parasita. As células com o gene menos ativo apresentaram uma redução de 25% no número de protozoários, em comparação com os cardiomiócitos com a versão ativa do gene. Embora os testes não tenham sido feitos com a variante genômica comum nos indígenas da Amazônia, os pesquisadores imaginam que o experimento de infecção simule o que ocorre com aqueles indivíduos. Na literatura médica, há pistas de que essa variante reduz a atividade do PPP3CA.

“Esse experimento ajudou a validar a hipótese de que esse gene desempenhe um papel na fase aguda da doença”, explica Pereira, que também é pesquisador do Instituto do Coração (InCor) da USP. Essa fase ocorre nas primeiras semanas após a infecção e costuma ser confundida com uma gripe, porque a pessoa pode apresentar febre, mal-estar e dores no corpo. Quando a pessoa é tratada nessa etapa inicial, o parasita é eliminado na maior parte das vezes. Em parte dos casos, porém, o protozoário se torna quiescente, podendo ser reativado sempre que a imunidade diminui. Ao longo de décadas, a forma crônica da infecção pode lesar órgãos como o coração. “A intenção é repetir os experimentos com o haplótipo encontrado nas populações amazônicas e confirmar se ele afeta a atividade do gene e a capacidade de infecção do parasita”, afirma Pereira.

“A ideia é interessante, mas a evidência de que essa variação gênica esteja associada a uma infectividade menor ainda é preliminar. Seria interessante comparar a capacidade de infecção dos parasitas em células de indivíduos com e sem a alteração. Além disso, existem várias linhagens do protozoário e nem todas se comportam da mesma maneira”, ressalta o parasitologista Sergio Schenkman, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), especialista em Trypanosoma cruzi.

“Esse estudo é relevante por mostrar uma interação antiga entre o parasita e o hospedeiro humano em uma região que muitos consideravam livre de Chagas, mas que é rica em insetos vetores e em animais silvestres que funcionam como reservatório do protozoário”, conta a bióloga Alena Mayo Iñiguez, chefe do Laboratório de Parasitologia Integrativa e Paleoparasitologia da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, que não participou do estudo publicado na Science Advances. “O sinal genético encontrado pelo grupo da USP é coerente com nossos achados, que indicaram a infecção por Trypasonoma cruzi muito antes de o inseto que transmite o parasita ter se adaptado a viver em moradias humanas”, conta a pesquisadora, coautora de um estudo que identificou a infecção pelo causador da doença de Chagas em restos humanos com pelo menos 4.500 anos de idade, encontrados no vale do Peruaçu, norte de Minas Gerais.

Apesar de os resultados sugerirem uma explicação plausível para o fato de hoje haver menos Chagas na Amazônia do que em outras regiões do país, os autores do estudo sabem que a variante genética não explica tudo. “As áreas em que a doença é endêmica em geral estão na interface entre o ambiente urbanizado e o não urbanizado e isso é menos comum na Amazônia”, lembra Pereira. Existem ainda outras diferenças. Embora o parasita exista lá e muitos animais sirvam de reservatório, as variedades de insetos transmissores são diferentes. “Não se conhece muito bem como ocorre a transmissão na região amazônica. Não sabemos se os vetores mais eficientes têm contato com as pessoas nem se sobrevivem na floresta”, afirma Schenkman.

Íntegra do texto publicado em versão reduzida na edição impressa, representada no pdf.

Projetos
1. Diversidade genômica dos nativos americanos (nº 15/26875-9); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisadora responsável Tábita Hünemeier (USP); Investimento R$ 2.646.774,34.
2. Construção de uma biblioteca de phage display de epítopos de Trypanosoma cruzi para identificação de um perfil de anticorpos em cardiomiopatia chagásica crônica (nº 19/11821-1); Modalidade Bolsas no Exterior; Pesquisador responsável Alexandre da Costa Pereira (USP); Bolsista Gabriela Venturini da Silva; Investimento R$ 267.004,14.

Artigo científico
COUTO-SILVA, C. M. et al. Indigenous people from Amazon show genetic signatures of pathogen-driven selection. Science Advances. 8 mar. 2023.

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