Dois centros de pesquisa brasileiros, um em São Paulo e outro no Espírito Santo, desenvolveram softwares capazes de identificar e classificar o câncer de pele, o tumor de maior incidência no mundo que, apenas no Brasil, afeta cerca de 185 mil vítimas por ano e mata mais de 2,5 mil pessoas. Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisadores criaram um sistema computacional que consegue realizar diagnósticos com uma taxa de precisão acima de 90%, índice superior à média de acertos de dermatologistas experientes, antes de o tumor ser confirmado por biópsia.
“A proposta não é substituir o médico, mas oferecer uma ferramenta de apoio à decisão”, destaca a cientista da computação Sandra Eliza Fontes de Avila, que coordenou o trabalho com o colega da mesma área Eduardo Valle – ela é do Instituto de Computação (IC) e ele da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (Feec). A pesquisa teve apoio da FAPESP e por cinco anos seguidos, entre 2016 e 2020, obteve o reconhecimento do Latin America Research Awards (Lara), do Google, como um dos 25 projetos acadêmicos de pesquisa mais promissores da região.
O sistema usa inteligência artificial e aprendizado de máquina para comparar imagens obtidas pelo dermatoscópio, aparelho que amplia e ilumina a imagem da pele, com um banco de dados público formado por mais de 50 mil fotografias de diferentes lesões. O algoritmo analisa as imagens, identifica padrões e indica se o tumor é maligno ou benigno. Um câncer de pele diagnosticado em seus estágios iniciais, de acordo com o Instituto Nacional de Câncer (Inca), tem chance de cura superior a 90%. Quanto mais avançado o estágio do tumor, menor é a taxa de sucesso do tratamento.
O software ainda precisa ser aprimorado para chegar à comunidade médica. Um desafio é ampliar o perfil de amostras do banco de dados. As imagens coletadas no Brasil são comparadas com outras dos Estados Unidos, da Austrália e da Europa, onde predominam populações brancas.
As formas como os tumores se apresentam e a agressividade com que evoluem, porém, são diferentes em cada um dos seis fototipos de pele existentes. A comparação da imagem de uma lesão cutânea de uma pessoa negra com um banco de dados formado por amostras de brancos pode levar o sistema a cometer erros. “Precisamos de um banco que espelhe a diversidade brasileira”, afirma Avila. A equipe da Unicamp busca parcerias com hospitais para obter os registros de peles morenas e negras e formar uma coleção mais compatível com o perfil do brasileiro.
Por ora, o sistema está programado para identificar somente o câncer do tipo melanoma, o mais agressivo dos tumores, porém o menos frequente – responde por 3% dos casos. O grupo planeja expandir a capacidade de diagnóstico para outros tipos de câncer, como o carcinoma basocelular e o carcinoma espinocelular, os de maior prevalência.
O software trabalha com imagens obtidas por dermatoscópios e celulares, mas os resultados são diferentes. Enquanto o índice de acerto com imagens dermatoscópicas supera 90%, no segundo formato é de 70%. A expectativa dos pesquisadores é que o avanço da tecnologia dos celulares gere resultados mais precisos.
O diagnóstico com imagem de celular permitirá aos médicos clínicos de postos de saúde usar o software para uma avaliação prévia dos pacientes e encaminhar os casos suspeitos para um especialista. “Acreditamos que essa será uma das principais utilidades de nosso software. Muitos postos de saúde e até cidades no interior não dispõem de dermatologistas e dermatoscópios”, diz Avila.
O primeiro estudo relevante que demonstrou o potencial do uso da inteligência artificial no diagnóstico do câncer de pele foi publicado em 2018 por um grupo de pesquisadores liderados por Holger Haenssler, da Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Comparando fotos de lesões de câncer de pele com um banco formado por mais de 100 mil imagens de tumores malignos e benignos, o sistema acertou 95% dos diagnósticos, índice maior que o apresentado por um conjunto de 58 médicos experientes, bem-sucedidos em 86% dos casos.
O estudo, divulgado na revista Annals of Oncology, motivou o lançamento de sistemas digitais de diagnóstico de câncer de pele. A empresa alemã FotoFinder Systems foi uma das pioneiras no lançamento, em 2019, de um software criado para exames que usam imagens geradas por dermatoscópios e são comparadas a um banco de registros europeu.
Também já há no mercado aplicativos disponíveis para celulares que prometem fazer o diagnóstico de câncer de pele. Esses sistemas são vistos com ressalvas pelos médicos pela falta de comprovação de eficácia, já que comparam imagens captadas por celular com as de coleções baseadas em informações colhidas em dermatoscópios. Os médicos não incentivam o uso desses aplicativos por estimularem o autoexame.
“O recomendado é que a população procure rotineiramente atenção médica para rastreamento e detecção do câncer de pele. Aplicativos de celular não devem substituir essa avaliação”, enfatiza Renato Bakos, da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD). A dermatoscopia, segundo o médico, é uma técnica que envolve uma curva de aprendizado. Por isso, o uso de aparelhos dermatoscópicos depende de treinamento constante. Os softwares, ressalta, podem facilitar o processo de diagnóstico. “Toda tecnologia que apoie a detecção precoce do câncer de pele é bem-vinda, desde que devidamente testada e validada”, afirma.
Na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), um grupo coordenado pelo engenheiro Renato Krohling, do Departamento de Engenharia de Produção, criou, com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (Fapes), um software para o diagnóstico do câncer de pele que emprega uma base de dados própria brasileira, alimentada com imagens colhidas por celular. Além das fotos, há informações complementares que incluem dados do paciente, o local da lesão e o tipo e a evolução do tumor. Em uma próxima etapa, o repositório será acrescido com detalhes da biópsia de cada caso. “Com esse conjunto de informações, estaremos perto de alcançar um índice de acerto próximo a 100%”, diz Krohling.
A base de dados é alimentada por informações colhidas pelo Programa de Assistência Dermatológica e Cirúrgica (PAD), do Departamento de Medicina Especializada da Ufes, que há mais de 30 anos mobiliza professores e alunos para a assistência a agricultores capixabas. O software é capaz de distinguir as lesões cutâneas em um universo de fotografias obtidas em variadas resoluções e condições de iluminação. Portanto, não depende de imagens dermatoscópicas.
A expectativa de Krohling é que a formação do banco de dados sobre lesões de pele atinja o ponto adequado de maturação um ano após a retomada das visitas de campo pelo PAD, interrompidas por causa da pandemia de Covid-19. É o que falta para a conclusão do sistema digital de diagnóstico de câncer de pele. “Quando isso acontecer, planejamos disponibilizar um aplicativo de celular para o uso exclusivo da comunidade médica”, informa o engenheiro.
Projeto
Geração ilimitada de imagens de lesões de pele usando redes generativas adversariais (nº 19/19619-7); Modalidade Bolsa de doutorado; Pesquisadora responsável Sandra Eliza Fontes de Avila (Unicamp); Beneficiário Alceu Emanuel Bissoto; Investimento R$ 119.631,33.
Artigo cientifico
Hänssle H. A. et al. Man against machine: diagnostic performance of a deep learning convolutional neural network for dermoscopic melanoma recognition in comparison to 58 dermatologists. Annals of Oncology. v. 29, ed. 8, p. 1836-42. Ago. 2018.