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Epidemiologia

Desigualdade social e racial é fator importante por trás de óbitos relacionados à Covid-19

Em São Paulo negros morrem mais do que brancos, assim como moradores da periferia em relação ao centro

Léo Ramos Chaves

Pesquisadores da área de saúde pública constataram que, no que se refere às mortes causadas pela Covid-19, os negros são a população mais vulnerável entre os paulistanos. Em relação aos brancos, seu risco relativo de morte é 77% maior, enquanto pardos apresentam taxa 42% mais alta que os brancos. Os números reforçam a situação desigual e precária dessas populações, aprofundando a segregação determinada também por diferenças de renda. Em contraste com essa realidade, o risco de asiáticos serem vitimados pela doença é 37% menor do que os brancos. Deixando a diferenciação racial de lado, mais marcante ainda é o comparativo entre sexos: comparados às mulheres, os homens têm um risco de óbito 84% maior.

A base para essas conclusões é um estudo publicado em 28 de fevereiro na revista International Journal of Epidemiology, que levou em consideração todos os óbitos por Covid-19 ou por suspeita da doença na cidade de São Paulo entre os meses de março e setembro de 2020, segundo os registros no Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade no Município de São Paulo (Pro-Aim). Foram consideradas informações relativas a raça, idade, sexo, nível educacional, renda, local de residência, data e local do óbito. O hospital onde foi feito o atendimento também foi levado em conta: se era público, privado ou filantrópico. Os dados relativos ao nível educacional e à renda eram agregados, com base no local de residência, enquanto a informação sobre raça era individual. Os dados agrupados trazem números totais de determinado aspecto. No caso do controle da adesão ao isolamento social (ou restrição de circulação) por meio dos celulares, por exemplo, são divulgados os dados gerais e os percentuais de movimentação da população, mas não se tem acesso a quem fica ou não em casa – o que caracterizaria uma informação individualizada.

Entrevista: Karina Braga Ribeiro
00:00 / 20:47

A epidemiologista Karina Braga Ribeiro, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCM-SCSP), principal autora do estudo, levanta algumas hipóteses para explicar os dados, a maioria baseada em informações já publicadas em periódicos científicos. Um dos principais fatores é o maior grau de exposição à doença a que estão sujeitos homens, negros e os mais pobres em geral: eles adoecem e morrem mais por estarem mais expostos em razão de desigualdades raciais e socioeconômicas. “Essas pessoas tiveram de voltar mais cedo ao mercado de trabalho, não puderam fazer home-office, não têm condições habitacionais que permitam o isolamento em casa quando doentes e usam transporte público”, explica Ribeiro. Essas circunstâncias aumentariam a incidência da doença, o que pode explicar em parte as diferenças na mortalidade. Uma segunda questão é o acesso aos serviços de saúde e o tempo que se leva para procurá-los quando aparecem os primeiros sintomas. “Os negros e pardos têm mais dificuldade de acesso aos serviços de saúde.”

Apesar de ressalvar o fato de que dados agregados, como a quase totalidade dos utilizados na pesquisa de Ribeiro, têm suas limitações por não responder a contextos específicos, a epidemiologista Emanuelle Góes, pesquisadora de pós-doutorado na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) na Bahia, elogia o estudo. “Com pesquisas como essa, amplificamos o entendimento da questão racial. Falava-se muito de desigualdade social, pobreza, mas não de desigualdade racial”, diz ela, para quem o estudo deveria ser replicado em outros estados e capitais.

Em Salvador, cidade com a maior população negra do Brasil, com 36,5% de pretos, 45,6% de pardos e 17% de brancos, segundo dados de 2017 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a predominância numérica não garante vantagem a pretos e pardos. Ao contrário, a disparidade salarial é gritante: em comparação aos brancos, os pretos ganham, em média, 67,8% menos e os pardos têm remuneração 54,4% menor, de acordo com avaliação de 2018 da Pnad Contínua.

“São questões muito semelhantes às que encontramos no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Há territórios com grandes vazios assistenciais, sobretudo de serviços de média e alta complexidade”, relata Góes. A pesquisadora frisa a grande segregação racial existente, com problemas estruturais que afetam as populações de negros e indígenas.

Localidade e letalidade
Se os fatores racial e assistencial estão intimamente ligados na pandemia, questões territoriais e de renda igualmente caminham juntas. Quando se analisam os doentes internados que chegaram a óbito, um dos fatores de proteção dos paulistanos é a renda per capita.

É o que indica o trabalho coordenado pela geógrafa Lígia Vizeu Barrozo, do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paul (USP), publicado em fevereiro de 2021 como preprint no repositório arXiv, ainda sem revisão por outros pesquisadores. O estudo buscou identificar os fatores socioeconômicos associados à localidade nas taxas de letalidade hospitalar, com análise de 44.148 pessoas diagnosticadas com Covid-19 no município de São Paulo entre 27 de fevereiro e 19 de novembro do ano passado.

Tanto essa pesquisa quanto o da Santa Casa apontam para condições de moradia como um fator importante. Residências superlotadas aumentam o contágio, de forma semelhante ao que se registra com relação à tuberculose.

Os resultados corroboram dados importantes de levantamentos anteriores sobre a distribuição geográfica da dengue em São Paulo. Os mapas resultantes mostram claramente que as regiões periféricas registram maiores taxas de letalidade e de risco relativo em relação às regiões centrais, de renda per capita maior.

Em relação à renda e ao comportamento, as comorbidades – consideradas um dos principais fatores de risco – não são um fator tão preponderante para os óbitos de Covid-19, de acordo com a epidemiologista Camila Lorenz, hoje em estágio de pós-doutorado na Faculdade de Saúde Pública da USP com bolsa da FAPESP e coautora do artigo. Sua distribuição é mais equilibrada em toda a cidade, portanto não reflete as discrepâncias geográficas observadas na mortalidade.

“Como as taxas de letalidade não costumam ser aferidas por região das cidades, e sim por unidades hospitalares, praticamente não existem bases comparativas”, afirma Lorenz. Os mais afetados pela doença foram os homens acima dos 60 anos de idade, que representaram 55,1% das hospitalizações e 56,4% dos óbitos. No total, 27,5% dos casos analisados resultaram em óbitos. “Um estudo semelhante foi feito com dados de dois hospitais chineses, que juntos somam apenas 190 pacientes. A taxa de letalidade verificada, no entanto, é similar à do nosso levantamento”, explica.

As condições de contexto, reforça Ribeiro, são de suma importância. Além das questões relativas à circulação do vírus, existem também as que dizem respeito ao suporte social. “Nas questões de saúde, uma família com baixo nível socioeconômico vivendo em área de alta vulnerabilidade social poderá ser mais afetada do que uma família de baixo nível socioeconômico que vive em uma área de média vulnerabilidade social.” Isso porque no seu entorno haverá mais aglomeração e pessoas com maior grau de exposição ao vírus.

Com relação à taxa de mortalidade mais alta dos homens em relação às mulheres, Ribeiro menciona como possível causa a resistência masculina a procurar o médico. Elas costumam prestar mais atenção à saúde e procuram atendimento mais cedo. Além disso, ressalta outras duas explicações do ponto de vista comportamental: os homens se expõem mais à doença e aderem menos às medidas preventivas, como uso de máscara e higiene pessoal.

Projetos
1.
Identificação de áreas de risco para arboviroses utilizando armadilhas para adultos de Aedes aegypti e Aedes albopictus e imagens de sensoriamento remoto (nº 17/10297-1); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Francisco Charavalloti Neto (USP); Bolsista Camila Lorenz; Investimento R$ 393.318,41.
2. Padrões espaço-temporais dos casos e óbitos por dengue, fatores associados e identificação de áreas de risco em duas escalas geográficas: municípios do Brasil e áreas intraurbanas de Campinas, estado de São Paulo (nº 20/12371-7); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Francisco Charavalloti Neto (USP); Bolsista Patricia Marques Moralejo Bermudi; Investimento R$ 204.331,68.

Artigos científicos
RIBEIRO, K. B. et al. Social inequalities and Covid-19 mortality in the city of São Paulo, Brazil. International Journal of Epidemiology. 28 fev. 2021.
LORENZ, C. et al. Examining socioeconomic factors to understand the hospital case-fatality rates of Covid-19 in the city of Sao Paulo, Brazil. arXiv. 28 fev. 2021.

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