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Bioenergia

Diesel de cana

Combustível vai ser produzido por meio de transformações genéticas em leveduras

AMYRISSaccharomyces cerevisae, a levedura em forma de bastão, em imagem de microscopia, na fase de fermentaçãoAMYRIS

A cana-de-açúcar já não precisa ser identificada apenas pelo nome do tradicional adoçante. Essa gramínea doce já pode ser chamada também de cana de etanol, cana de energia elétrica, com a queima do bagaço que gera eletricidade, e não se pode esquecer da cana da cachaça, a bebida típica nacional. Dentro em breve ela poderá ser reconhecida também como a cana do diesel. A novidade é da Amyris-Crystalsev, uma parceria no formato joint venture, entre a Amyris, empresa norte-americana de biotecnologia, e a Crystalsev, uma das maiores empresas de comercialização de etanol e açúcar do Brasil, que pertence ao mesmo grupo da Usina Santa Elisa, de Sertãozinho, no interior paulista. Também participa do empreendimento a Votorantim Novos Negócios, empresa de capital de risco que passou a investir na nova empresa. O feito tecnológico é da Am-yris, que desenvolveu modificações genéticas em linhagens comerciais da levedura Saccharomyces cerevisiae, responsável por transformar o caldo de cana em etanol durante o processo de fermentação nas usinas. A transformação faz o microorganismo secretar uma substância chamada farneseno, em vez de etanol, que pode ser utilizado em qualquer motor diesel, principalmente em caminhões, ônibus e tratores.

Para viabilizar a tecnologia em larga escala, a Amyris precisava de parceiros que tivessem muita matéria-prima barata como fonte de açúcar e carbono. “No Brasil estamos fazendo a otimização do processo para escala industrial”, diz Roel Collier, diretor-geral da Amyris-Crystalsev. “A pesquisa básica com o desenvolvimento do microorganismo e até uma planta piloto foram feitas nos Estados Unidos.” Para o biólogo Fernando Reinach, diretor-executivo da Votorantim Novos Negócios, a decisão da Amyris em produzir diesel de cana no Brasil se deve também ao conhecimento em fermentação em grande escala dominada pelas usinas brasileiras, no caso a Crystalsev, além do clima e de a produção ser feita de uma fonte barata de sacarose e carbono. “A produção de biocombustíveis a partir da cana tem que ser aqui porque fica caro exportar e transformar a garapa em outro lugar”, diz Reinach, que passou, em outubro, a fazer parte do conselho de administração da Amyris nos Estados Unidos. Para o novo diesel ser competitivo, o preço do barril de petróleo deve estar próximo a US$ 60. O novo diesel não é biodiesel porque não passa pelos mesmos processos desse biocombustível. Reinach acredita que ele encontrará um bom mercado no exterior porque, além de ser uma commodity, o combustível é muito puro. “Ele é melhor que o melhor diesel existente hoje, principalmente porque não tem enxofre (um dos mais sérios responsáveis pela poluição do ar atmosférico) como o diesel do petróleo.” Essa característica tem um apelo ambiental forte, assim como o fato de o ciclo de dióxido de carbono (CO2) ser favorável à cana porque as plantações, para fazer fotossíntese e crescer, absorvem esse gás para produzir novamente a sacarose que resultará no diesel.

A preparação do novo combustível exige poucas modificações no processo e no maquinário de produção tradicional de etanol. Ainda sem revelar todos os detalhes do processo, a Amyris-Crystalsev mostra em um esquema gráfico da produção que, depois da fermentação, quando o caldo de cana recebe o microorganismo modificado geneticamente pela Amyris, vem uma fase de separação, seguida de outra etapa de finalização química, quando o produto está pronto para ir ao mercado. São duas etapas que substituem as fases de destila-ção e desidratação do etanol.

A tecnologia biotecnológica usada pela Amyris foi a da reengenharia de metabolismo. “É modificar os ge-nes que codificam as enzimas responsáveis por transformar o açúcar não em etanol, mas em um outro produ-to”, diz Reinach. Para isso, o trabalho foi quase como o de uma reengenharia reversa, em que a partir de um produto conhecido descobre-se como ele é feito. A molécula farneseno, que forma um líquido incolor e é um componente do diesel fóssil, já era conhecida dos catálogos químicos e possui as mesmas propriedades do diesel, como em relação à combustão, embora seja um produto caro extraído de outras plantas como a citrone-la. Assim, as modificações genéticas foram direcionadas para a secreção de farneseno pela Saccharomyces. Os estudos começaram com os pesquisadores da empresa, que tem sede na cidade de Emeryville, no estado da Califórnia, fazendo o seqüenciamento do genoma da levedura. “Eles conheceram todos os genes da Saccharomyces que produzem etanol para entender também as diferenças que ela tinha com outras linhagens do mesmo microorganismo usadas em laboratório (a mesma levedura também é usada para produzir pão, cerveja e cachaça, por exemplo)”, diz Reinach. “Produzimos algumas ‘microcirurgias’ pontuais no material genético da levedura que modificou a rota metabólica do microorganismo”, diz Collier. “Foram introduzidas seqüências genéticas que incentivaram a produção de diesel em vez de etanol.” Cerca de 15 genes foram modificados. Os responsáveis pela novidade dizem que a Saccharomyces é um organismo geneticamente modificado, mas não divulgam a origem dos genes nem se são de outros organismos. Isso acontece porque o processo ainda se encontra na fase de elaboração de patentes.

88-91_Biodiesel_153Campinas e Sertãozinho
Na atual fase do projeto Amyris-Crystalsev, o momento é de engenharia da planta industrial que deverá ser instalada na Usina Santa Elisa, em Sertãozinho, em junho de 2010. Antes, uma planta piloto estará pronta em 2009 no centro de pesquisa da empresa no Technopark, em Campinas, no interior paulista. A produção começará com 10 milhões de litros de diesel por ano. Em 2011 passará para 50 a 60 milhões de litros na Santa Elisa. A partir daí, a joint venture pretende ofertar a tecnologia para outros grupos sucroalcooleiros. O consumo de diesel no Brasil deve atingir 45 bilhões de litros em 2008, mas a expectativa, segundo divulgou a própria empresa com base em analistas do setor, é de 80 bilhões em 2020.

No entanto, a tecnologia da Amyris não deve se limitar ao novo diesel. “Já é possível afirmar que poderemos fazer querosene de aviação, gasolina e avançar também no caminho da indústria petroquímica”, diz Reinach. Com microorganismos reengenheirados com biotecnologia e alimentados com açúcar, os dirigentes da empresa afirmam ser possível produzir todos esses combustíveis além de insumos para a indústria de plásticos. Todo esse processo tecnológico pela Amyris foi iniciado com pesquisa básica no Departamento de Engenharia Química e Bioengenharia da Universidade da Califórnia, em Berkeley, pelo professor Jay Keasling, sócio-fundador da empresa com outros três pesquisadores de pós-doutorado da mesma universidade, Neil Renninger, atual diretor de tecnologia, e Kinkead Reiling e Jack Newman, vice-presidentes. Keasling não participa do dia-a-dia da Amyris, mas está ligado ao conselho científico da empresa. Atualmente ele é o diretor-executivo do Joint BioEnergy Institute (JBEI) – algo como instituto reunido de bioenergia, em português –, um novo centro científico norte-americano, também situado em Emeryville, que tem a missão de avançar no desenvolvimento de novos biocombustíveis. Formado em junho de 2007, o instituto foi criado pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos em parceria com o Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, o Laboratório Nacional Sandia e o Laboratório Nacional Lawrence Livermore, além da Universidade da Califórnia em Berkeley e em Davis.

A Amyris Biotechnologies foi fundada em 2003 para desenvolver as plataformas tecnológicas vislumbradas pelo grupo. Além da recente participação da Votorantim Novos Negócios, a empresa já recebeu investimentos de mais quatro empresas de capital de risco, que somam no total mais de US$ 100 milhões, como a Kleiner Perkins Caufield & Byers, que participou do nascimento do Google, da Amazon e da America Online. Também recebeu investimentos da Khosla Ventures, TPG Ventures e da eDAG Ventures.

O primeiro produto da empresa foi o desenvolvimento da síntese em laboratório da artemisinina, princípio ativo de um medicamento contra a malária muito usado na África e na Ásia. Até então ela era extraída da própria planta artemísia (Artemisia annua), num processo caro que exige grandes quantidades do vegetal. A equipe da Amyris conseguiu produzir a artemisinina por meio da reengenharia genética de uma bactéria muito usada em laboratório, a Escherichia coli. Novos genes, enzimas e açúcar num processo de fermentação fazem a bactéria modificada produzir o medicamento. Com isso o produto foi barateado em 90%, segundo a empresa. O projeto, iniciado em 2004, durou três anos e meio, foi realizado em parceria com a Universidade da Califórnia em Berkeley e teve um investimento de US$ 42,6 milhões do Instituto OneWorld Health, da Fundação Bill & Melinda Gates. A Amyris está transferindo a tecnologia de produção da artemisinina para a Sanofi-Aventis, indústria farmacêutica de origem francesa, que vai produzir o medicamento a partir de 2010.

A Amyris na sua sede em Emeryville deverá atingir o número de 200 funcionários até o final de 2008. No Brasil, na empresa Amyris-Crystalsev, já são 20 pesquisadores, sendo 50% com doutorado. “Entre janeiro e março de 2009 nós vamos contratar mais pesquisadores para implementar a usina piloto e a futura usina industrial”, diz Collier, da Amyris-Crystalsev.

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