Fui contaminada pelo novo coronavírus em uma viagem ao exterior no final de fevereiro para dois congressos científicos, um em Lisboa e outro em Jerusalém. Em ambos havia muitos participantes e se havia iniciado o período de contaminação pelo vírus causador da Covid-19. Voltei a São Paulo no dia 5 de março. No dia 8, participei do lançamento da minha biografia, chamada Não, não é resposta, escrita pelo jornalista e escritor Ignácio de Loyola Brandão. Poucos dias depois apresentei as primeiras manifestações da doença. Sou extremamente saudável e desconfiei quando tive febrícula e dor no corpo.
Fui imediatamente para o Hospital Alemão Oswaldo Cruz, onde o exame para Covid-19 teve resultado positivo e uma tomografia do tórax mostrou que os pulmões estavam bastante lesados. Fui internada e, como os sintomas respiratórios pioraram rapidamente, fui transferida para a UTI e intubada. Vi minha tomografia e verifiquei que meu estado era muito grave, eu poderia morrer. Toda a equipe – médicos, enfermeiros, nutrólogas, nutricionistas – cuidou de mim com muita atenção e afetividade. Eu naturalmente conhecia todos porque trabalho no Hospital Alemão Oswaldo Cruz desde os anos 1970, depois que terminei minha formação cirúrgica.
As pessoas não devem ter medo de ser intubadas. Após a sedação, não há mais a percepção de dor e também não resta lembrança de nada. O tratamento foi feito com antibióticos, para corrigir a infecção pulmonar, e alimentação parenteral, não existe um medicamento específico contra o vírus.
Quando percebi que poderia morrer, pensei: estou preparada. Vivi bem, mais do que a média da população. Fiz tudo aquilo que poderia ter feito da melhor maneira possível. Não tive medo, mas também preferiria que não acontecesse naquele momento. Como dizia minha mãe, aos 97 anos: “Ainda é muito cedo, tenho tantas coisas para fazer”.
Quando acordei, 47 dias depois, foi maravilhoso perceber que ainda estava viva. Que alegria senti! Meus movimentos estavam perfeitos, sem fraqueza muscular, e respirava muito bem. Emagreci 3 quilos, que já recuperei. A tomografia de controle demonstrou que meus pulmões estavam totalmente livres da infecção. Me considero ressuscitada.
Muitas pessoas ficam com sequelas psicológicas. Há o medo de nova contaminação ou de contaminar outras pessoas. Esse pensamento faz um mal enorme, muitos trabalhos estão sendo elaborados sobre as manifestações psicológicas dos contaminados com Covid-19. Os que não foram contaminados também temem a doença. Há uma angústia e as pessoas ficam tristes. Precisamos ser cautelosos, mas não medrosos.
Meu marido, Joaquim Gama, também cirurgião, se contaminou, provavelmente na mesma viagem. Mas ele foi assintomático. Quando saí do hospital, em abril, fiz um exame para avaliar minha carga viral, que estava negativada. Não sou infectologista para afirmar categoricamente, mas acredito que seja semelhante ao sarampo ou caxumba – e que agora eu tenha anticorpos que combatem uma reinfecção. Mas sei que a doença é nova, ainda não conhecemos muito. E há variantes do vírus: não sei se adquiri imunidade apenas para o tipo com o qual me contaminei. De qualquer maneira, quem já teve a doença não deve se expor, precisa manter cuidados.
Dez dias depois da alta, voltei a atender diariamente no consultório do Instituto Angelita e Joaquim Gama, instalado no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, e também retornei às cirurgias. Trabalho com uma equipe de colonoscopia, de estudo funcional e de nutrição. O número de pacientes atendidos caiu um pouco no período da quarentena, porque as pessoas têm medo de se contaminar. Só procuram o hospital quando estão com sintomas mais urgentes. Muitas operações eletivas foram postergadas, mas já estamos voltando a trabalhar no ritmo de antes da pandemia. Os doentes se cansaram de esperar, porque a solução para a pandemia ainda não existe, será algo no longo prazo. As vacinas, a única solução cabível, provavelmente não chegarão antes do ano que vem.
A pandemia reduziu também nossa atividade nos congressos. Neste ano ainda apresentaríamos palestras em eventos importantes nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia. Agora esses encontros têm sido todos virtuais. Essa foi uma grande mudança, porque ficamos boa parte do tempo em frente ao computador fazendo palestras virtuais, o que é menos prazeroso. Os congressos são importantes não só pelo conteúdo, pelo que ensinamos ou aprendemos, mas também pelo contato com outros colegas, pela troca de ideias. É um convívio muito agradável e sinto falta disso.
Logo retomei também as atividades de pesquisa. Minha equipe de colaboradores e eu temos elaborado artigos científicos para publicações nacionais e internacionais. No período da quarentena tivemos mais tempo de escrever e de revisar nossos resultados. Sempre fui uma pesquisadora clínica, gosto de investigação aplicada ao doente. Enquanto trato, investigo. Temos um trabalho, que começamos a elaborar em 2001, no qual usamos rádio e quimioterapia para tratar o câncer da porção baixa do reto na expectativa de reduzir o tamanho do tumor e, se possível, evitar a cirurgia, que pode gerar colostomia definitiva. Tive a ideia de começar esse protocolo de tratamento, chamado de Watch and Wait, no qual não operamos de imediato. Após o tratamento neoadjuvante, se o paciente tiver uma resposta clínica completa, ou seja, se o tumor desaparecer, observamos e acompanhamos o paciente, principalmente no primeiro ano pós-tratamento. A cada dois meses são realizados exames porque o tumor pode voltar. A ocorrência de recidiva é de cerca de 20% e, quando ocorre, a cirurgia é indicada. Esse protocolo tem sido gradativamente mais aceito. No começo, foi muito combatido.
Estamos pesquisando a utilização de agentes quimioterápicos em doses maiores, com intervalos mais curtos e por um período mais longo, com o objetivo de aumentar a incidência de resposta completa e consequentemente aumentar o número de doentes que não necessitarão ser operados. Desde 1998, quando publicamos nosso primeiro trabalho, temos progressivamente observado uma melhora da resposta nos pacientes submetidos ao Watch and Wait que atendemos: de 27% para quase 60%. Isso nos faz acreditar que cada vez menos precisaremos fazer colostomia definitiva. Além disso, temos novas drogas quimioterápicas e a técnica de radioterapia melhorou muito. Nossos colegas me perguntam se não é um paradoxo uma cirurgiã procurar operar cada vez menos. Respondo que para mim é uma felicidade. Para cada paciente que deixa de passar por uma cirurgia mutilante, fico feliz.
Outra pergunta que me fazem é quando vou deixar de trabalhar. Respondo: quando não houver mais procura no consultório; enquanto eu tiver condições físicas e mentais, vou continuar. Enxergo, escuto, minhas mãos não tremem, minha coluna é ótima, sou magra e não carrego peso, por que não trabalhar? Qual é a razão para parar, se posso contribuir com experiência acumulada, pois já vivi situações das mais variadas durante o exercício da profissão? Além disso, cada pessoa que atendo representa uma experiência nova. No convívio, no resultado do tratamento. Tratar é como as nuvens: nunca vemos a mesma forma de nuvem duas vezes. Não há dois doentes ou duas doenças iguais, por isso é sempre um aprendizado. A vida é assim, é um movimento, como o mar. Aliás, eu adoro ver o mar. É emocionante.
Angelita Habr-Gama é professora titular emérita de cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). É cirurgiã do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e diretora do Instituto Angelita e Joaquim Gama.