O psiquiatra suíço Eugen Bleuler balançou o pensamento de sua época ao propor em 1911 o termo esquizofrenia para nomear as enfermidades mentais marcadas por uma dificuldade intensa de estruturar o pensamento e estabelecer laços afetivos. Para Bleuler, fragilidades emocionais estariam na origem da esquizofrenia, até então vista como um problema de causa exclusivamente biológica. Desde que apresentou suas ideias, a explicação de como e por que surge a esquizofrenia mudou outras vezes. Depois de as opiniões oscilarem entre extremos, hoje, cem anos mais tarde, aparentemente se chegou a um meio-termo, que concilia a visão psicológica e biológica. Acredita-se que essa enfermidade, que se manifesta em 1% da população, seja o resultado do desenvolvimento – e consequentemente do funcionamento – inadequado das células do cérebro, agravado ou amenizado por características emocionais do indivíduo ou por fatores sociais e ambientais. Agora há sinais de que na esquizofrenia há uma alteração no processamento da glicose. Essa alteração é a possível razão por que o diabetes é mais comum entre quem tem esquizofrenia do que no restante da população.
Pesquisadores brasileiros trabalhando no país e no exterior participam dessa revisão concei-tual ao analisar a atividade de genes e a produção de proteínas em diferentes áreas do cérebro e em outras partes do organismo. E identificaram modificações na estrutura e no funcionamento das células cerebrais que contribuem para uma compreensão mais abrangente da origem da esquizofrenia. Somados a trabalhos de grupos estrangeiros, esses resultados deixam cada vez mais evidente que, assim como em outras doenças mentais, são vários os fatores biológicos que influenciam a suscetibilidade e o desenvolvimento dessa enfermidade que faz as pessoas sentirem um profundo vazio emocional e provoca delírios e alucinações. E, à medida que as investigações avançam, mais elementos aparecem.
O grupo do psiquiatra Wagner Farid Gattaz na Universidade de São Paulo (USP) detectou cerca de 300 alterações genéticas que podem comprometer o desempenho do cérebro e caracterizar a esquizofrenia; 25% desses genes estão ligados à produção de energia e 20%, ao crescimento celular. “Esses dados tornam a compreensão da esquizofrenia mais realista”, afirma Gattaz.
Talvez já fosse esperado encontrar tantos fatores biológicos. Há diferentes níveis de gravidade na esquizofrenia, em que os sinais clínicos podem ir da desorganização do pensamento à convicção de que se está sendo perseguido ou das alucinações visuais e auditivas à completa paralisia (catatonia). Muita coisa pode dar errado desde que as células que vão originar o cérebro começam a se formar no embrião até o momento em que se tornam especialistas, por exemplo, em transportar e armazenar informações, caso dos neurônios. Alterações genéticas herdadas dos pais ou surgidas ao acaso – somadas a fatores sociais, como migrações, ou ambientais, a exemplo de violência e abusos sofridos na infância – podem interferir na produção de proteínas essenciais para o funcionamento adequado dos neurônios e de outras células que formam o cérebro e outros órgãos do sistema nervoso central.
Uma diferença entre as células cerebrais de pessoas saudáveis e as das com esquizofrenia é a consistência da membrana externa dos neurônios, formada por uma dupla camada de lipídios. Quando trabalhou no laboratório de Gattaz, o pesquisador alemão Gunter Eckert analisou a maleabilidade da membrana dos neurônios de pessoas com e sem esquizofrenia, extraídos após a morte. A superfície das células do córtex pré-frontal, área que coordena o raciocínio e cujo funcionamento está alterado na esquizofrenia, se apresentou mais fluida do que o normal. “O aumento da fluidez da membrana pode alterar o funcionamento da célula”, comenta Evelin Schaeffer, psicofarmacologista da equipe de Gattaz.
Esse achado ajuda a explicar algumas modificações anatômicas e fisiológicas observadas nos últimos tempos por meio de exames de imagens no cérebro de pessoas com esquizofrenia. E parece decorrer de um efeito observado quase 30 anos antes por Gattaz, quando fazia seu doutorado na Universidade de Heidelberg, Alemanha. Naquela época ele verificou que a enzima fosfolipase A2, responsável pela reciclagem de lipídios da membrana, se encontra mais ativa do que o normal nos neurônios de quem tem esquizofrenia – essa hiperatividade da fosfolipase pode alterar a composição da membrana e contribuir para que se torne mais flexível. Mais maleável, a membrana pode abrigar uma concentração maior de receptores D2, proteína que extrai do meio extracelular o mensageiro químico dopamina.
Esse resultado favorece a hipótese mais antiga e mais difundida para explicar os sinais clínicos da esquizofrenia. A apatia e o embotamento das emoções ou ainda os surtos de psicose seriam consequência de alterações nos níveis de dopamina no espaço entre as células, que provocaria um desajuste na comunicação entre os neurônios. O excesso de dopamina no meio intercelular, que as medicações que controlam a esquizofrenia tentam reverter, diminuiria a atividade de regiões cerebrais como o córtex pré-frontal, situado na parte anterior da cabeça, logo acima dos olhos, e responsável pelo raciocínio complexo, a capacidade de expressão e a tomada de decisões.
Estão se acumulando evidências de que na esquizofrenia não é só a transmissão de informação de uma célula a outra que está prejudicada. O funcionamento celular parece estar comprometido, segundo estudos de proteômica do biólogo Daniel Martins-de-Souza, atualmente no Instituto Max Planck de Psiquiatria, na Alemanha. Daniel comparou o funcionamento do cérebro de pessoas com e sem esquizofrenia e verificou que algumas regiões cerebrais associadas à doença parecem não processar adequadamente a glicose, principal fonte de energia do cérebro. “A proteômica permite ver não apenas o que está diferente na produção de proteínas, mas também como, juntas, elas afetam caminhos bioquímicos relacionados”, diz ele.
Daniel já descreveu potenciais alterações no metabolismo da glicose em células do córtex pré-frontal e no tálamo, região cerebral que integra informações sensoriais à consciência, e na área de Wernicke, ligada à compreensão da linguagem escrita. Quase sempre ele encontrou níveis alterados – maiores ou menores que o normal – de enzimas que participam do primeiro estágio de conversão da glicose em energia. “Todo o metabolismo dessas regiões pode estar mais lento”, suspeita Daniel, que iniciou em seu doutorado os estudos de proteômica no laboratório de Gattaz em 2004, sob a orientação do biólogo Emmanuel Dias-Neto.
O que Daniel viu até agora nas células cerebrais pode ser uma característica da esquizofrenia com repercussão mais ampla no organismo e estar na origem de um fenômeno que há pouco mais de 90 anos intrigou o neurologista Frans Hieronymus Kooy. Na Holanda, Kooy havia submetido a exames de sangue e urina 10 pacientes com esquizofrenia, na época mais conhecida como demência precoce, do hospital em que trabalhava. Ele notou que essas pessoas apresentavam níveis elevados de glicose no sangue ou hiperglicemia, um dos sinais típicos do diabetes. Em um artigo publicado na revista Brain em 1919, Kooy afirmou estar “inclinado a pensar que as emoções eram responsáveis pelo aumento do açúcar no sangue”. Mas ficou a dúvida: não se sabia se ela era causa ou consequência do transtorno mental.
A ideia de Kooy começa a ser reinterpretada agora, ante os estudos que investigam as conexões entre diabetes e esquizofrenia em número maior de pessoas. Mais frequente em quem tem o transtorno psiquiátrico do que no restante da população, o diabetes parece não ser causa. Nem apenas efeito colateral de algumas das medicações, que aumentam o ganho de peso, uma vez que estudos feitos na última década com pessoas antes do início do tratamento também mostraram alteração no processamento da glicose. Vistos em conjunto, esses dados mostram a resistência à insulina e o diabetes como uma das manifestações da esquizofrenia.
Após verificar alterações no metabolismo em diferentes regiões do cérebro, Daniel vale-se agora da análise de proteínas para investigar como está o processamento da glicose nos tipos distintos de células cerebrais. Suspeita-se de que os neurônios não sejam as únicas células com problemas na esquizofrenia. Os astrócitos e os oligodendrócitos, dois dos três tipos de célula da glia, também parecem não funcionar bem. Daniel faz testes com células em cultura em que acrescenta o composto MK-801, que provoca sinais semelhantes aos da esquizofrenia em animais de laboratório.
Os resultados preliminares indicaram expressão alterada de proteínas nos astrócitos, células que nutrem os neurônios e atuam como células de defesa, e nos oligodendrócitos, que se enrolam em torno do principal prolongamento do neurônio e o isola eletricamente. Em abril, em um congresso na Itália, ele descobriu que ganha força a hipótese de que na esquizofrenia ocorra algum grau de degeneração, ideia que havia sido posta de lado porque exames de imagem não identificam alterações anatômicas no cérebro.
“Pode haver alguma perda, e não necessariamente de neurônios”, comenta Daniel. No congresso, a pesquisadora russa Natalya Uranova relatou uma redução no número de oligodendrócitos em algumas regiões do cérebro de pessoas com esquizofrenia. E Daniel já observou no tálamo e no líquor alterações no nível de proteínas que são marcadores clássicos de esclerose múltipla, doença neurodegenerativa associada à perda do isolamento elétrico promovido pelos oligodendrócitos. “Se surgirem mais evidências de que essas células não funcionam bem na esquizofrenia, ela pode se caracterizar como uma doença das células da glia, e não dos neurônios”, diz.
Esses achados podem ser relevantes para a compreensão da esquizofrenia, mas, como lembra Gattaz, não será fácil demonstrar se são causa ou consequência dessa doença complexa e devastadora.
Os projetos
1. Metabolismo dos fosfolípides na esquizofrenia e na doença de Alzheimer (nº 1997/11083-0) (1998-2002); Modalidade Projeto temático; Coordenador Wagner Farid Gattaz – Ipq/FMUSP; Investimento R$ 1.655.007,34
2. Metabolismo de fosfolípides em doenças neuropsiquiátricas – (nº 2002/13633-7) (2003-2007); Modalidade Projeto temático; Coordenador Wagner Farid Gattaz – Ipq/FMUSP; Investimento R$ 1.803.528,52
Artigos científicos
MARTINS-DE-SOUZA, D. et al. Proteome analysis of schizophrenia patients Wernicke’s area reveals an energy metabolism dysregulation. BMC Psychiatry. v. 9, n. 17, 2009.
MARTINS-DE-SOUZA, D. et al. The role of energy metabolism dysfunction and oxidative stress in schizophrenia revealed by proteomics. Antiox Redox Signal. v. 15, n. 7, p. 2067-79, 2011.
ECKERT, G. P. et al. Increased Brain Membrane Fluidity in Schizophrenia. Pharmacopsychiatry. v. 44, n. 4, p. 161-62, 2001.
De nosso arquivo
Um quebra-cabeça em construção – Edição nº 163 – setembro de 2009
O peso do mundo – Edição nº 95 – janeiro de 2004