de Porto Alegre, RS
Em 2009 a geleira Chacaltaya desapareceu de vez da paisagem boliviana. Havia tempos que ela vinha encolhendo porque a quantidade de neve que ali se acumulava a cada ano não era mais suficiente para mantê-la. Mas não se esperava que sumisse de vez tão cedo, seis anos antes do que os pesquisadores haviam calculado. Situada a cerca de 30 quilômetros ao norte de La Paz, a capital da Bolívia, Chacaltaya era uma geleira pequena, mas internacionalmente conhecida por abrigar a pista de esqui mais alta do mundo, a 5.300 metros acima do nível do mar, e por ser o local onde o físico brasileiro César Lattes realizou em fins dos anos 1940 parte dos experimentos que levaram à descoberta do méson-pi, uma partícula subatômica. Seu fim antecipado deixou os bolivianos sem ter onde esquiar e virou notícia mundo a fora por um motivo bem mais importante: o que aconteceu com ela também vem ocorrendo com muitas das geleiras dos Andes e de outras regiões do planeta. Na opinião de especialistas, a retração das geleiras andinas pode sinalizar o destino de boa parte do gelo tropical caso a temperatura da atmosfera continue subindo no ritmo das últimas décadas: virar água.
Hoje as geleiras bolivianas ocupam cerca de metade da área que tinham até meados do século passado. E, de modo geral, se encontram num processo de encolhimento acelerado – em especial as pequenas, com menos de 1 quilômetro quadrado (km2), como Chacaltaya –, segundo estudos recentes realizados por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em parceria com colegas bolivianos. “O que estamos vendo nas pequenas geleiras dos Andes é uma indicação antecipada do que pode ocorrer com as geleiras maiores dessa região e de outras”, explica o glaciologista Jefferson Cardia Simões, diretor do Centro de Pesquisa Climática e Polar da UFRGS e coordenador do grupo brasileiro.
Em colaboração com a equipe do glaciologista Edson Ramírez, da Universidad Mayor de San Andrés, em La Paz, os pesquisadores brasileiros trabalham num amplo levantamento da situação das geleiras do vizinho andino. Usando fotografias aéreas e imagens de satélite, eles conseguiram avaliar até o momento a transformação por que passaram cerca de 600 geleiras que se distribuem por dois trechos dos Andes – as cordilheiras Real e Apolobamba – na Bolívia, país que concentra 20% do gelo dos trópicos (quase 99% do gelo tropical está nos Andes).
“Estimamos uma redução da ordem de 50% na área das geleiras da Bolívia nesse período, o que é uma perda muito rápida”, afirma o geógrafo Rafael da Rocha Ribeiro, integrante da equipe de Simões e um dos autores do levantamento. “Essas geleiras são bons indicadores de alterações no clima porque respondem muito rapidamente às mudanças”, conta. A razão dessa sensibilidade é que nas regiões montanhosas tropicais o gelo se encontra a uma temperatura próxima de zero grau Celsius, o ponto em que começa a se fundir – os especialistas o chamam de gelo quente ou ameno, em contraposição ao gelo frio do centro das regiões polares, que está a dezenas de graus negativos.
Nos últimos anos Ribeiro e o grupo de Ramírez marcaram com o auxílio de aparelhos de GPS de alta precisão os limites de algumas geleiras da cordilheira Real, onde ficava Chacaltaya. A comparação das fronteiras atuais de 476 geleiras com as registradas nas décadas anteriores permitiu estimar que, em 40 anos, elas encolheram 43%: elas se distribuíam por 325 km2 nos anos 1970 e ocupam apenas 185,5 km2 hoje, segundo trabalho apresentado no ano passado na assembleia-geral da União Europeia de Geociências.
Analisando uma região específica da cordilheira Real – o nevado Illimani, que pode ser visto a partir de La Paz –, Ribeiro notou que o encolhimento das geleiras acelerou recentemente. As geleiras do Illimani haviam perdido 12% de sua área entre 1963 e 1983 e encolheram o dobro disso nas três décadas seguintes, como descreve em artigo a ser publicado no Annals of Glaciology.
Ana Maria Sanches, outra geógrafa da equipe de Simões, observou encolhimento até mais intenso em um conjunto de geleiras situadas a 250 quilômetros ao norte do Illimani, na cordilheira Apolobamba, na divisa da Bolívia com o Peru. De 1975 a 2011, a área de gelo do nevado Cololo diminuiu 42% – hoje restam só 24,7 km2 – e sobraram apenas 48 das 122 geleiras originais.
A retração das geleiras, de modo geral, não é homogênea. As pequenas são as mais abundantes e também as que estão desaparecendo mais rapidamente. Ribeiro verificou que no Illimani as geleiras grandes perderam, em média, 15% de sua área no período analisado, enquanto entre as pequenas a taxa média de retração foi quase cinco vezes maior.
O derretimento das geleiras não é exclusivo da Bolívia. No Peru, onde está a maior parte (70%) do gelo tropical, as geleiras já perderam quase um quarto de sua área nas últimas décadas. Em uma compilação recente sobre as condições atuais das geleiras andinas, o glaciologista francês Antoine Rabatel, ao lado de outros especialistas no tema, afirma que dos anos 1970 para cá as geleiras dos Andes tropicais passaram a encolher num ritmo jamais visto nos últimos 300 anos, desde que começaram a retrair após o fim da pequena idade do gelo, no final do século XIX – durante a pequena idade do gelo a temperatura da atmosfera havia baixado cerca de 0,6 grau.
Além de menores, as geleiras andinas estão ficando restritas às áreas mais elevadas das montanhas. “No nevado Cololo, por exemplo, antes havia geleiras abaixo da cota de 4.500 metros de altitude”, conta Ana Maria. “Hoje elas só são encontradas acima de 4.950 metros.”
Ainda não se conhecem ao certo as causas do encolhimento das geleiras andinas. Há sinais claros de que o clima regional mudou: a temperatura média nos Andes subiu 0,8 grau ao longo do último século e, do fim dos anos 1970 para cá, aumentaram a frequência e a intensidade do fenômeno El Niño – o aquecimento da água superficial do oceano Pacífico, que impede a chegada de umidade vinda da Amazônia e reduz a precipitação de neve.
Os especialistas suspeitam que essas alterações regionais estejam ligadas às mudanças climáticas que parecem estar em curso no planeta e que o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC, já associou às atividades humanas.
“As mudanças regionais e o derretimento das geleiras tropicais [de modo geral, elas estão encolhendo no mundo todo, embora algumas possam ter aumentado de tamanho] coincidem com a elevação da temperatura global”, explica Simões, que coordena também o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera. Mas ninguém afirma categoricamente que a razão é o aquecimento global, porque o derretimento das geleiras e os outros fenômenos climáticos são complexos e envolvem muitos fatores.
Apesar dessa dúvida, os especialistas acreditam que em breve os efeitos do encolhimento dessas geleiras devem se tornar evidentes, com consequências locais e até regionais. A maioria dessas geleiras tem pequeno porte, menos de 2 km2. Mas elas fornecem boa parte da água usada na produção de energia elétrica, na agropecuária e no abastecimento das cidades andinas – em especial no outono e no inverno, o período mais seco do ano.
Um estudo conduzido em 2008 por Ramírez já demonstrou que nos últimos 50 anos houve uma retração de 44% a 55% nas geleiras que alimentam os rios de onde vem parte da água usada nas cidades de La Paz e El Alto, que juntas abrigam 1,5 milhão de pessoas. Ainda que até o momento não se tenha identificado redução no fornecimento de água, vários pesquisadores preveem que ela pode vir a faltar. “É importante preparar as comunidades locais para um cenário futuro em que mudará a disponibilidade de água”, comenta Ribeiro.
Simões teme que o derretimento acelerado torne mais frequente um tipo de desastre natural a que estão sujeitas as regiões com geleiras, vulcanismo e terremotos como os Andes: o rompimento dos lagos formados pelo derretimento dessas geleiras. Em artigo publicado em 2011 na revista Annals of Glaciology, o paleoclimatologista norte-americano Lonnie Thompson relata o que ele e sua equipe testemunharam no Peru. Desde que começaram a fazer pesquisas no manto de gelo Quelccaya, nos anos 1970, eles acompanharam o aumento do volume de um riacho que passava próximo ao acampamento e a formação de um grande lago diante da geleira. Esse lago, resultado do degelo, se rompeu em 2006 depois de uma avalanche e inundou o vale logo abaixo, eliminando a pastagem onde os moradores de um povoado vizinho criavam lhamas.
Além do impacto local, é possível que haja um efeito regional, ainda desconhecido. Nas geleiras da porção oriental dos Andes nascem riachos que, à medida que se encaminham para leste, ganham volume e originam importantes rios da bacia amazônica, como o Madeira e o Solimões. É dos Andes que vem parte dos sedimentos que fertilizam esses rios e são carregados até o Atlântico. Ninguém sabe o que pode acontecer com esses rios e com os ecossistemas que integram se as geleiras andinas e o aporte de sedimentos diminuírem muito nas próximas décadas. “Precisamos mudar o conceito que há no Brasil de que esse gelo não vai afetar o país”, diz Simões. “Toda a porção oeste da Amazônia está muito perto dessa massa de gelo.”
Artigos científicos
RIBEIRO, R.R. et al. 46 years of environmental records from the Nevado Illimani glacier group, Bolivia, using digital photogrammetry. Annals of Glaciology. v. 54 (63). 26 fev. 2013.
RAMIREZ, E. et al. Glacier Inventory of the Cordillera Real – Bolivia using high resolution satellite images ALOS and CBERS-2B. Geophysical Research Abstracts. v. 14. EGU2012-11692. 2012.
THOMPSON, L.G. et al. Tropical glaciers, recorders and indicators of climate change, are disappearing globally. Annals of Glaciology. v. 52 (59). 2011.