O economista, ex-ministro e ex-deputado federal Antonio Delfim Netto, que conduziu a política econômica do país durante a ditadura militar (1964-1985), continuou exercendo influência após a redemocratização e ajudou a criar um dos principais programas de pós-graduação da sua disciplina no Brasil. Ele morreu nesta segunda-feira (12), em São Paulo, aos 96 anos.
Nascido em 1928 no bairro operário do Cambuci, em São Paulo, Delfim era neto de imigrantes italianos e filho de um escriturário da antiga Companhia Municipal de Transportes Coletivos. A mãe costurava para fora e encarregava o filho de entregar os vestidos à clientela. Órfão de pai aos 14 anos, Delfim foi trabalhar como contínuo numa fábrica de sabonetes.
Formado em contabilidade na Escola Técnica de Comércio Carlos de Carvalho, ele entrou em 1948 no curso de economia da hoje chamada Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP), criada três anos antes. Queria ser engenheiro, mas não podia parar de trabalhar enquanto estudava e por isso optou por um curso que não exigisse dedicação integral.
Após se formar, em 1952, Delfim se tornou assistente do professor Luiz de Freitas Bueno (1922-2006), da cadeira de estatística. Pioneiro na introdução de métodos quantitativos em estudos econômicos no país, Bueno teve papel decisivo na formação de Delfim, assim como a historiadora Alice Canabrava (1911-2003), que incentivava os alunos a buscar dados em fontes primárias.
A influência de ambos se fez evidente na tese de livre-docência que ele defendeu em 1959 na USP, “O problema do café no Brasil”, em que estudou as políticas de valorização dos preços do produto durante a Primeira República (1889-1930). “Delfim fez um levantamento extenso de dados históricos e empregou técnicas econométricas sofisticadas para a época ao analisá-los”, conta o economista Roberto Macedo, que dirigiu a FEA de 1986 a 1990.
Sua conclusão foi de que as intervenções no mercado do café contribuíram para sua instabilidade, estimulando o aumento da produção nacional e a entrada de novos competidores no mercado externo. Segundo ele, isso prejudicou os fazendeiros brasileiros no longo prazo e tornou mais custosos os esforços para sustentar os preços do café, então o principal produto exportado pelo país.
“A tese promoveu uma revisão importante daquele período e foi pioneira ao incorporar uma metodologia que o mundo ainda estava descobrindo”, relata o economista Gian Carlo Maciel Guimarães Hespanhol, que estudou o pensamento de Delfim em sua dissertação de mestrado, apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP em 2017.
Além disso, o trabalho incentivou outras pesquisas sobre a agricultura brasileira. É o caso da tese de doutorado “Resposta da produção agrícola aos preços no Brasil”, defendida por Affonso Celso Pastore (1939-2024) na FEA em 1968, que forneceu argumentos para políticas que promoveram a diversificação da produção brasileira e as exportações do setor mais tarde.
Em 1963, Delfim assumiu a cátedra de Teoria do Desenvolvimento Econômico na faculdade após defender a tese “Alguns problemas do planejamento para o desenvolvimento econômico”. No estudo analisou os modelos propostos pela literatura internacional na época, ainda pouco acessível aos pesquisadores brasileiros, e submeteu várias políticas a testes econométricos.
Na avaliação de Macedo, o trabalho antecipou ideias que Delfim implementaria depois no governo, ao argumentar que estímulos à indústria e às exportações poderiam contribuir para o crescimento sem criar desequilíbrios nem alimentar a inflação. “Ele acreditava no poder indutor do Estado na economia”, afirma o economista.
Em depoimento concedido a Ciro Biderman, Luis Felipe Cozac e José Marcio Rego, da Fundação Getulio Vargas (FGV), publicado no livro Conversas com economistas brasileiros (lançado em 1996 e reeditado neste ano pela Editora 34), Delfim reconheceu o risco de captura do Estado pelos setores beneficiados. Porém argumentou que as vantagens criadas por essas políticas eram maiores do que os riscos.
Para ele, a missão dos economistas era encontrar meios de contornar restrições impostas ao crescimento. “O economista existe é para superar esses limites”, disse Delfim. “Quando se aceitam esses limites, jogou-se fora a profissão. […] A teoria econômica, nesse sentido de conhecimento, de como funciona a economia, existe para superar essas dificuldades.”
Delfim foi o primeiro economista formado na FEA a se tornar catedrático, posição que era o topo da carreira docente na época, antes da reforma universitária de 1968, que extinguiu o regime de cátedras. Ele organizava seminários semanais para discutir livros e artigos acadêmicos, que os alunos deviam estudar para apresentar aos colegas. Alguns encontros eram realizados à tarde e terminavam com noitadas em que comiam pizza e bebiam uísque.
“Delfim respeitava diferentes visões, mas toda hipótese tinha que enfrentar o teste da realidade, uma posição metodológica que ele sempre levou muito a sério”, afirma Carlos Antonio Rocca, que assistiu aos seminários como aluno e hoje coordena o Centro de Estudos de Mercado de Capitais (Cemec), da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), ligada à FEA.
Em 1965, Delfim participou da criação do Instituto de Pesquisas Econômicas (IPE), primeiro centro de pós-graduação da área na USP. No mesmo ano, a FGV do Rio criou a Escola de Pós-graduação em Economia (EPGE). O governo dos Estados Unidos e a Fundação Ford financiaram bolsas e assessoria de professores norte-americanos para as duas instituições.
Com conexões na academia e no meio empresarial, Delfim assumiu o Ministério da Fazenda em 1967, após a posse do general Arthur da Costa e Silva (1899-1969), segundo presidente do regime inaugurado pelo golpe militar de 1964. Ele se manteve no cargo durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), que dirigiu o país entre 1969 e 1974.
Nos sete anos em que Delfim comandou a política econômica, o Produto Interno Bruto (PIB) do país cresceu 10% ao ano, em média, e dobrou de tamanho. Reformas feitas pelo governo do general Humberto Castello Branco (1897-1967) e o cenário externo favorável abriram caminho para medidas executadas pelo economista, como a expansão do crédito e o estímulo às exportações.
O período ficou conhecido como “milagre econômico”, porque o crescimento acelerado não foi acompanhado de desequilíbrios na balança de pagamentos nem de um surto inflacionário. Estatísticas publicadas anos depois colocaram em xeque seus resultados, mostrando um substancial aumento da concentração de renda no topo da pirâmide social.
“Ele não gostava da caracterização do que aconteceu como um milagre, porque seria como se tudo tivesse resultado de uma confluência dos astros e não das políticas implementadas pelo governo”, observa Ivan Salomão, professor da FEA e do Programa de Pós-graduação em História Econômica da FFLCH-USP. “Sua gestão foi muito beneficiada pelas reformas feitas nos primeiros anos após o golpe.”
As circunstâncias políticas da época permitiram que Delfim dirigisse a política econômica com poderes que nenhum dos seus sucessores teve. Em 1968, ele foi um dos signatários do Ato Institucional nº 5 (AI-5), que inaugurou a fase mais violenta do regime autoritário ao fechar o Congresso Nacional, suspender garantias constitucionais e intervir nos governos estaduais.
No governo Médici, o economista foi um incentivador do investimento em pesquisas para expandir a produção agrícola brasileira e diversificá-la. Como ministro, Delfim liberou recursos para financiar a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), criada em 1973, e umas das instituições de pesquisa responsáveis pelo desenvolvimento de técnicas que permitiram aumentar a produtividade no campo.
Em 1974, quando o general Ernesto Geisel (1907-1996) se tornou presidente, Delfim foi substituído na Fazenda pelo economista Mário Henrique Simonsen (1935-1997), da FGV do Rio, sendo nomeado embaixador em Paris. Ele voltou ao governo em 1979, após a posse do último general-presidente, João Baptista Figueiredo (1918-1999). Foi ministro da Agricultura por cinco meses e logo reassumiu a condução da economia, substituindo Simonsen no Planejamento.
A economia tinha sido abalada por choques externos nos anos anteriores, convivia com inflação e dívida crescentes e afundou na recessão no início dos anos 1980. “A situação começou a melhorar no fim da ditadura, mas ainda era caótica, e os desequilíbrios só foram corrigidos na democracia”, diz o economista Marcos Lisboa, que presidiu o Insper e foi professor da EPGE, da FGV do Rio.
Fora do governo, Delfim abriu uma firma de consultoria com antigos alunos e colaboradores, passou a escrever regularmente para jornais e entrou na política. Eleito deputado federal em 1986, participou da Assembleia Nacional Constituinte e foi reeleito quatro vezes. Ele deixou a Câmara no início de 2007. No primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006), foi ouvido como conselheiro e propôs um plano de controle do déficit público, descartado pelo PT.
Em 2010, Delfim ficou dois meses internado num hospital para cuidar de problemas cardíacos e uma embolia pulmonar. Esteve 18 dias em coma e mais tarde brincou ao falar sobre o assunto ao jornal Valor Econômico: “Não vi o tal túnel com a luz branca. Foi uma decepção”. Professor emérito da USP, Delfim morreu em “decorrência de complicações no seu quadro de saúde”, conforme comunicado da família. Era viúvo de Mercedes Saporski Delfim quando se casou com Gervásia Diório, com quem teve uma filha, Fabiana. Deixa também o neto, Rafael.
Acervo reúne textos clássicos, artigos acadêmicos e reproduções de obras raras
Leitor voraz, Delfim Netto deixou como legado uma enorme coleção particular composta por livros, sobretudo de economia, além de revistas e artigos científicos. Atualmente abrigado na biblioteca da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP), o acervo amealhado ao longo de oito décadas reúne mais de 100 mil itens, incluindo 94.531 livros e milhares de publicações acadêmicas, que o economista mandava copiar e organizar em volumes encadernados.
A biblioteca da FEA foi reformada e ampliada para receber a coleção que Delfim decidiu doar em 2011. Ele continuou fazendo doações esporádicas após a inauguração, em 2014. O acervo não possui raridades, mas é considerado uma das mais completas coleções particulares de livros sobre economia do país. Segundo a direção da biblioteca da faculdade, o espaço recebe atualmente cerca de 50 consultas presenciais por mês. A procura era maior nos primeiros anos, mas diminuiu depois da pandemia de Covid-19.
“O valor do acervo é inestimável, sobretudo por sua abrangência”, afirmou a Pesquisa FAPESP o economista Eduardo Giannetti da Fonseca, ex-professor da FEA, que conheceu a biblioteca de Delfim no início de sua carreira acadêmica, nos anos 1980. Na época, quando pesquisou e deu aulas na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, Giannetti fez cópias de panfletos e tratados do século XIX na seção de obras raras da biblioteca da instituição britânica a pedido de Delfim, como contou em entrevista à revista piauí.
O acervo inclui várias edições de clássicos como os Fundamentos da análise econômica, livro lançado pelo economista norte-americano Paul Samuelson (1915-2009) em 1947, revisto e ampliado na década de 1980. Um dos exemplares tem anotações manuscritas de Delfim. A biblioteca também contém reproduções fac-similares das primeiras edições de títulos como A riqueza das nações, do escocês Adam Smith (1723-1790), e O capital, do alemão Karl Marx (1818-1883).
Uma versão deste texto foi publicada na edição impressa representada no pdf.
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