A história da recepção da obra de Hannah Arendt (1906-1975) no Brasil tem em Celso Lafer personagem central. Em 1965 ele foi aluno de Arendt em um curso na Universidade Cornell, nos Estados Unidos. A experiência marcou profundamente sua trajetória acadêmica e definiu seu entusiasmo com a difusão da obra da filósofa no país. Lafer não apenas tratou diretamente com Arendt da publicação de algumas de suas obras em português, desde a tradução inaugural de Entre o passado e o futuro, como também elaborou textos de apresentação a essas obras.
Em 1988, em oportuna simultaneidade com a promulgação da nossa Constituição Federal, Celso Lafer publicou a tese de seu concurso para professor titular na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, intitulada A reconstrução dos direitos humanos: Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt (Companhia das Letras, 1988). Trata-se de reflexão incontornável e bastante atual tanto para os interessados na fundamentação dos direitos humanos quanto no aprofundamento da compreensão da obra da autora a partir da sua noção do “direito a ter direitos”, do direito de poder tornar o mundo uma casa, do direito de pertencer a uma comunidade e de ser julgado pelo que se diz e faz e não pelo que irrevogavelmente se é. Naquele livro temos ainda original e profunda reflexão sobre a importância do juízo para o pensamento político de Arendt que não perdeu sua atualidade.
Hannah Arendt: Pensamento, persuasão e poder, a obra pioneira de há 40 anos, uma das primeiras, no mundo, inteiramente dedicada ao pensamento da autora, foi reeditada, com a inclusão de textos produzidos nas últimas quatro décadas. Além de seu pioneirismo, a obra testemunha a trajetória de um longo diálogo de Lafer com o pensamento de Arendt.
Nesta terceira edição, o livro revela também generoso intercâmbio com pesquisadores da obra de Arendt, cujo número se avolumou consideravelmente a partir dos anos 2000. Por fim, é bastante inspirador o diálogo promovido por Lafer entre a obra de Arendt e a de pensadores como Norberto Bobbio (1909-2004), Octavio Paz (1914-1998) e Isaiah Berlin (1909-1997).
Concebido no ano 2000 para um dos primeiros colóquios sobre a filósofa alemã no Brasil, realizado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, o primeiro capítulo apresenta uma imagem que passaria a ser frequente na obra do autor: a de que a produção de Arendt é um clássico contemporâneo. Considerava, assim, a observação de Bobbio de que clássica é a obra cada vez mais reconhecida como interpretação autêntica de sua época e que oferece categorias de análise que transcendem seu próprio contexto e provocam leituras e releituras inspiradoras para a compreensão de nosso tempo. Se isso soava plausível na ocasião, é cada vez mais sonoro na atualidade, em que a dignidade da política é solapada pelo autoritarismo, pela violência, pela intolerância e pela mentira deliberada.
O texto que traduz mais profundamente o espírito desta obra é o capítulo 2, dedicado à celebração do centenário de nascimento de Arendt, em que o autor reflete sobre o curso por ela ministrado, intitulado “Experiências políticas do século XX”, com especial atenção ao impacto de eventos como a Primeira Guerra Mundial, a Guerra Civil Espanhola e a Alemanha nazista, sem recorrer primariamente a interpretações teóricas desses eventos, mas antes a obras literárias de autores como André Malraux (1901-1976), Jean-Paul Sartre (1905-1980), Joseph Conrad (1857-1924), Thomas Mann (1875-1955) e Albert Camus (1913-1960), que permitiam elaborar as experiências sem “o tom da teoria”. Por “exercícios de imaginação”, buscava desenvolver uma mentalidade alargada, experimentar um “pensar sem corrimão” que permitiria julgar eventos singulares sem recorrer a padrões preconcebidos.
Tratava-se de conceber “uma biografia imaginária de alguém que viveu as experiências políticas do século XX”. Esse modo de Hannah Arendt “ir às coisas mesmas” marca este livro de Lafer e é uma das razões especiais de sua renovada atualidade. É ela também o testemunho do quão inspiradoras e irradiadoras podem ser as experiências com o próprio pensamento. É o desdobramento de um longo diálogo, ele mesmo intensamente irradiador.
Adriano Correia é professor de ética e filosofia política da Universidade Federal de Goiás.
Republicar