azeite deleos– Agora tá nas mãos de Deus.
– Como assim, pai?
– Como assim o quê?
– A mãe tá internada no hospital, não na igreja.
– Eu sei, idiota. Mas têm coisas que o hospital não cura.
– Tipo câncer?
– Tipo câncer.
– Claro que cura, pai.
– Não cura. Tu não vê quantas pessoas morrem de câncer?
– Tu acha que todas elas não acreditam em deus?
– Não.
– Deus não existe, pai.
– Como assim, pai?
– Como assim o quê?
– A mãe tá internada no hospital, não na igreja.
– Eu sei, idiota. Mas têm coisas que o hospital não cura.
– Tipo câncer?
– Tipo câncer.
– Claro que cura, pai.
– Não cura. Tu não vê quantas pessoas morrem de câncer?
– Tu acha que todas elas não acreditam em deus?
– Não.
– Deus não existe, pai.
– Como Deus não existe?
– Não existe, pai.
– O que tu quer dizer com isso?
– Quero dizer que deus não existe, pai. Se tu, com 56 anos, ainda não descobriu, eu vou ter a cara de pau de te dizer. Deus não existe. E não vai curar a mãe.
– Tu quer que tua mãe morra?
– Não, claro que não, pai. Só tô dizendo que se ela melhorar não vai ser pela eficiência de deus, porque ele não existe.
– Como tu sabe que Deus não existe?
– Porque eu estudo filosofia, pai.
– Eu sempre fui contra tu estudar isso aí.
– Eu sei, pai. Mas não é culpa minha.
– Não é culpa o quê?
– Saber que deus não existe, e te informar disso.
– Deus existe. Quem tu acha que criou o Rio de Janeiro? O céu? A vida?
– Ah, pai.
– Tu não acredita na vida após a morte? Tu tá dizendo que tu nunca mais vai ver tua mãe?
– Tu acha que a mãe vai morrer, pai?
– Se a gente não orar pra Deus vai.
– Pai, deus não tem nada a ver com câncer.
– Tu quer que tua mãe morra, eu sei, assim como tu quer que eu morra.
– O que tu tá falando, pai?
– Tu quer ficar com nossa herança, eu sei, tu quer que a gente morra pra tu herdar a nossa herança que a gente batalhou e só Deus sabe como.
– Vocês não têm herança nenhuma, pai, eu vou querer o quê?
– Tu vai ser filósofo e pobre, eu sei que tu só quer a nossa herança.
– Pai, por favor.
– Tu vem com essas histórias de que Deus não existe e quer que tua mãe morra.
– Pai, eu não quero que a mãe morra. Eu só tô dizendo.
– Eu sei que tu quer que a gente morra.
– Eu só tô dizendo que se ela ficar boa, e eu sei que vai, vai ser por causa da ciência, da quimioterapia que ela tá fazendo.
– Tu não ouviu o que o médico disse?
– Eu sei que é difícil, pai, mas o hospital é bom, os médicos são bons, vai dar tudo certo, sem nenhuma intervenção divina.
– Se Deus não existe como tu sabe que ela vai ficar boa?
– Eu não sei, pai. Eu só espero.
– Então, tu tem fé. Fé em Deus.
– Não, pai, eu tenho fé na ciência, nos médicos, é um hospital bom, a mãe tá em boas mãos.
– Mas esse não é o pior hospital daqui?
– Não, pai, é o hospital mais caro. Eu não sei nem o que tu fez pra poder pagar isso aqui. Mas admiro muito tua atitude.
– Não é tudo de graça?
– Claro que não, pai.
– Como é que não?
– Não é, pai. Esse hospital é particular. Todo tratamento custa dinheiro.
– Tua mãe não me falou isso.
– Mas quem decidiu que ela viria pra cá?
– Ela.
– Como ela?
– Ela decidiu. Eu não me meto nesses assuntos.
– Como que não, pai? Todos familiares próximos têm que estar cientes.
– E tu não tava?
– Pai, eu moro fora. Eu não tava sabendo de nada, mas o hospital é bom e eu sei que vai dar tudo certo por isso. Por causa da ciência.
– Que ciência o quê. Quanto custa isso?
– Isso o quê?
– O tratamento?
– Ah, não sei. Dezenas.
– Dezenas?
– De milhares, pai.
– Como assim?
– Não sei, pai.
.:.
– Carlos?
– Sim, doutor.
– Oi, Carlos, tudo bem?, quem é esse?
– Esse é meu filho, doutor, o Pedro.
– Ah, tudo bem. Só posso falar com os parentes.
– Aconteceu alguma coisa, doutor?
– Na verdade, sim.
– O que aconteceu, doutor?
– Vocês sabem como a situação estava séria. O câncer se alastrou pro outro seio e de nada adiantou a retirada do esquerdo.
– Doutor.
– A gente tentou tudo que pôde. Infelizmente ela não respondeu aos medicamentos.
– Doutor, por favor.
– Meus pêsames. Eu sei como é difícil.
– Doutor, o que o senhor está falando?
– Senhor, a Regina morreu.
– Doutor, o nome da minha mulher é Ivone. Ela está com câncer no pâncreas.
– Ivone?
– Sim, doutor.
– Ah.
– Doutor, o senhor tem alguma notícia da Ivone?
– Perdão. Perdão pelo engano.
– Tudo bem, doutor.
– Ivone…
– Sim, Ivone, doutor…
– Ela foi transferida.
– Transferida?
– Pro SUS… A condição financeira de vocês não permitia que ela ficasse aqui.
– Meu Deus, e agora?
– Agora não sei, senhor Carlos.
– Calma, pai, o SUS também tem médicos bons. Doutor, o senhor sabe qual é a situação da minha mãe?… Ela já tá em tratamento?…
– Não. Ela está na fila.
– …
– Agora só resta acreditar em deus, pai.
Rafael Iotti nasceu em Porto Alegre. Escreve para os sites “dos diálogos” e “tirinhas toscas”. Tem três gatos e adora paçoca.
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