O ator John Travolta interpretou no filme O menino da bolha de plástico um rapaz que tinha uma deficiência rara: qualquer vírus ou bactéria inofensivo para outras pessoas poderia matá-lo. O protagonista sofria da imunodeficiência combinada severa, também conhecida por síndrome da bolha em razão de, nos anos 1970, obrigar seus portadores a viver dentro de bolhas esterilizadas para contornar a inexistência de células de defesa em seu organismo. Ao pensar nesse problema do sistema imunológico, um grupo internacional de pesquisa, com a participação de brasileiros, se fez as seguintes perguntas: “Existe outra mutação que, em vez de eliminar as células de defesa, faça o oposto e leve à produção contínua delas, causando leucemia?” Sim, o grupo encontrou uma mutação específica, descrita na Nature Genetics deste domingo (4), que leva à leucemia linfoide aguda T (LLA-T), comum em crianças e em adolescentes.
Essa mutação altera o gene codificador de uma proteína fundamental para o desenvolvimento e o amadurecimento de um tipo importante de células de defesa, os linfócitos ou células T. A alteração afeta o gene do receptor de interleucina-7 (IL7R), proteína localizada na superfície das células T, um tipo de linfócitos responsável pelo reconhecimento e neutralização de vírus e bactérias. Com o receptor de IL7R alterado, as células T passam a se multiplicar incessantemente.
A mutação citada no estudo resulta na inserção do aminoácido cisteína no gene do IL7R. “A cisteína corrompe o funcionamento normal do receptor, facilitando a ligação de duas moléculas mutantes de IL7R”, explica um dos autores, José Andrés Yunes, do Centro Infantil Boldrini e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ambos em Campinas. Essa mutação está associada ao risco de originar o câncer. “Ainda assim, a doença é resultado do acúmulo de mutações em mais de um gene. Precisamos descobrir quais outras colaboram com o IL7R defeituoso”, conta Yunes.
O estudo de cinco anos foi realizado por norte-americanos, europeus e pelos brasileiros José Andrés Yunes, André Bortolini Silveira, Priscila Pini Zenatti, ambos do Centro Infantil Boldrini, em Campinas, e Silvia Brandalise, diretora da instituição, Jorg Kobarg, do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio). Os pesquisadores encontraram a mutação em 10% dos 201 pacientes com leucemia linfoide aguda T que participaram do estudo. Para checar a hipótese da mutação, ratos de laboratório receberam o gene defeituoso: os animais ficaram doentes, desenvolveram tumores e tiveram as células leucêmicas infiltradas em diversos órgãos.
Novo tratamento e prevenção
Apesar da gravidade da doença, segundo Yunes, em torno de 75% dos pacientes com leucemia linfoide aguda conseguem se recuperar. A nova descoberta pode levar ao uso de medicações específicas que ajudem a melhorar o quadro e curar mais pessoas acometidas por esse câncer. Drogas em fase de testes clínicos para o tratamento de outras doenças como a artrite reumatoide conseguiram barrar a proliferação e eliminar as células mutantes na leucemia. “É possível também desenvolver anticorpos para reconhecer o receptor mutante sem afetar as células normais do organismo”, conta Yunes.
De acordo com o pesquisador, é improvável que a mutação causadora da leucemia linfoide aguda T seja hereditária, pois, nesse caso, mais pessoas da família apresentariam a leucemia disparada por essa mutação, o que é raro. “Vamos estudar se existe alguma interferência ambiental para que essa mutação ocorra. Suspeitamos que o dano possa ser causado durante a gravidez.”
Pesquisas epidemiológicas apontam que o uso inadvertido de hormônios ou até mesmo do antitérmico dipirona no período da gestação parece estar associado ao aumento do risco de o recém-nascido desenvolver leucemia. “Porém, é preciso realizar estudos com maior número de lactentes doentes para obter resultados conclusivos.”
A leucemia responde por aproximadamente 30% dos casos de câncer em menores de 15 anos no Brasil. A doença tem vários tipos, dos quais a leucemia linfoide aguda é o mais comum, com a ocorrência de dois mil novos casos por ano, segundo o Ministério da Saúde. Seu subtipo leucemia linfoide aguda T corresponde a 15% desses casos, de acordo com José Andrés Yunes.
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